OAB: quebra de sigilo foi ação típica de governo totalitário
Florianópolis (SC), 28/03/2006 – O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato, sustentou hoje (28) que a violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa, que resultou na demissão do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, “foi uma ação típica dos regimes totalitários e uma agressão ao Estado democrático de Direito”. Segundo ele, “Stálin não faria diferente”. Busato disse desconhecer outro momento na história do Brasil democrático “em que o Estado tenha sido tão explícito na sua truculência, tão invasivo na privacidade do cidadão quanto nesse episódio”. Ele fez estas afirmações ao discursar na abertura do seminário internacional “Corrupção e Sociedade”, promovido pelos Tribunais de Contas dos Estados no Centro de Convenções Centro Sul, da capital catarinense.
Para o presidente nacional da OAB, os responsáveis pelo que chamou de “triste episódio” – que resultou também em demissão do presidente da Caixa Econômica Federal, Jorge Mattoso – violaram o sigilo do caseiro com a certeza da impunidade, mas subestimaram a capacidade de indignação da sociedade brasileira. “Venceu a cidadania, embora a um custo alto para a credibilidade das instituições do Estado”, observou Busato. Ele lembrou que, diante das denúncias do caseiro, num primeiro momento, “o presidente da República solidarizou-se automaticamente com os infratores e prometeu preservá-los a todo custo, mas acabou tendo que engolir as próprias palavras e demiti-los”.
De acordo com Busato, o que ocorreu nesse episódio representa uma visão mais que autoritária, totalitária do Estado. “Vejam bem que mencionei a palavra totalitário, e não autoritário que é um grau de arbítrio mais tênue”, assinalou. “No totalitarismo não há ética, lei ou limites; as razões de Estado confundem-se com as razões de quem o ocupa circunstancialmente”, observou.
No pronunciamento, o presidente nacional da OAB, além de destacar que o que aconteceu ao caseiro enquanto cidadão foi uma invasão inadmissível de sua privacidade por agentes públicos do primeiro escalão, salientou que o caso que culminou com a demissão de Palocci e Mattoso teve origem nas relações promíscuas entre interesse público e privado. “Quanto amigos e ex-assessores de Antonio Palocci instalam-se em Brasília e se valem de suas relações com o então todo-poderoso ministro da Fazenda para obter atendimento a interesses empresariais privados, temos uma relação incestuosa entre público e privado”.
Busato voltou a pedir a rigorosa apuração das acusações do caseiro ao ex-ministro da Fazenda e seu possível envolvimento na quebra do sigilo bancário, chamando a atenção para o que considerou um fato espantoso: “Agora o ex-ministro, colocado diante dessas acusações, invocou sua privacidade para defender-se”. E acrescentou: “Ora, um ministro da Fazenda, guardião da moeda e do patrimônio público, não tem direito a esse tipo de privacidade. Não pode freqüentar casas suspeitas, ocupadas por lobistas, pois as relações pessoais e profissionais de um ministro de Estado, de um governante, pertencem à esfera publica”.
A seguir, a íntegra do discurso do presidente nacional da OAB, Roberto Busato:
"Senhoras e senhores,
O conflito de interesses entre setor público e setor privado é, desde nossas origens como nação, fator de crises e de descaminhos na gestão do bem comum.
Basta ver a presente crise: que é ela, senão esse conflito entre o público e o privado - a relação promíscua entre ambos?
Façamos, a propósito, uma breve reflexão introdutória ao tema desta palestra, analisando o triste episódio que resultou na demissão do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e do presidente da Caixa Econômica Federal, Jorge Mattoso.
Desconheço outro momento na história do Brasil democrático em que o Estado tenha sido tão explícito em sua truculência, tão invasivo na privacidade do cidadão quanto nesse episódio de violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa.
Foi uma ação típica dos regimes totalitários. Uma agressão ao Estado democrático de Direito.
Stalin não faria diferente. Vejam bem que mencionei a palavra totalitário – e não autoritário, que é um grau de arbítrio mais tênue.
O que se deu expressa uma visão mais que autoritária, totalitária do Estado. Não há ética, lei ou limites. As razões de Estado confundem-se com as razões de quem o ocupa circunstancialmente.
Diante de uma acusação, busca-se desqualificar o acusador, na vã ilusão de que assim se desqualifica a acusação em si. Ainda que o caseiro houvesse sido remunerado para fazer as acusações que fez – e não foi esse o caso -, mas ainda que fosse, suas acusações teriam que ser investigadas.
A certeza da impunidade era de tal ordem que os atores desta ópera-bufa subestimaram a capacidade de indignação da sociedade brasileira. O presidente da República solidarizou-se automaticamente com os infratores e prometeu preservá-los a todo custo. Acabou tendo que engolir as próprias palavras e demiti-los. Venceu a cidadania, embora a um custo alto para a credibilidade das instituições do Estado.
Quando amigos e ex-assessores de Antonio Palocci instalam-se em Brasília e se valem de suas relações com o todo-poderoso ministro da Fazenda para obter atendimento a interesses empresariais privados que intermediam obscuramente, temos a relação incestuosa entre público e privado.
Uma relação que deprecia moralmente as instituições do Estado e, sistematicamente, lesa o Tesouro Nacional.
O mais espantoso é que o agora ex-ministro, colocado diante das acusações do caseiro, invocou sua privacidade para defender-se. Ora, um ministro de Estado – sobretudo, um ministro da Fazenda, guardião da moeda e do patrimônio público – não tem direito a esse tipo de privacidade.
Não pode freqüentar casas suspeitas, ocupadas por lobistas. As relações pessoais e profissionais de um ministro de Estado, de um governante, pertencem à esfera pública. Quem não quer ser avaliado sistematicamente pela sociedade e a ela prestar contas de seus atos deve exercer outro ofício. A vida pública, perdoem a redundância, é pública – e mais ainda numa República.
A negligência diante desses conceitos, entre nós, infelizmente, é antiga.
Quando o escrivão Pero Vaz Caminha, a certa altura de sua Carta ao Rei Dom Manuel - o primeiro documento da História do Brasil -, pede um emprego para seu sobrinho na Corte de Lisboa, o que estava fazendo senão misturando o interesse privado com o público? Misturando seus interesses familiares com os do Estado?
A expressão inglesa lobby designa, em nossos tempos, o campo de batalha em que esse conflito se desenrola.
Lobby, como se sabe, é aquele espaço do hotel em que os hóspedes se encontram e conversam. É ali que os grupos de pressão buscavam primariamente – e continuam buscando - abordar e influir sobre autoridades eventualmente hospedadas.
Washington, como Brasília, é cidade administrativa, em que a maioria das autoridades federais não reside – apenas se hospeda. Daí o termo norte-americano lobby – oriundo desse espaço de convívio dos hotéis - ter servido para hoje designar um conceito de ação política. Um conceito que tanto se aplica ao mal como ao bem.
Lobby é, em síntese, pressão para influenciar decisões.
Até aí, é procedimento que praticamente nasceu com a humanidade. Há o lobby bom e o lobby mau.
Quando os trabalhadores se organizam para pressionar às claras o Congresso Nacional em defesa de seus direitos, praticam o lobby bom.
Quando banqueiros e empreiteiros, na surdina, trocam financiamento eleitoral em caixa dois por alianças administrativas com os governantes, praticam o lobby mau.
A Ordem dos Advogados do Brasil, ao longo de sua história, ao vocalizar publicamente as causas da cidadania – e por elas lutar junto ao Poder Público – exerceu, e continua exercendo, pressão legítima em defesa de interesses legítimos.
Legítimos e transparentes.
Essa pressão é, pois, necessária e inevitável. É o lobby bom, o lobby da sociedade civil organizada.
O Poder só funciona sob pressão. Resta, porém, saber quais pressões são legítimas e em que ambiente devem ser exercidas. Daí a importância de uma iniciativa que há anos se arrasta no Congresso Nacional – mais precisamente há 23 anos: a regulamentação do lobby.
Em 1983, época em que a profissionalização do lobby entre nós apenas engatinhava, o senador Marco Maciel apresentou proposta nesse sentido, sustentando a necessidade de transparência dessa atividade, em nome do interesse público.
Sua proposta, porém, foi engavetada e só foi reapresentada em 1989, tramitando como projeto de lei, de nº 203.
Aprovada no ano seguinte, 1990, foi para a Câmara dos Deputados, onde recebeu o nº 6.132 e lá permanece até hoje. Engavetada.
Dezesseis anos! E isso para uma atividade onipresente naquele âmbito. O que mais encontramos no Congresso Nacional, hoje, mais mesmo que parlamentares, são lobistas.
Lobistas profissionais – do bem e do mal. Em Brasília, multiplicam-se escritórios de lobbies – escritórios e mansões.
Mansões alegres, em que fervilham festas e programas com “recepcionistas”, que na realidade são praticantes daquele ofício que se costuma designar como “a mais antiga das profissões” são hoje utilizadas no exercício espúrio do lobby mau.
Isso mostra a variedade das modalidades de lobby, desde que essa atividade tornou-se profissão, fonte de renda – e de muita renda.
No entanto, há, como já disse, o lobby bom da sociedade civil, em busca de ampliação de direitos sociais.
Tudo isso mostra a urgência de se enfrentar essa questão.
Não mais é possível adiá-la, sob pena de submetermos a nação a constrangimentos constantes e sucessivos.
O episódio que envolve presentemente o ministro da Fazenda está longe de ser caso único e isolado. É fruto do descuido com esse tema, descuido que permite que o privado continue a invadir e dominar a esfera pública.
Já o vivemos antes, por diversas vezes. Estão ainda na memória de todos os tristes acontecimentos do período Collor. Lá estavam todos os ingredientes da crise atual, que apenas os ampliou.
Ao tempo do governo Itamar Franco, o Congresso Nacional viveu o lamentável episódio da CPI dos Anões do Orçamento.
Que foi aquele episódio senão um espetáculo incestuoso entre o público e o privado? Grupos de pressão – isto é, de lobistas -, ligados a empreiteiras, serviam-se de parlamentares para incluir obras de seu interesse no Orçamento da União.
Em troca, parlamentares e lobistas compartilhavam fortunas egressas dos cofres do Tesouro. De quebra, campanhas eleitorais, sempre com recursos do caixa dois, eram financiadas, tornando-se os eleitos funcionários de interesses privados – e não funcionários públicos, servidores do Estado. Funcionários privados e obscuros, sem qualquer transparência perante o contribuinte, que, no final das contas, financiava tudo.
Eis aí a origem e razão de ser do déficit público. Déficit financeiro e moral.
Para combatê-lo, é inútil recorrer apenas a fórmulas matemáticas, expedientes contábeis e coisas do gênero. É preciso combater a sangria de dinheiro público que, com fluência fluvial, amazônica, corre pelo subsolo da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes em Brasília.
O lobby mau movimenta essa engrenagem, que sorve anualmente milhões e milhões de reais e contamina moralmente os agentes públicos. Mais que política ou econômica, a crise que aí está é moral.
Somente a superaremos no dia em que nossos representantes, eleitos por nós, se convencerem que a prioridade das prioridades reside numa iniciativa: a estatização do Estado brasileiro.
Ou, se preferirem outro termo, a desprivatização do Estado.
E essa iniciativa, sem a menor sombra de dúvida, passa pela regulamentação do lobby. Se não é possível suprimir essa atividade – e sabemos que não é, pois, como disse, faz parte do jogo legítimo do poder -, é, no entanto, possível regulamentá-la.
É possível, necessário, urgente e indispensável fazê-lo, dando-lhe transparência, resguardando os profissionais sérios dos indecorosos, preservando os agentes públicos e as instituições.
Penso que a regulamentação do lobby é parte indissociável da reforma política, embora jamais seja mencionada quando se trata desse assunto.
Por essa razão, considero oportuno que este Painel tenha colocado este tema em exame – e me tenha dado a chance de abordá-lo. Faço-o de maneira tópica, dado o alcance e densidade da matéria e a exigüidade do tempo para aprofundá-la.
Mas, desde já, quero levá-la ao exame do Fórum Permanente da OAB, instalado no âmbito do Conselho Federal, para tratar da reforma política. E aqui quero fazer uma analogia a uma citação clássica de Georges Clemenceau, lembrando que política é assunto importante demais para ficar aos cuidados apenas dos políticos.
Por isso, digo que o que precisamos é mais que uma reforma política. Precisamos de uma reforma da política.
Não se trata apenas de rever essa ou aquela regra, mas rever – e transformar – o próprio proceder dos agentes políticos, numa reforma efetivamente de mentalidades.
Nessa reforma, deve constar – precisa constar – a regulação dos grupos de pressão. Dos lobbies.
Devemos nos inspirar – mas não necessariamente copiar – em países que já cuidaram dessa matéria há mais tempo.
Confesso que pessoalmente não sou especialista na questão, embora constate a necessidade de vir a sê-lo, em face da emergência da reforma política.
Não há dúvida de que os Estados Unidos, que têm uma relação pioneira com a elaboração legislativa do tema, devem nos servir de fonte de consulta e estudo.
É na legislação daquele país que se inspirou o citado projeto do senador Marco Maciel, que, no entanto, é limitado, por se ater à regulação do lobby no âmbito do Poder Legislativo. É preciso ampliar essa perspectiva para o âmbito de todo o Estado.
Vigora nos Estados Unidos o Federal Regulation of Lobbyng Act (sucessivamente emendado desde sua promulgação, em 1946). Os lobistas de Washington têm de fornecer às secretarias-gerais do Senado e da Câmara de Representantes sua identidade, endereço, nome da entidade, valor das receitas e despesas, bem como preencher dois tipos de relatórios: declaração de registro e as informações financeiras trimestrais.
Segundo informa Paulo Kramer, professor da Universidade de Brasília e especialista nessa matéria, da década de 70 para cá, a multiplicação de leis e regulamentos destinados a cobrar mais transparência dos lobistas norte-americanos que operam tanto na capital quanto nos 50 estados daquele país foi impulsionada, principalmente, por movimentos em prol da limitação das doações financeiras a campanhas de políticos aliados, grande ferramentas de influência a serviço dos lobistas.
O teto para contribuições diretas a um candidato é de mil dólares por doador e por eleição. Mas continua muito difícil controlar a transparência de somas milionárias doadas aos dois maiores partidos – o Democrata e o Republicano.
Fundada em 1979, a American League of Lobbysts, maior entidade do setor, congrega centenas de empresas de relações públicas, escritórios de consultoria política e organizações profissionais. E procura defendê-los do que considera rigor excessivo de certas propostas invocando a Primeira Emenda da Constituição.
A Primeira Emenda protege a liberdade de expressão e o direito dos cidadãos de peticionar ao governo para reparar ofensas e injustiças. Na sociedade global do conhecimento e da informação, os lobistas do bem podem estabelecer respeitabilidade diante da opinião pública abastecendo o processo decisório e a mídia com dados relevantes, precisos, tempestivos e dignos de crédito, mostrando valor socioeconômico e ambiental nos seus pleitos.
Para tanto, é preciso, antes de mais nada, que se crie um ambiente de transparência e se estabeleçam regras claras e justas. No ambiente que temos, informal e obscuro, lobby tornou-se sinônimo de ação duvidosa, liminarmente suspeita, o que resguarda os maus lobistas e remete o inevitável jogo de pressões para os subterrâneos do poder. Para as festas da sra. Jeane Maria Corner.
Se a regulação não elimina o lobismo do mal, ao menos reduz substancialmente sua presença e ação na esfera pública.
Com isso, reduz a margem de prejuízos do contribuinte e, o que é mais importante, reduz o desgaste e o descrédito dos agentes públicos e das instituições do Estado.
O resgate moral das instituições políticas, sem o qual nossa democracia se enfraquecerá cada vez mais, requer que o jogo de pressões no âmbito decisório do poder se dê à luz do sol.
Democracia pressupõe pressões – legítimas e ilegítimas. Não pressupõe, porém – e ao contrário repele – obscuridade.
Precisamos iluminar os embates. Não suprimi-los.
Grato pela oportunidade destas palavras e que Deus ilumine o Brasil.
Muito obrigado".