A vitória da democracia
O sábio de Viena, Hans Kelsen, autor de uma das mais significativas obras no campo da Ciência Jurídica, intitulada “Teoria Pura do Direito”, é também um consagrado pensador na área da Ciência Política. Nesta última, publicou vários títulos como: “A Democracia” e a “Ilusão da Justiça”, editadas em português, contém reflexões consideradas basilares à compreensão do fenômeno do poder, onipresente em todas as sociedades humanas. No caso do poder político, a invenção grega da democracia é alvo de diversas interpretações, uns a favor, outros contra, a exemplo de Platão, que atacava valores democráticos como a liberdade, dizendo ser esta última condutora da anarquia e da demagogia.
Karl Popper, também integrante do “Círculo de Viena”, no clássico “A Sociedade Aberta e seus Inimigos”, colocava Platão ao lado de Marx, como adversários da sociedade democrática. Dizia ser o pensamento de ambos condutores ao autoritarismo, perigo não de todo inafastável, agora e sempre.
No livro “A Democracia”, distingue governo do povo, de governo para o povo. Afirma caracterizar-se o primeiro pela participação popular, enquanto no segundo, as lideranças falam para o povo, afirmando defenderem os seus interesses. Em verdade, a democracia baseia-se no conceito de racionalidade e de liberdade do ser humano para pactuar a Lei Geral, regedora política e juridicamente da sociedade. Daí, deriva todo o constitucionalismo moderno.
Após a onda democrática que varreu o mundo após a vitória dos Aliados sobre o Nazi-Fascismo na Segunda Guerra Mundial em 1945, retornou à tentação do autoritarismo a pretexto das ineficiências do regime democrático acompanhada de falsas promessas de resultados imediatos, de combate a corrupção, de manutenção da lei e da ordem, de enfrentamento do marxismo cultural.
A democracia é imperfeita, admite a sua condição, mas ainda é a melhor escolha, lembrando para tanto a repetida frase de sir Winston Churchill: “Ninguém pretende que ela seja perfeita ou sem defeito. É a pior forma de governo com a exceção de todas as demais”.
Todos os países enfrentam dificuldades no plano da representação política, o Brasil, desde a independência, não logrou durante o Império, e depois em todas as fases republicanas, consolidar partidos políticos representativos da sociedade. Eles não passam de ajuntamentos, organizados para a obtenção de favores e de benesses do Estado.
Os partidos, para a democracia kelseniana, são a primeira forma de representação política da sociedade. Defensor do parlamentarismo, como forma de governo, sabia que para o seu exercício, era indispensável a existência de partidos políticos reais, capazes de manifestar os anseios e as reivindicações da população de determinado Estado.
Ao longo da História brasileira, pela fragilidade da sociedade civil, e em decorrência de sua baixa representatividade, outros grupos e instituições falaram em seu nome: as igrejas e forças armadas são citadas como exemplo. Nos anos vinte e trinta do século passado, a jovem oficialidade capitaneou o movimento chamado tenentismo. Promovendo algumas insurreições militares, defendia amplo programa de reformas, contemplando o sufrágio universal, incluindo o voto feminino, os direitos trabalhistas, sociais e previdenciários. Chegaram ao poder em 1930, os quartéis se manifestaram. O candidato derrotado nas eleições presidenciais, o presidente do Rio Grande do Sul, assim eram chamados os governadores dos estados pela Constituição de 1891, Getúlio Vargas, foi chamado a assumir a Presidência da República. O episódio ficou conhecido como a Revolução de Trinta.
Os tenentes dispunham do apoio das ascendentes classes médias, e implicitamente julgavam representá-las. Depois promovidos a generais, protagonizaram a Revolução de 31 de março de 1964, com o ideário de defesa da democracia e de combate à corrupção. Tiveram inegável apoio das classes médias, das igrejas e dos empresários.
Tomando por base esses antecedentes históricos, um nosso aluno do Mestrado da Universidade Portucalense perguntou-me se eu via alguma analogia entre os tenentes das décadas de vinte e trinta do século passado e os procuradores e juízes da Operação Lava Jato, na pretensão de representarem politicamente a sociedade brasileira. Assinalando terem eles o apoio da opinião pública e das classes medias. Respondi, ancorado na teoria de Kelsen que a representação política é de toda sociedade, e deve ser fazer nos canais próprios.
Membros do Ministério Público e da Magistratura, carreiras de Estado, atuam na área do controle do Poder político pelo Direito, são, portanto, contramajoritários. O espaço da política é da sociedade, e deve ser amplamente majoritário.
Recorrendo a Kelsen convém frisar: a democracia brasileira enfrenta atualmente riscos, dentre eles, a crença em falsos messias, e na pretensa e indevida possibilidade de buscar-se a representação política através de grupos e de canais impróprios. Ao mesmo tempo a sociedade começa a percebê-los e a reagir: pesquisa da Datafolha recentemente publicada apresentou resultados favoráveis atingindo o índice de 75% de aprovação da Democracia, o maior desde 1989.
É a resposta aos arreganhos autoritários de lembrar o Ato Institucional nº 5, e de ameaças de fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.
Ainda à luz da experiência histórica convém dizer: sem advogados, sem a advocacia, não há democracia, não há Justiça. E como profetizou Ruy Barbosa, os governos investem contra a Justiça, mas não terão por muito tempo a cabeça erguida. A democracia triunfará.
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Curriculum:
Advogado, Conselheiro Federal da OAB-MA e Presidente da Comissão Especial de Direito e Literatura.
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