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Joênia, a 1ª índia a se tornar advogada no Brasil

segunda-feira, 13 de dezembro de 2004 às 07h00

Brasília,13/12/2004 - Em todos os seus documentos oficiais, ela é conhecida como Joênia Batista de Carvalho. Mas este não é o nome verdadeiro da primeira mulher indígena a se tornar advogada no Brasil, apenas um escolhido aleatoriamente por um funcionário público quando seus pais a trouxeram de sua aldeia na Amazônia para obter sua certidão de nascimento.

Se sua preocupação com questões de identidade cultural e autonomia derivam deste incidente, Joênia não sabe ao certo. Mesmo assim, quando ela foi para os Estados Unidos no início deste ano, para receber o Prêmio Reebok por seu trabalho de direitos humanos, ela escolheu aceitar o prêmio como Joênia Wapixana, usando o nome da tribo à qual pertence.

"Tudo o que faço visa voltar atenção para nossa comunidade, para que outros, de fora, possam ver quem realmente somos", explicou Joênia, advogada do Conselho Indígena de Roraima, na capital deste Estado no extremo norte do Brasil. "Por que nós, como povo, conseguimos continuar existindo? Porque sabemos de onde viemos. Por termos raízes, podemos ver a direção na qual queremos ir."

Apesar de ter apenas 31 anos, Joênia despontou como uma das mais eficazes defensoras da causa indígena no Brasil, a perdição de fazendeiros, mineradores e madeireiros que querem se estabelecer em terras indígenas. Mas diferente dos caciques tribais e pajés com quem trabalha estreitamente, sua arma é a lei do homem branco, que ela luta para que seja obedecida por todos, incluindo aqueles que a fazem.

Em Brasília, ela é uma figura conhecida, requisitando injunções e expondo casos para juízes com o dobro de sua idade. Em Washington no início deste ano, ela apresentou uma queixa junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, buscando forçar o governo brasileiro a concluir a demarcação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, destinada como lar para seu povo e meia dúzia de outras tribos.

Graças em parte à persistência de Joênia, tal caso também está sendo julgado pelo Supremo Tribunal Federal, com uma decisão histórica esperada para o próximo ano.

Mais recentemente, sua equipe legal teve sucesso em suspender uma série de decisões de um juiz simpático aos produtores de arroz e fazendeiros, que forçaria milhares de índios a deixarem terras que ocupam há gerações.

Tudo isto está transcorrendo muito distante das isoladas aldeias amazônicas de Truaru e Guariba, onde Joênia passou seus primeiros anos imersa em uma cultura tradicional que estava apenas começando a sentir o pleno impacto do avanço da fronteira amazônica.

"Minha avó não sabia nem falar português", ela lembrou, mas "minha mãe e a maioria das pessoas de sua geração falavam muito pouco wapixana, o que significa que algo se perdeu lá."

Quando Joênia tinha 7 ou 8 anos, seus pais se separaram. O pai dela, que ela disse que "nunca se sentiu à vontade permanecendo em um mesmo local por muito tempo", voltou para a floresta para ser um caubói, enquanto sua mãe veio para esta cidade de 200 mil habitantes e encontrou trabalho como empregada doméstica.

Para ganhar um dinheiro extra, seus filhos ajudavam vendendo frutas nas ruas e lavando roupa. As crianças também tinham que freqüentar a escola, mas os três irmãos mais velhos de Joênia tiveram problemas lá e eventualmente a abandonaram, se tornando operários de construção.

"Havia muita discriminação contra os índios", e seus irmãos sentiram isso profundamente, ela lembrou. "Sempre lhe dizem que você fede, é preguiçoso, feio, estúpido ou chamam você de caboclo", uma palavra usada para descrever nativos que perderam sua identidade cultural e se misturaram com os camponeses comuns. "Eles se sentiram bloqueados e então recuaram."

Joênia, por outro lado, entregou-se imediatamente aos estudos, obtendo notas altas e conquistando prêmios acadêmicos e a atenção e apoio de alguns poucos professores solidários. Mas ela também sentiu o preconceito.

"Sua identidade está no seu rosto e no seu cabelo, você não pode negar", disse Joênia. "Eu era a única indígena na minha classe, então é claro que me sentia diferente. Além disso, nós tínhamos pouco dinheiro, o que significava que eu não tinha roupas apropriadas."

Quando Batista concluiu o colégio no início dos anos 90, presumia-se que ela se tornaria uma professora, a carreira habitual para mulheres indígenas instruídas. "Mas eu não queria ser professora", ela explicou. "Desde que eu era pequena, eu sempre fui rebelde, sempre arrumei encrenca, e achei que poderia contribuir mais do que trabalhando como professora."

A princípio, Joênia pensou em se tornar médica. Mas quando tinha 18 anos, uma irmã mais velha que sofria de asma, problemas pulmonares e tinha acabado de ter um bebê morreu quando um equipamento médico deu defeito enquanto ela estava hospitalizada.

"Eu já tinha sofrido muito e visto muita injustiça cometida contra outros", ela explicou. "Eu vi como minha irmã foi tratada e pensei: ''Será que eles desligaram a máquina para não terem que gastar dinheiro com uma índia pobre?'' A morte dela teve um grande impacto em mim", especialmente com a morte anterior por afogamento de sua única outra irmã em uma acidente.

Para conseguir o dinheiro que precisava para os estudos, Joênia foi trabalhar em um escritório de contabilidade de Boa Vista. Seus colegas de trabalho freqüentemente zombavam do que consideravam suas ambições irrealistas, mas mesmo não conhecendo nenhuma outra índia brasileira que tivesse-se tornado advogada, ela os ignorou.

"Meu chefe costumava dizer que eu estava perdendo meu tempo, que a Faculdade de Direito era apenas para pessoas com dinheiro", disse ela. "Mas quando os resultados do vestibular foram anunciados, eu fiquei em segundo lugar e ele não passou. Ele ficou irritado."

Durante seus quatro anos na faculdade, Joênia trabalhava durante o dia e estudava à noite. Às vezes ela se sentia desencorajada e tentada a desistir, ela reconheceu, mas seus parentes na aldeia não aceitavam aquilo. "Eles diziam: ''É melhor você conseguir esse diploma, porque vamos precisar dos seus serviços''", disse ela.

Tais laços familiares provaram ser cruciais assim que ela começou a exercer a advocacia. No início, havia muito ceticismo diante de alguém tão jovem, inexperiente e mulher, e foi preciso o selo de aprovação de seu povo para que ela obtivesse credibilidade.

"Quando você trabalha com um grupo indígena, você precisa contar com a confiança dos outros", disse ela. "Quando eu chego para me dirigir a um grupo, eu explico quem são meus pais, quem são meus irmãos e irmãs e a qual comunidade pertenço. Suas raízes são sua identidade."

Além disso, as tribos que Joênia atende são sociedades hierárquicas na qual os caciques e os pajés são quase sempre homens. Então isto se tornou mais uma barreira.

"Quando você vai a uma assembléia dos ianomâmi, por exemplo, as mulheres ficam todas em um canto e não falam nada", disse ela. "Então, naturalmente, no começo eu me preocupava se os homens prestariam atenção no que eu tinha a dizer. Mas eles aprenderam a me escutar."

Atualmente, Joênia é mãe, com duas crianças pequenas. Ela teme que apesar de seus esforços para poupá-las do que ela vivenciou, o ritmo de mudança no Brasil não é rápido o bastante.

"Aqui estamos nós em 2004, mas elas ainda precisam suportar as zombarias, os comentários sobre o cabelo ''engraçado'', a idéia de que índios falam errado e são maus alunos", disse ela. "Meus pais tiveram que tolerar isto, mas como transito entre dois mundos, eu não. Eu não serei submissa."

Texto: Larry Rohter, do New York Times
Tradução: George El Khouri Andolfato

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