Busato critica promiscuidade e decomposição moral da República
Rio de Janeiro, 21/09/2006 - “Dinheiro graúdo, sem procedência conhecida; personagens ligados à intimidade palaciana, misturados a outros, obscuros e de antecedentes pouco recomendáveis, numa promiscuidade chocante e incompatível com a graduação dos cargos em pauta”. Dessa forma classificou o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato, o novo escândalo que veio a público às vésperas das eleições brasileiras, envolvendo compra de dossiê contra candidatos de oposição ao Partidos dos Trabalhadores e com as suspeitas de encomenda recaindo a assessores e ministros intimamente ligados ao Palácio do Planalto.
Para Busato - que denunciou no Rio de Janeiro, a “decomposição moral” da República -, as explicações dadas até agora pelo PT e pelo presidente Lula para o caso “nada explicam”, não passando de tentativas de remeter a responsabilidade a personagens abstratos como as “elites golpistas”, que estariam conspirando contra o sofrido povo brasileiro. “Conversa fiada”, afirmou Busato. “O escândalo deixou de ser exceção e passou a ser regra em nossa República - e de tal forma que gerou, como subproduto, o que, a meu ver, é o maior dos escândalos: a acomodação da opinião pública diante de tal estado de coisas”.
As afirmações foram feitas por Busato na sessão de abertura do Colégio de Presidentes dos Conselhos Seccionais da OAB, realizada na sede da OAB fluminense. Durante a sua fala, Busato afirmou que estava decidido a não abordar os escândalos atuais para não interferir no processo eleitoral em curso e lembrou que não possui qualquer envolvimento com políticos ou compromissos com candidatos em campanha.
Mas questionou: “Como uma entidade como a OAB, que exerce o papel de tribuna da sociedade civil - e que historicamente tem mantido distância de governos, ideologias e partidos - pode manter-se indiferente à decomposição moral da República?”, afirmou. “Não se iludam, caros colegas: o que está em pauta - e a exigir de nós reação veemente, intransigente - é a decomposição moral da República”.
O presidente da OAB saiu em defesa de uma urgente e necessária reforma política e relembrou, como exemplos para justificar tal urgência, o rol de crises que vêm assolando o país há três anos - desde que assumiu a Presidência da OAB: mensalão, vampiros, sanguessugas, valerioduto, bingueiros, caixa dois e invasão da Câmara dos Deputados por baderneiros, a seguir liberados e impunes. “O povo brasileiro, mais uma vez, é a grande vitima de tudo isso. É ele que, novamente, será submetido a novo desencanto, a novo choque de descompostura por parte dos que deveriam figurar como exemplo e padrão de decência”.
A seguir, a íntegra do discurso feito pelo presidente nacional da OAB, Roberto Busato, durante a reunião do Colégio de Presidentes dos Conselhos Seccionais da entidade:
"Meus caros colegas
Nesta cidade do Rio de Janeiro, ex-capital do país e sede primeira do Conselho Federal da OAB, de tantas e tão memoráveis batalhas em prol da cidadania brasileira, reúne-se mais uma vez o Colégio de Presidentes desta nossa entidade.
Como de hábito, tais encontros são uma oportunidade de reflexão a respeito de nosso país, de suas instituições políticas.
A OAB, como sabemos, tem compromisso moral e estatutário com a República e suas instituições.
A Lei Federal que criou o Estatuto do Advogado e da OAB nos compromete, em seu artigo 44, inciso I, a “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de Direito, os direitos humanos, a Justiça Social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da Justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas.”
Isso, como é óbvio, nos envolve com o processo político-institucional do país, sem que, no entanto, nos autorize a nos envolver no jogo político-partidário-ideológico.
Nosso desafio é exatamente figurar nesse embate com o distanciamento necessário para não nos contaminarmos pelo varejo político, nem perdermos de vista a isenção que nos cabe como guardiães da cidadania.
E é por essa razão que me sinto no dever de mais uma vez trazer à reflexão deste eminente colegiado – a contragosto, mas no estrito cumprimento de um dever cívico e estatutário – temas desprimorosos e constrangedores, envolvendo nossa cada vez mais combalida e desacreditada República.
Em fim de gestão, era meu desejo aproveitar este encontro para um primeiro balanço de meu mandato, destacando o que nele vejo de mais construtivo para nossa entidade, bem como nossas relações com a sociedade civil, cujos ideais vocalizamos.
Seria bem mais interessante, por exemplo, estarmos aqui a celebrar recente vitória da Adin no Supremo Tribunal Federal, no dia 8 de junho passado, interposta pela Procuradoria Geral da República, que pretendia nos vincular ao Estado.
Por expressiva maioria de votos - oito a dois -, aquela Adin foi rejeitada. E com aquele resultado – que considero a maior vitória de minha gestão, e uma das maiores vitórias de toda a história de nossa entidade –, a OAB livrou-se para sempre do risco absurdo de ser estatizada.
Poderíamos aqui estar tratando apenas disso e dos ganhos que isso representou para a cidadania.
Eis, porém, que novo escândalo volta a nos surpreender. Não sei se a palavra surpresa aplica-se efetivamente ao caso.
Afinal, desde minha posse, há quase três anos, convivemos com uma sucessão ininterrupta de escândalos, cada qual mais atordoante. Cada qual mais vexaminoso.
E o escândalo de agora – o escândalo da vez - exibe os mesmos ingredientes dos anteriores:
dinheiro graúdo, sem procedência conhecida; personagens ligados à intimidade palaciana, misturados a outros, obscuros e de antecedentes pouco recomendáveis, numa promiscuidade chocante e incompatível com a graduação dos cargos em pauta; explicações contraditórias, que nada explicam; e tentativas de remeter a responsabilidade a personagens abstratos como as tais “elites golpistas”, que estariam conspirando contra o sofrido povo brasileiro.
Conversa fiada.
O povo brasileiro, mais uma vez, é a grande vítima de tudo isso. É ele que, novamente, será submetido a novo desencanto, a novo choque de descompostura por parte dos que deveriam figurar como exemplo e padrão de decência.
Fazem, porém, exatamente o oposto. Agem como predadores. Por onde passam, semeiam descrédito e corroem as bases morais da República.
E a cidadania perplexa pergunta: O que fazer diante de tudo isso?
Pessoalmente, estava decidido a não abordar o tema dos escândalos do governo Lula, para não interferir no processo eleitoral em curso - não obstante sua relevância e o fato de que esses escândalos permearam todo o período de meu mandato na OAB.
Considerei, porém, mais sensato aguardar o término das eleições. Mas, diante do escândalo atual, construído exatamente em face do processo eleitoral, como silenciar?
Como uma entidade como a OAB, que exerce o papel de tribuna da sociedade civil – e que historicamente tem mantido distância de governos, ideologias e partidos -, pode manter-se indiferente à decomposição moral da República?
Não se iludam, caros colegas: o que está em pauta – e a exigir de nós reação veemente, intransigente – é a decomposição moral da República.
Jogaram no esgoto a República de Ruy Barbosa, Prudente de Morais, Juscelino Kubitschek, Gustavo Capanema, Ulysses Guimarães, Teotônio Vilela, Tancredo Neves e tantos outros homens públicos ilustres.
Não há maior desserviço à Pátria que passar à opinião pública – ao cidadão-contribuinte, que com seus impostos sustenta a máquina do Estado - a idéia de que política é intrinsecamente suja e que é impossível conduzi-la sem sujar as mãos.
Isso é um embuste – crime de lesa-humanidade!
A política pode – e precisa ser – nobre, sim! Ela é uma conquista da civilização humana. Foi concebida como uma alternativa à barbárie. Nos seus primórdios, o ser humano resolvia seus conflitos por meio da guerra e da força física.
E a política surge como instância de administração pacífica e civilizada de conflitos.
Torná-la sinônimo de corrupção e amoralidade é a maior das violências, superior mesmo àquela perpetrada pelas ditaduras. É a volta à barbárie.
A política – a verdadeira política, a política com “P” maiúsculo, de que falava Ruy Barbosa - não é indecente. Não é malsã.
Muito pelo contrário, é – pode e precisa ser – fonte de elevação dos padrões de conduta, como a idealizaram Platão e Aristóteles e tantos outros pensadores eminentes da história humana.
Precisamos resgatar esses conceitos. Precisamos resgatar a memória de alguns de nossos “Pais da Pátria”, personagens que estão na origem de nossa formação nacional – e que, com seu exemplo, integridade, patriotismo e despojamento, marcaram moralmente a história do Brasil.
O Brasil de Tiradentes, José Bonifácio, Joaquim Nabuco, Dom Pedro II, Sobral Pinto, Luiz Carlos Prestes, Raymundo Faoro, Dom Hélder Câmara e Dom Luciano Mendes de Almeida.
Um Brasil real, digno, trabalhador, e que precisa ser restabelecido no comando de seu destino.
Esse resgate é o grande desafio da sociedade brasileira, que precisa recuperar a crença em si mesma. É preciso que se restaurem valores que já cultuamos com maior devoção no passado.
A crença na honestidade, na lealdade, na solidariedade. A crença no ser humano.
Recapitulando estes quase três anos de mandato à frente da OAB, vejo que vivemos dias adversos, que – espero - hão de ser lembrados no futuro como um penoso transe histórico que há de nos conduzir a um estágio mais maduro como nação.
Dias após a minha posse, em fevereiro de 2004, eclodia o escândalo Waldomiro Diniz. Pensamos inicialmente tratar-se de caso isolado. Grave, mas isolado.
Descobriu-se posteriormente, porém, que o então subchefe da Casa Civil da Presidência da República, Waldomiro Diniz, era, na verdade, a ponta de um imenso iceberg.
E esse iceberg só seria melhor visualizado um ano e meio depois, através das denúncias de Roberto Jefferson, parlamentar que integrava a base governista e conhecia em detalhes o modus operandi de seus parceiros.
Tudo o que denunciou foi confirmado pelas investigações das três CPIs e pelo Ministério Público. Desde então, escândalo deixou de ser exceção e passou a ser regra em nossa República – e de tal forma que gerou, como subproduto, o que, a meu ver, é o maior dos escândalos: a acomodação da opinião pública diante de tal estado de coisas.
Mensalão, vampiros, sanguessugas, valerioduto, bingueiros, caixa dois, invasão da Câmara dos Deputados por baderneiros a seguir liberados e impunes - ninguém mais parecia se espantar com tantas falcatruas.
O procurador-geral da República, dr. Antonio Fernando de Souza, em sua denúncia-crime ao Supremo Tribunal Federal, mencionou 40 personalidades de destaque – entre parlamentares, ministros, empresários, integrantes do que classificou de “organização criminosa”, empenhada em perpetuar-se no Poder.
O chefe dessa quadrilha – e ele usou exatamente a expressão “quadrilha” – era, segundo ele, o mais influente personagem do governo, o então ministro-chefe da Casa Civil e deputado federal José Dirceu.
De lá para cá, outros ministros foram enquadrados em condutas delituosas: o da Fazenda, Antonio Palocci – que, apesar disso, é candidato a deputado federal; o da Saúde, Humberto Costa, candidato do PT ao governo de Pernambuco; o da Comunicação Social, Luiz Gushiken, que continua dentro do governo. Etc.
Nada, do ponto de vista penal, aconteceu – e tudo prossegue no melhor dos mundos. O presidente da República, em seus discursos, procura reabilitar os amigos enquadrados, e remete tudo a uma suposta má vontade ou intriga oposicionista.
E eis que, às vésperas das eleições, novo – e cabeludo - escândalo vem a público: a tentativa de montagem de um dossiê contra o candidato oposicionista ao governo de São Paulo, José Serra.
Como – pergunto novamente - silenciar diante de mais um escândalo? Escândalo que envolve – mais uma vez – muito dinheiro (dinheiro sem procedência conhecida) e personagens da intimidade presidencial.
Um deles, sr. Freud, é lotado na secretaria particular do presidente e é seu segurança pessoal e de sua família há 17 anos.
Tem, como Waldomiro Diniz tinha, gabinete no Planalto, ao lado do gabinete presidencial.
Outro implicado, sr. Osvaldo Bargas, que ofereceu o dossiê à revista Época, é amigo de Lula dos tempos do sindicalismo. Ocupou cargo importante no atual governo: foi secretário de Relações do Trabalho, do Ministério do Trabalho.
Sua esposa é secretária-particular do presidente da República.
Outro operador desse escândalo, o sr. Jorge Lorenzetti, trabalhava na campanha da reeleição como “analista de risco e de mídia“ e freqüentava há tempos a intimidade presidencial, sendo o churrasqueiro da Granja do Torto - e, apesar de sua formação como enfermeiro, exercia a função de diretor do Banco do Estado de Santa Catarina.
Possui duas ONGs – uma que centraliza cooperativas de frutas e outra voltada para a área trabalhista. Juntas, essas ONGs receberam dos cofres públicos, no curso do atual governo, mais de R$ 50 milhões.
Há ainda um diretor do Banco do Brasil, que, apesar do cargo, trabalhava na campanha da reeleição, e o presidente do PT, Ricardo Berzoini – que ocupou dois ministérios no atual governo e coordenava o comitê eleitoral o presidente-candidato.
Há mais: uma quantia expressiva – R$ 1,7 milhão -, recolhida em espécie em sacolas, destinadas a comprar um dossiê com acusações ao candidato José Serra.
Ora, se há alguma informação desabonadora ao referido candidato – ou a quem quer que seja – precisa vir a público independentemente de montagens ou dossiês.
O próprio candidato Serra deveria ser o mais interessado em esclarecer os fatos, pois de alguma forma seu nome foi lançado numa zona de sombras.
Perguntaram-me, em recente evento, por que não mencionava também casos obscuros do governo passado. Respondi – e repitoi-o agora – que, se não o fiz, foi por uma única razão: meu mandato à frente da OAB alcançou apenas o atual governo.
Coube a meus antecessores – Reginaldo de Castro e Rubens Approbato Machado – exercerem esse papel crítico em relação ao governo atual.
Nada impede, porém, que repita o que eles, dentro da postura crítica que a OAB historicamente exerce, já o fizeram: que também venham a ser examinadas as denúncias daquela época, envolvendo, entre outras coisas, o processo de privatizações.
Não tenho envolvimento ou compromissos com candidatos ou partidos. Há pouco, em face das denúncias em pauta, um comitê de candidato à Presidência propôs-me gravar depoimento crítico ao governo Lula, a propósito do mais recente escândalo.
Recusei e expliquei: a OAB não sobe em palanque, nem faz proselitismo eleitoral. Não significa, no entanto, que esteja de costas para as eleições, para a realidade institucional do país. Muito pelo contrário.
O desengajamento aumenta nossa autoridade moral para denunciar, fiscalizar.
Denunciamos a indecência dos grampos nos gabinetes de ministros do Tribunal Superior Eleitoral. Denunciamos a omissão do Congresso Nacional, deixando, apesar de todos os escândalos, de fazer a reforma eleitoral. E, mais do que denunciar e falar, agimos.
Instalamos, mês passado, no âmbito do Conselho Federal, o Fórum da Cidadania para a Reforma Política, que pressionará o futuro Congresso para que mude nossa política, tornando-a mais eficaz, transparente e republicana.
O Brasil vive uma espécie de Armagedon bíblico, em que o bem e o mal se digladiam, nas ruas e nas instituições.
Não há complacência possível na luta contra o crime. Ele deve – precisa – ser banido de todos os ambientes em que se infiltrou: nas ruas, nos palácios e gabinetes.
O que assistimos nos atos de vandalismo do MLST, depredando as instalações da Câmara dos Deputados, ou nas ações criminosas do PCC não se iludam: são metástases de um tumor cujo epicentro está não nas ruas, mas nos palácios e gabinetes refrigerados.
Precisamos promover com toda a urgência a reforma política – mãe de todas as reformas – e promover uma concertação entre os homens de bem deste país, que felizmente existem e podem ser encontrados em todos os partidos e instituições.
Essa a missão do meu sucessor na Ordem: acompanhar e participar da reconstrução moral, política e institucional deste país, premissa básica para a realização do sonho de todos nós – a superação das desigualdades, a construção de um Brasil mais justo e próspero. Um país que volte a acreditar em si mesmo.
Um Brasil efetivamente de todos – não como slogan publicitário, mas como realidade efetiva.
Muito obrigado."