A Defesa do Estado Democrático de Direito, da Democracia, da vida, do emprego e das liberdades
A temática da estabilidade das instituições inerentes à Democracia e ao Estado Democrático de Direito tem sido amplamente debatida na sociedade brasileira na atualidade, provavelmente ante os recentes rumos tomados na condução do Poder Político nesta República, razão pela qual se propõe a análise a seguir, sem qualquer pretexto de exaurir o tema, o qual é tão vasto quanto as inúmeras concepções sociais e políticas que o permeiam.
As digressões de Benjamin Constant, pensador e político francês, em célebre discurso1, acerca do conteúdo das liberdades para os povos antigos e a sociedade moderna são cruciais à plena compreensão da Democracia, do Estado Democrático de Direito, além de propiciarem uma necessária reflexão do panorama político brasileiro atual e da necessária limitação ao Poder Político, a fim de salvaguardar os pilares do aludido regime de governo e do sistema institucional mencionado. Retornando às divagações do político francês, realizadas no contexto das revoluções liberais2, aquele nos ensina que a liberdade dos povos modernos é para cada um o direito de não se submeter senão às leis, de não poder ser preso, detido, condenado, ou maltratado de nenhuma maneira, pelo efeito da vontade arbitrária de outrem; é o direito de dizer sua opinião, de escolher seu trabalho e de exercê-lo; de dispor de sua propriedade; de reunir-se a outros indivíduos, seja para discutir sobre seus interesses, ou professar o culto de sua preferência. Possibilita, ainda, influir sobre a administração do governo, inclusive pelo exercício do direito de petição. Em contrapartida, a liberdade dos povos antigos consistia na participação direta na vida política, deliberando em praça pública sobre guerra e paz, votando leis e pronunciando julgamentos3.
Agregada a tal concepção liberal, foram acrescidos os direitos sociais, ou de 2ª geração, sendo estes uma dimensão dos direitos de 1ª geração, ou de liberdade, mencionados por Benjamin Constant. Revelam prestações positivas, que devem ser proporcionadas pelo Estado, direta ou indiretamente, sendo corriqueiramente enunciadas em normas constitucionais, como é o caso da CRF/88, onde estão presentes, sobremaneira, nos artigos 6º ao artigo 10º, e que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, pois pretendem realizar a igualização de situações sociais desiguais. Constituem-se em pressupostos do gozo dos direitos individuais, na medida em que criam condições materiais mais propícias ao alcance da igualdade real, o que proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo das liberdades4.
O homem, enquanto ser dotado de individualidade, não se satisfaz apenas com o exercício da vida política, hoje traduzida primordialmente nas democracias contemporâneas como a possibilidade de escolher seus governantes e representantes encarregados de elaborar as leis que regem determinado país. A condição, e porque não dizer a alma humana, exige mais. Como um reflexo instintivo, o homem requer do Estado, por ele legitimado e constituído prestações negativas (direitos individuais), como a não agressão e/ou intromissão inadvertida do Estado, quanto ao direito à vida, ao exercício do voto, à liberdade de locomoção, expressão, informação, imprensa, manifestação, associação e de credo; e positivas (direitos sociais), de forma a garantir uma existência digna5, tais como: o fomento à criação de postos de trabalho visando garantir o pleno emprego, estruturas estatais que lhe assegurem o direito à vida, sobretudo aos mais necessitados (segurança, saúde pública e programas assistenciais relativos à moradia, alimentação e educação). Decerto, sociedade e Estado consistem em veículos de realização dos atributos inatos do homem como indivíduo6, isoladamente considerado e como membro do corpo social, não sendo um fim em si mesmos, tampouco mecanismos de garantia dos interesses de determinado grupo que temporariamente detém o poder político e/ou econômico.
A Democracia e o Estado de Direito são frutos da necessidade humana de exprimir sua individualidade e consciência social, uma vez que ao coibir o exercício arbitrário do Poder – sobretudo o político – possibilitam a realização de tais anseios (igualdade, liberdades, dignidade humana), o que denota ser indispensável a defesa de tais instituições, sob pena de ser ameaçada a própria ratio que legitima a constituição dos Estados. José Afonso da Silva, no entanto, adverte que Democracia e Estado de Direito não são sinônimos, sendo a primeira mais abrangente e o segundo consistindo em uma expressão jurídica da democracia liberal7.
Os movimentos sociais recentes que consistem no exercício de contrapoderes8 se inserem como importante ferramenta para o efetivo exercício da accountability9 e consolidação da democracia, coibindo qualquer tentativa de ameaçar o regime democrático e os valores por ele consagrados. Esse ideal de prestação de contas deve impor aos governos o dever de justificar suas tomadas de decisões sempre considerando os valores inerentes ao Estado de Direito, à Democracia e às liberdades. Não basta manejar a iniciativa de propor leis, editar medidas provisórias, decretos ou elaborar diretrizes de Estado e políticas públicas, deve o titular do Poder fazê-lo e mais: justificar sua conduta (e sua omissão) em consonância com os ditames inerentes aos Estado de Direito e à Democracia, sob pena de violar a ordem jurídica e ameaçar a estabilidade das instituições.
É crucial compreender que o Estado de Democrático de Direito10, a Democracia11 e os direitos derivados da dignidade humana apenas subsistem e são efetivamente exercidos de modo concatenado, pelo que devem ser objeto de defesa conjunta e permanente, pois integram um ciclo onde um serve como alicerce e ao mesmo tempo retroalimenta a subsistência do outro. Se não há efetiva democracia, concebida como governo de todos e para todos, não há o exercício material das liberdades, ao passo que há grupos excluídos do manejo das ferramentas essenciais à efetiva fruição das mesmas12. Sem o gozo de tais liberdades, não há Estado Democrático de Direito, pois este pressupõe o exercício de direitos inatos, como fundamento da limitação do poder estatal. Sem a separação e independência dos poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), um eficiente sistema de freios e contrapesos, e a primazia da Lei, mais modernamente concebida como o primado da juridicidade13, características imanentes ao Estado de Direito14 a potestade pode se configurar em arbítrio, o que ameaça a fruição efetiva dos direitos e garantias fundamentais, comprometendo a existência digna dos cidadãos em todas as suas projeções (positivas e negativas), fulminando o Estado Democrático de Direito, o qual por sua vez não existe modernamente sem estar atrelado aos ideários inerentes à Democracia, que igualmente pressupõe a liberdade e a igualdade.
A Constituição Dirigente de 198815 consagra todos os pilares colacionados acima, sendo ela o ponto de partida e de chegada, para aqueles que exercem funções estatais e para todos os cidadãos. Nessa esteira, a fim de encerrar a presente exposição, recorre-se à uma metáfora perspicaz do Ministro Luis Roberto Barroso, no sentido de que o Direito Constitucional, leia-se aqui, a Constituição, deve ser a janela pela qual se olha para o mundo16. A janela não é uma determinada ideologia política partidária, sendo essa um observador, que contempla a paisagem impregnado de suas concepções íntimas e que comumente altera sua posição e o ângulo pelo qual a observa, a fim de vislumbrar apenas um determinado objeto que mais a interessa. Por vezes altera a paisagem, mas não lhe é dado empreender alterações que violem sua essência, aquilo que lhe confere fundamento, sem descaracterizá-la e comprometer sua existência. É assim que se propõe que seja entendida a relação travada entre Poder Político e a Defesa da Democracia, do Estado Democrático, do direito à vida, ao emprego e às liberdades fundamentais, ou do contrário não restará paisagem a ser observada pelas gerações futuras.
1 Discurso pronunciado no Athénée Royal de Paris, 1819. Tradução de Loura Silveira, da edição dos textos escolhidos de Benjamin Constant, organizada por Marcel Gauchet, intitulada De la Liberté cliez les Modernes, extraído de http://www.fafich.ufmg.br/~luarnaut/Constant_liberdade.pdf, acesso em 06/07/2020.
2 A reflexão de Benjamin Constant acerca das liberdades e seu conteúdo na sociedade moderna teve como grande artífice a Revolução Francesa, que possuía como ideais apriorísticos a liberdade, igualdade e fraternidade. Nesse contexto, Diogo de Figueiredo Moreira Neto nos ensina que “as três revoluções liberais se tornariam as fontes conceptuais das manifestações do Poder Estatal Moderno, a saber, a Revolução Inglesa, consolidando a independência do Poder Legislativo, atribuído aos parlamentos, a Revolução Americana, consolidando a do Poder Judiciário, atribuído em sua cúpula às Cortes Supremas, e a Revolução Francesa, consolidando a do Poder Executivo como atribuição das Administrações Públicas”. MOREIRA NETO, Diogo. Democracia e Contra-Poderes, in Revista de Direito da PGE/RJ- Edição especial em homenagem a Marcos Juruena Villela Souto-Publicação do Centro de Estudos da PGE/RJ. Rio de Janeiro, 2012, p. 32.
3 Op cit, p. 2. Cumpre ainda transcrever outros trechos do discurso, hoje eternizado após sua transcrição. “O objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos os cidadãos de uma mesma pátria. Era isso o que eles denominavam liberdade. O objetivo dos modernos é a segurança dos privilégios privados; e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas instituições a esses privilégios” (...) “Devemos desconfiar, Senhores, dessa admiração por certas reminiscências antigas. Se vivemos nos tempos modernos, quero a liberdade que convém aos tempos modernos; se vivemos sob monarquias, suplico humildemente a essas monarquias de não tomar emprestados às repúblicas antigas meios de oprimir-nos. A liberdade individual, repito, é a verdadeira liberdade moderna. A liberdade política é a sua garantia e, portanto, indispensável. Mas pedir aos povos de hoje para sacrificar, como os de antigamente, a totalidade de sua liberdade individual à liberdade política é o meio mais seguro de afastá-los da primeira, com a consequência de que, feito isso, a segunda não tardará a lhe ser arrebatada”. (...) Longe, pois, Senhores, de renunciar a alguma das duas espécies de liberdade de que vos falei, é preciso aprender a combiná-las. As instituições, como diz o célebre autor da história das repúblicas na Idade Média, devem realizar os destinos do gênero humano; elas cumprem tanto mais esse objetivo quanto mais elevam o maior número possível de cidadãos a mais alta dignidade moral”.
4 DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. Ed Malheiros: São Paulo, 2005, p. 286/287.
5 Daí falar se em principio universal da dignidade humana, de origem jusnaturalista, do qual exsurgem os direitos fundamentais, cuja garantia de proteção é a pedra fundamental da existência do Estado Democrático de Direito, o qual é sempre bom relembrar, surgiu como uma reação ao poder divino e ilimitado dos monarcas absolutistas, cuja vontade não encontrava qualquer obstáculo, seja nas leis ou nas necessidades e integridade física e ensejos dos súditos.
6 O jusnaturalismo, amplamente associado ao iluminismo, se funda na existência de um direito natural. Nas palavras de Luis Roberto Barroso “sua ideia básica consiste no reconhecimento de que há, na sociedade, um conjunto de valores e de pretensões humanas, legítimas, que não decorrem de uma norma jurídica emanada do Estado, isto é, independem do direito positivo. Esse direito natural tem validade em sí, legitimado por uma ética superior, e estabelece limites à própria norma estatal”. BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 257..
7 DA SILVA, José Afonso. Op. cit, p. 112.
8 Diogo de Figueiredo Moreira Neto conceitua o fenômeno como “manifestações públicas, organizadas ou semiorganizadas, como as promovidas por associações privadas que se ocupam de interesses públicos, por grupos de pressão, por órgãos da imprensa escrita, falada, televisiva, por grupos estruturados na internet, ou por quaisquer modalidades de demonstrações ostensivas de opinião pública e, de modo destacado, as manifestações cada vez mais veementes dos movimentos de massa em reivindicação e protesto.” MOREIRA NETO, Diogo. Op. Cit. p. 36.
9 Mariana Montebello Willeman, explica que “aborda-se a accountability no setor público como a capacidade legal ou política de se assegurar que os agentes públicos, eleitos ou não, sejam responsáveis e responsivos em sua atuação, sujeitando-se a exigências de justificação e informação aos destinatários acerca de suas posturas e das decisões que adotam e, igualmente, submetendo-se a julgamentos em decorrência de sua boa performance ou em virtude de desvios ou más condutas, culminando a aplicação de sanções (que podem ser resultados eleitorais adversos ou sanções legalmente previstas)”. WILLEMAN, Mariana Montebello. Desconfiança institucionalizada, Democracia Monitorada e Instituições de Controle no Brasil, in Revista de Direito da PGE/RJ, volume 68, 2014, p. 241 e 246, passim.
10 O Estado Democrático de Direito, segundo José Afonso da Silva, ostenta as seguintes características básicas (i) submissão do império à lei, sendo a lei considerada como ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de representantes do povo, mas do povo cidadão; (ii) divisão de Poderes, que separe de forma independente e harmônica os Poderes legislativo, Executivo, e Judiciário, como técnica que assegure a produção das leis ao primeiro, e a independência e imparcialidade do último em face dos demais e das pressões dos poderes particulares; (iii) enunciado e garantia dos direitos fundamentais; (iv) realização social profunda pela prática dos direitos sociais, e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana. DA SILVA, José Afonso. Op.cit, p. 112/113 e 120, passim.
11 Vale ressaltar o elenco de pressupostos da democracia, trazidos por Dalmo de Abreu Dallari em obra seminal sobre a Teoria Geral do Estado. Assim, um Estado classificado como democrático deve praticar os seguintes ditames: (i) eliminação da rigidez formal; (ii) supremacia da vontade do povo, aqui entendida como a prevalência da vontade do povo como a de qualquer indivíduo ou grupo. Segundo o autor, quando um governo faz com que sua vontade se coloque acima de qualquer outra, não existe democracia;(iii) a preservação da liberdade; (iv) a preservação da igualdade. A respeito, ver DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, Editora Saraiva, p. 257/259, passim.
12 Segundo Rodrigo Brandão, “É bem de ver que, se, por um lado, vislumbra-se um vínculo de pressuposição recíproca entre direitos de primeira e segunda geração - basta pensar na inutilidade da tutela jurídica das liberdades civis a quem não possui condições materiais mínimas pra usufruí-las no amesquinhamento da liberdade de expressão de um analfabeto”. BRANDÃO. Rodrigo. São os Direitos Sociais Cláusulas Pétreas? Em que medida?”. Extraído de https://rbrandao.adv.br/wp-content/uploads/2017/06/sao-os-direitos-sociais-clausulas-petreas.pdf, acesos em 08.07.20, p. 17.
13 Para Luis Roberto Barroso, o pós- positivismo abandona a legalidade estrita, para adotar o conceito de juridicidade, no qual “sem desprezo à lei reconhece que o direito não se esgota nos textos legislados. Há valores compartilhados pela comunidade como um todo e pela comunidade jurídica, em particular, que integram a ordem jurídica, e devem ser assegurados pelos Tribunais, mesmo que não estejam materializados em uma norma posta”. BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional- Tomo III. Ed Renovar. Rio de Janeiro, 2005, p. 508.
14 Infelizmente temos nos deparado com inúmeras ameaças à independência dos Poderes e de instituições essenciais à justiça, que devem gozar de certa neutralidade para exercer suas atribuições em conformidade com as missões que lhe foram atribuídas constitucionalmente. Não se pode olvidar que a tônica do jogo democrático pressupõe acima de tudo a atuação no interesse público, e não particular, bem como a capacidade de diálogo entre as instituições e os atores envolvidos, devendo a sociedade estar ciente da ameaça ao regime democrático que tais pontos de pressão podem gerar.)
15 Tais direitos e valores encontram-se diluídos ao longo do texto Constitucional, encontrando presença mais explícita na enunciação dos Fundamentos da Republica (artigo 1º); nos Objetivos da Republica (artigo 3º), no rol de direitos e garantias individuais (artigo 5º), no elenco de direitos sociais (artigo 6º ao artigo 10º).
Autor(es):
Curriculum:
Presidente da Comissão Especial de Saúde Suplementar do Conselho Federal da OAB.
Contribuição doutrinária
Advogados e demais operadores do direito podem colaborar enviando artigos que abordem temas do direito e ciências afins e que envolvam as finalidades institucionais da entidade e da atividade da profissão de advogado. Os interessados devem encaminhar os artigos para biblioteca@oab.org.br