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O santo de hoje é: Santo Anônimo

17 de março de 2021 - VANILO DE CARVALHO

A filósofa judia Hannah Arendt, de quem sou leitor e estudioso de seus livros, famosa por ter se questionado como o mal pode ter se transformado em trivialidade, como cidadãos tidos como normais (numa expressão brasileira atual: homens de bem), que trabalham, comerciam, tem suas relações amorosas, suas diversões, e são anônimos, são capazes de praticam o mal ilimitado. Sua teoria, diretamente exposta no seu livro "Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal." (1963), fruto de sua observação como jornalista do julgamento nazista Adolf Eichmann, depois de ter sido sequestrado pelo serviço secreto israelense, em Buenos Aire numa operação digna de qualquer filme de ficção do gênero, percebe que o criminoso da humanidade, não era um carrasco monstruoso, nem feio nem bonito, discreto, de  modos padronizados e o principal, sem reflexão, portanto, sujeito a qualquer regra por mais perversa que fosse.

Este indivíduo de aparência comum, de paletó e gravata, eximiu-se de qualquer responsabilidade e justificou-se como mero cumpridor das leis e normas estatais. Um burocrata. Que podia ser qualquer um outro. Um incógnito. Todavia, ele é a personificação da falência dos valores morais sociais mais básicos, caudados pela apatia da capacidade humana de pensar.

"Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança." É uma afirmação de Hannah Arendt, mas se não fosse revelada a autora, e por consequência o contexto temporal dela, tomaríamos para nós, os que vivemos os anos 2020/2021, a mesma afirmação.

As imagens de caixões as dezenas diariamente, os descasos e até deboches dos que ocupam o poder institucional, a disputa política que provoca diretamente mais mortes, uma quase indiferença com o enlutamento coletivo, tudo, e mais, faz dessa afirmação entre aspas, um dito para o nosso hoje!

Será que perdemos esperança mesmo? Que assumimos a barbárie? Que a nossa geração tragicamente provocou o próprio fracasso?

Como o burocrata comum Eichmann pode também representar o que vivemos hoje, o anônimo José, Lucimar, Luana, Valderina ou Valdecir, podem nos trazer de volta a esperança. Eles estão expostos ao vírus, a tenebrosa sombra do desemprego, ao transporte público semelhante a uma estufa de contaminação mortal, a humilhação das filas do auxílio emergencial e a fome. Esses anônimos, Conceição, Maria, Albertino, não desistem, fazem de tudo para alimentar os filhos, compadecem-se do vizinho sem trabalho e dividem com ele a cesta básica que mal daria para sua própria família. 

Quantos são os santos das maiores virtudes dentro das ambulâncias do SAMU, das enfermeiras exaustas, dos limpadores dos lixos contaminados, e por fim dos enlutados silenciosos.

Estes milhares, estes milhões me dão esperança, me desvela a possibilidade de futuro, me faz crer na bondade apesar de tudo. Como se fosse um novo começo, porque "apenas um raio de sol é suficiente para afastar várias sombras." São Francisco de Assis.

 

 

 

 

Autor(es):

Curriculum:

Advogado, professor universitário, conselheiro da OAB, presidente da Comissão de Justiça e Paz do Ceará (CNBB), membro da Academia Brasileira de Hagiologia, mestre em Negócios Internacionais, membro da Academia Brasileira de Cultura Jurídica, membro da Comissão Nacional do Exame de Ordem e curador do Museu Nacional da OAB.


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