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OAB EM DEFESA DA LIBERDADE DO CONSUMIDOR DE ACESSO À JUSTIÇA

26 de março de 2021 - LAÍS BERGSTEIN E MARIÉ MIRANDA

A Ordem dos Advogados do Brasil, em inúmeros eventos, já apoiou o uso da plataforma como um ágil e importante mecanismo de diálogo e negociação entre consumidores e fornecedores. A carga oceânica de processos em tramitação exige que sejam desenvolvidos instrumentos alternativos e adequados para a solução de conflitos e a prevenção de litígios.

Todavia, a advocacia está há vários meses[1] apontando algumas situações pontuais que contrariam a busca pela expansão do uso da plataforma. A mais recente delas ocorreu no dia 28/01/2021, quando a Comissão Especial de Defesa do Consumidor do Conselho Federal da OAB participou da 25ª Reunião Nacional do Sistema de Defesa do Consumidor, organizada pela SENACON[2] em defesa da liberdade.

A CEDC-CFOAB destacou dois pontos fundamentais na defesa da liberdade de escolha do consumidor quanto ao meio mais adequado para a solução de conflitos: 1. a necessidade de facilitação da atuação dos advogados na plataforma Consumidor.gov.br e; 2. a impossibilidade de se exigir prova pré-constituída da pretensão resistida como requisito de acesso ao Poder Judiciário.

Resolver o problema diretamente com o fornecedor, pela internet, é excelente. Todavia, em algumas situações mais complexas, o consumidor prefere contar com o apoio de uma assessoria especializada ao invés de negociar sozinho com o fornecedor. O consumidor que conta com a consultoria, a assessoria e a direção jurídicas (atividades privativas de advocacia na forma do art. 1º, II, da Lei nº 8.906/1994), conhece melhor os riscos do litígio, passando a ter mais condições de negociar com seu parceiro contratual e alcançar uma solução amigável mais adequada.

O advogado é indispensável à administração da justiça, presta serviço público e exerce função social. O consumidor que conta com a consultoria, a assessoria e a direção jurídicas (atividades privativas de advocacia na forma do art. 1º, II, da Lei nº 8.906/1994) de um advogado, conhece os riscos do litígio, passando a ter melhores condições de negociar com seu parceiro contratual e alcançar uma solução amigável mais adequada.

Os Termos de Uso do Consumidor.gov.br (versão atualizada em 25 de março de 2020) admitem a atuação de representante legal por qualquer pessoa física com capacidade civil plena, que possua documentação específica para representar legalmente o consumidor no registro de uma reclamação. O item 4, inciso V, letra ‘a’ do aludido regramento indica que “em caso de representação legal de pessoa física ou mandato conferido por procuração, o cadastro deve ser realizado em nome do consumidor, apresentando-se na plataforma a documentação específica para tal representação.” [3] Não poderia ser diferente, uma vez que a representação legal é um direito do cidadão.

O cadastro da reclamação precisa ser realizado em nome do consumidor. O problema é que atualmente a plataforma admite somente um cadastro (e uma senha) por CPF. O bloqueio do sistema para a criação de uma senha específica para as reclamações realizadas por intermédio de um advogado viola a liberdade de escolha do consumidor. E não se pode sequer cogitar a hipótese de a senha, pessoal e intransferível, ser compartilhada.

É fundamental que os 1.208.430[4] advogados do Brasil, que devem bem representar, em Juízo ou fora dele, os 212.627.300 brasileiros[5] e inúmeros visitantes[6], tenham acesso à plataforma Consumidor.gov e possam, nela, representar adequadamente os seus clientes sem impedir que o cidadão, quando desejar, registre a sua reclamação individualmente.

Uma atualização no sistema é imperiosa para que o cadastro permita a representação, como a Constituição, a Lei e o Regulamento garantem. Os bons advogados são comprometidos com a eficiência na resolução dos problemas de seus clientes. Mas o efeito prático dos obstáculos de acesso é evidente: se o advogado tem dificuldade de representar o seu cliente na plataforma Consumidor.gov ele vai acionar do Poder Judiciário, o que constitui um desserviço em termos de política pública, na medida em que a plataforma Consumidor.gov foi criada justamente para prevenir litígios e resolver os problemas de modo célere e eficiente.

Sabe-se, igualmente, que também o Consumidor sopesa custo e benefício da reclamação, quanto tempo precisará investir para exercer um direito seu. Se o valor do prejuízo não compensar, deixa-se de exercer um direito. E isso é ruim para o Sistema Nacional de Defesa dos Consumidores, os pequenos danos individuais não reclamados se tornam prejuízos imensos no plano coletivo.

A OAB luta igualmente pela preservação do direito constitucionalmente assegurado (CRFB, art. 5º, XXXV) de acesso do consumidor ao Poder Judiciário. Quem tem que decidir qual é o meio mais adequado para a resolução do seu conflito é o cidadão. A tutela do consumidor pressupõe o respeito à sua liberdade. E as portas do judiciário devem estar abertas ao jurisdicionado. Logo, a resposta diante da lesão ou ameaça a direito do consumidor não pode ser a exigência de prova pré-constituída da pretensão resistida ou, ainda pior, o esgotamento das esferas administrativas, um retrocesso absoluto, lesivo ao direito constitucionalmente assegurado de acesso ao Poder Judiciário.

Recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo[7] reconheceu que o condicionamento ao recebimento da petição inicial à comprovação de que o pleito foi previamente formulado pelo consumidor na plataforma consumidor.gov.br violaria o princípio da inafastabilidade da jurisdição, insculpido no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal. A prestação jurisdicional tem sido retardada em diversas localidades do em razão de decisões semelhantes, que exigem do consumidor, à revelia da lei, prova pré-constituída da pretensão resistida.

A concepção de um direito de ação condicionado apenas se justifica para aqueles que o entendam como direito a um provimento sobre o mérito.[8] Nossa percepção é outra. A Constituição assegura a impossibilidade de exclusão de alegação de lesão ou ameaça, tendo em vista que o direito de ação (provocar a atividade jurisdicional) não se vincula à efetiva procedência do quanto alegado.[9] Conforme a lição de Chiovenda, quando uma prestação não é satisfeita, diz-se lesado o direito e da lesão de um direito pode exsurgir um direito a uma nova prestação. A partir disso, a ação consolida-se como um direito autônomo, visando a atuação da vontade concreta da lei, inclusive por meio da sua simples afirmação (a ação de mera declaração).[10]

A reclamação extrajudicial e a tentativa de conciliação com o fornecedor de produtos e serviços não é condição da ação ou requisito para o processamento da petição inicial, mas obsta ou é causa de suspensão do prazo decadencial (art. 26, parágrafo 2º, I, Código de Defesa do Consumidor), caracterizando direito potestativo do consumidor. A livre opção do consumidor de utilizar ou não o Consumidor.gov.br ou outros meios alternativos de solução de conflitos, obstar o direito básico de ressarcimento de danos morais e materiais do consumidor e o seu acesso direto ao Judiciário.

Em essência, a finalidade do Consumidor.gov é resolver problemas de modo célere e eficiente. Ainda que inicialmente não se tenha imaginado a participação de terceiro nessa ferramenta, o tempo revelou que ela pode ser aprimorada[11], mas deve deixar de ser subutilizada[12] para servir como método adequado de prevenção e resolução de litígios. Mas essa plataforma não pode servir como obstáculo ao acesso ao Poder Judiciário, pois o princípio da inafastabilidade garante uma tutela jurisdicional adequada à realidade da situação que é apresentada pelo jurisdicionado. É imperioso assegurar que o consumidor – enquanto cidadão – tenha a liberdade de decidir qual meio de resolução de conflitos lhe é mais adequado e possa optar por estar ou não sendo representado por um advogado.

[1] Vide Nota Técnica nº 01/2019 da CEDC/CFOAB.

[2] Disponível em: <https://youtu.be/cqIerbv2C9c>. Acesso em: 28 jan. 2021.

[3] Termos de Uso do Consumidor.gov.br. Disponível em: <https://www.consumidor.gov.br/pages/conteudo/publico/7>. Acesso em: 28 jan. 2021. Destaques nossos.

[4] CFOAB. Quadro de Advogados. Dados atualizados em 28 de janeiro de 2021. Disponível em: <https://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados>. Acesso em: 28.01.2021.

[5] IBGE. Instituto de Geografia e Estatítica. População brasileira em 28 de janeiro de 2021. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/index.html>. Acesso em: 28.01.2021.

[6] Estima-se que o Brasil atraia atualmente pouco mais de 6,5 milhões de turistas estrangeiros por ano.

[7] PETIÇÃO INICIAL. EMENDA. Ação revisional de cédula de crédito bancário. Determinação de aditamento da petição inicial, condicionando o prosseguimento do feito à prévia submissão à agravada da questão objeto da lide, mediante utilização da plataforma eletrônica consumidor.gov.br. Inadmissibilidade. Hipótese em que a r. decisão recorrida afronta o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição. Decisão reformada. Recurso provido. Dispositivo: deram provimento ao recurso.  (TJSP;  Agravo de Instrumento 2224837-09.2020.8.26.0000; Relator (a): João Camillo de Almeida Prado Costa; Órgão Julgador: 19ª Câmara de Direito Privado; Foro de Macatuba - Vara Única; Data do Julgamento: 12/02/2021; Data de Registro: 12/02/2021)

[8] Fredie Didier Jr. Um réquiem às condições da ação. Estudo analítico sobre a existência do instituto. Revista Forense, v. 351, p. 69-71.

[9] Conforme pontua Fredie Didier Jr: “Quando a Constituição fala de exclusão de lesão ou ameaça de lesão do Poder Judiciário quer referir-se, na verdade, à impossibilidade de exclusão de alegação de lesão ou ameaça, tendo em vista que o direito de ação (provocar a atividade jurisdicional) não se vincula à efetiva procedência do quanto alegado; ele existe independentemente da circunstância de ter o autor razão naquilo que pleiteia; é direito abstrato.” DIDIER JR, Fredie. Notas sobre a garantia constitucional do acesso à justiça: o princípio do direito de ação ou da inafastabilidade do poder judiciário. São Paulo, Revista de Processo, v. 108, p. 23-31, Out./Dez. 2002.

[10] CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. V. I. São Paulo: Saraiva, 1965. P.17, 25-27.

[11] Um marco relevante foi a edição do Decreto nº 10.197, de 2 de janeiro de 2020, que estabeleceu o Consumidor.gov.br como plataforma oficial da administração pública federal direta, autárquica e fundacional para a autocomposição nas controvérsias em relações de consumo.

[12] Embora expressivo o volume de reclamações, o Boletim Consumidor.gov.br 2019, publicado na plataforma em 14/06/2020, revela que havia, até aquele ano, apenas 1,8 milhão de usuários cadastrados. A quantidade é muito pequena considerando-se a população brasileira economicamente ativa. Disponível em: <https://www.consumidor.gov.br/pages/publicacao/externo/>. Acesso em: 28. jan. 2021.

Autor(es):

Curriculum:

MARIÉ LIMA ALVES DE MIRANDA
Presidente da Comissão Especial de Defesa do Consumidor da OAB Nacional
LAÍS GOMES BERGSTEIN
Secretária Adjunto da Comissão Especial de Defesa do Consumidor da OAB Nacional


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