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OAB repudia MP que deu status de ministro a presidente do BC

terça-feira, 9 de novembro de 2004 às 13h04

Brasília, 09/11/2004 - O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil aprovou hoje (09) moção de repúdio à Medida Provisória nº 207/2004, assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em agosto último e que, alterando a Lei nº 10.683/03, concedeu status de ministro ao presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. A moção de repúdio foi aprovada nos termos do voto do relator da matéria na OAB, o conselheiro federal pela Bahia, Arx Tourinho. “A medida provisória que aqui cuidamos parece-nos ter sido a gota d’água na paciência jurídica de todos nós”, afirmou Tourinho em plenário, criticando a edição desenfreada de MPs pelo governo federal.

O relator afirmou que o governo promoveu várias violações constitucionais com a edição da MP 207/04, sendo a primeira delas a inexistência de pressupostos de relevância e urgência - que constam do artigo 62 da Constituição como requisitos indispensáveis para a edição de uma medida provisória. “Ora, não é nimiamente possível se ter como relevante e urgente medida provisória que se encarrega de atribuir ao presidente do BC a condição de ministro, a não ser para satisfazer interesse estritamente particular da pessoa beneficiada ou de caráter político daqueles que se acham no poder”, afirma Tourinho em seu voto.

Entre as demais violações apontadas, estão infringência aos princípios da moralidade pública (artigo 37 da Constituição) e do juiz natural (artigo 5º, LIII). Na avaliação de Tourinho, essa MP foi assinada pelo presidente Lula com o objetivo único de livrar o presidente do Banco Central de investigações que estavam sendo feitas por procuradores da República. Além disso, a MP deslocou a competência para apreciar investigações contra o presidente do BC para o STF, o que, em sua opinião, fere o juízo natural.

“Uma medida provisória que abriga em seu seio a deformidade de uma patologia moral, objetivando proteger de investigações, de natureza cível e criminal, o presidente do Banco Central, por órgãos do Ministério público de primeira instância, está contaminada pela inobservância do princípio constitucional da moralidade pública”, acrescentou Arx Tourinho.

Duas Adins contestam a constitucionalidade dessa MP - números 3289 e 3290 -, ajuizadas pelo PFL e pelo PSDB. O procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, já emitiu parecer opinando pela procedência das Adins. Ele apontou diversas violações à Constituição, entre elas afronta ao princípio da moralidade, uma vez que a norma foi criada “por inspiração casuística”, e a falta de relevância e urgência necessárias à edição de medida provisória. O relator das duas Adins é o ministro do STF, Gilmar Mendes.

Em seu voto apresentado hoje, Tourinho propôs, ainda, que fosse lançada na OAB uma campanha pela eliminação do instrumento da medida provisória da ordem jurídica brasileira, mas a proposta acabou sendo retirada de discussão pelo próprio relator, para futura avaliação do assunto na Comissão de Estudos Constitucionais da entidade.

Veja, a seguir, a íntegra do voto do conselheiro federal Arx Tourinho:

V O T O

1. Medida Provisória n.º 207, de 13.08.04, que, alterando o parágrafo único, do art. 25, da Lei n.º 10.683, de 28.05.03, inclui o Presidente do Banco Central do Brasil no rol dos ministros de Estado, e, no art. 2º, estatui que “O cargo de Natureza Especial de Presidente do Banco Central do Brasil fica transformado em cargo de Ministro de Estado”. 2. Inconstitucionalidade por inexistência dos pressupostos da relevância e da urgência. Inteligência do art. 62, da Lei Maior. 3. Inconstitucionalidade por infringência ao princípio de moralidade. Inteligência do art. 37, da Carta Magna. 4. Ofensa ao princípio do juiz natural. Inteligência do art. 5.º, LIII, da Lex Legum. 5. Sugestão de propositura de ação direta de inconstitucionalidade; de proclamação de repúdio à medida provisória indicada e de campanha pela eliminação dessa espécie normativa de nossa ordem jurídica.

1. Designado pelo em. Presidente deste col. Conselho Federal da OAB, apresento voto sobre a recente Medida Provisória, de n.º 207, de 13.08.2004, editada pelo Presidente da República, em cinco artigos, sendo que, em dois deles, se cuida do status de ministro, que é concedido ao Presidente do Banco Central do Brasil.

2. O art. 1.º, da aludida Medida Provisória, trata de alteração dos artigos 8.º e 25, da Lei 10.683, de 28.05.2003, para incluir o cargo de Presidente do Banco Central do Brasil ao lado de outros, tidos em nível de ministro.

3. O art. 2º giza:
“O cargo de Natureza Especial de Presidente do Banco Central do Brasil fica transformado em cargo de Ministro de Estado”.

4. Essa é a delimitação do tema ao qual nos debruçamos, em virtude da inquestionável inconstitucionalidade, que representa verdadeiro acinte à cidadania, neste país.

5. Não temos dúvida em afirmar que esse ato normativo enfocado está eivado de três vícios de inconstitucionalidade: a) ausência dos dois pressupostos, exigidos pelo art. 62, da Constituição Federal, referentes a relevância e urgência; b) violação ao princípio de moralidade pública, estatuído no art. 37, do Texto Maior; c) desrespeito ao princípio do juiz natural.

6. Quanto à inexistência dos pressupostos da relevância e da urgência, não há qualquer resquício de dúvida. Não se pode ter como relevante, para o país, a concessão de status de ministro a Presidente do Banco Central. Nem há qualquer urgência.
Não se pode ter os dois pressupostos como decorrentes de visão interessada do governo que edita a medida provisória. Sua compreensão há de ser feita dentro de espectro maior, considerando o conjunto de uma realidade político-jurídico-social.
Se há dificuldade para se ter a objetividade dos conceitos de relevância e urgência, no entanto, inexiste impossibilidade.
A relevância diz respeito à importância da matéria que está sendo tratada e a urgência à necessidade imperiosa de que se discipline tal matéria, em lapso temporal extremamente inferior àquele que é imposto no processo legislativo ainda que sumário.
São conceitos relativos, que traduzem indeterminabilidade jurídica, que dependem, em muito, da ótica em que se situa o observador, porém, há de prevalecer um princípio que é básico, ou seja, o princípio da razoabilidade.
Bem o disse o prof. Paulo Magalhães Coelho: “ O princípio da razoabilidade postula da administração pública uma atuação consentânea com a realidade na qual está lidando valorando. Aqui o que se veda são as ações desarrazoadas ou desprovidas frente à gama de situações postas à consideração do administrador público. É claro que a lei, ao conceder ao administrador público uma certa discricionariedade, diante da diversidade de situações a serem enfrentadas, não outorgou faculdade para o agir despropositado, ou para a satisfação de sentimentos mesquinhos, autoritários ou vaidosos” ( Controle jurisdicional da administração pública, Ed. Saraiva, 2002, p. 28/29).
Ora, não é nimiamente possível se ter como relevante e urgente medida provisória que se encarrega de atribuir ao presidente do Banco Central a condição de ministro, a não ser para satisfazer interesse estritamente particular, da pessoa beneficiada, ou de caráter político daqueles que se acham no poder.
O Supremo Tribunal Federal que, inicialmente, teve pruridos em apreciar os pressupostos da medida provisória, entendendo ser algo intrínseco à discricionariedade do chefe do Executivo ou à apreciação política da Casa Legislativa, evoluiu, para admitir o exercício do controle jurisdicional. Afirmou, de forma clara, o Ministro Celso de Mello: “A mera possibilidade de avaliação arbitrária daqueles pressupostos ( relevância e urgência, pelo Chefe do Poder Executivo, constitui razão bastante para justificar o controle jurisdicional. O reconhecimento de imunidade jurisdicional, que pré-excluísse de apreciação judicial o exame de tais pressupostos, caso admitido fosse, implicaria consagrar, de modo inaceitável, em favor do Presidente da República, uma ilimitada expansão de seu poder para editar medidas provisórias, sem qualquer possibilidade de controle, o que se revelaria incompatível com o nosso sistema constitucional” ( RTJ 151/331-355).

7. Temos, assim, que o ato normativo, sob análise, desatende aos pressupostos constitucionais, indicativos de urgência e relevância.

8. Há um segundo aspecto, que macula pela inconstitucionalidade a medida provisória em tela. Refiro-me ao princípio da moralidade pública.

9. A medida provisória possui natureza jurídica distinta da lei. Medida provisória não é lei, apesar da vigência imediata. Tanto isso é verdade que a norma constitucional, precisamente o art. 62, menciona que a medida provisória possui “força de lei”.

10. Há disceptação quanto à natureza da medida provisória, se ato administrativo, ato legislativo ou de características próprias. O prof. Marco Aurélio Greco defende, categoricamente, que a medida provisória é ato administrativo, com uma série de argumentos. O prof. Celso Bandeira de Mello anota: “Convém desde logo acentuar que as medidas provisórias são profundamente diferentes das leis – e não apenas pelo órgão que as emana. Nem mesmo se pode dizer que a Constituição foi tecnicamente precisa ao dizer que têm “força de lei”. A compostura que a própria Lei Magna lhes conferiu desmente a assertiva ou exige que seja recebida cum grano salis” ( Curso de direito administrativo, Malheiros Ed. 17ª ed., 2004, p. 119).

11. Uma coisa, no entanto, nos parece absolutamente certa: o princípio de moralidade, ínsito no art. 37, da Lei Magna, sendo aplicável em todas as manifestações dos poderes públicos, é, também, de ser pesquisada no bojo de uma medida provisória.

12. O princípio de moralidade é daqueles princípios reitores da vida pública, devendo estar presente em qualquer ato, seja administrativo, legislativo ou judicial. Sem moralidade, a vida pública deixa de se sustentar em um de seus mais vigorosos pilares. Já o disse, em obra clássica, o professor Manoel Franco Sobrinho: “O conteúdo moral de um ato integra a competência de fazer, o jus dicere na sua expressão ética, freando a ação administrativa de modo a não possibilitar reclamos que pedem a proteção da moralidade de um tratamento equânime, de uma postura imparcial.” ( O princípio constitucional da moralidade administrativa, Gênesis, 1993, p. 15). E, em outra passagem, afirmou o jurista “ A moralidade do direito não é uma hipótese, mas uma experiência que abrange os mais variados contornos do desenvolvimento dos sistemas jurídicos de garantia dos administrados. Experiência intersubjetiva nos seus valores-fontes” ( op. cit., p. 121).

13. Uma medida provisória que abriga em seu seio a deformidade de uma patologia moral, objetivando proteger de investigações, de natureza cível e criminal, o presidente do Banco Central, por órgãos do Ministério Público de primeira instância, está contaminada pela inobservância do princípio constitucional da moralidade pública.

14. Mas, não é só. A medida provisória, aqui vergastada, ofende o princípio do juiz natural.

15. Antes da malsinada medida provisória, o presidente do Banco Central não estava coberto por prerrogativa de foro. Hoje, por estar alçado à condição de ministro de Estado, o presidente do Banco Central só pode ser processado e julgado, originariamente, no Supremo Tribunal Federal, ex vi artigo 102, I, c, da Lei Maior.

16. Com uma simples medida provisória, se alterou o juízo natural. Antes um juízo estadual ou federal, de primeiro grau, hoje a mais alta Corte do Judiciário.

17. O juízo natural é uma realidade constitucional. Proclama a doutrina sua sede no artigo 5.º, LIII, da Lei Maior.

18. Leciona Antônio Scarance Fernandes:
“Na tradição brasileira, o princípio representa dupla garantia: proibição de tribunais extraordinários ( poder de comissão) e proibição de evocação ( transferência de uma causa para outro tribunal).” ( Processo penal constitucional, Ed. Rev.. dos Trib.,2ª ed., p. 116).
Adiante acrescenta o doutrinador:
“Com base nessa evolução, a expressão ampla do princípio revela-se por tríplice garantia:
1.ª) só podem exercer jurisdição os órgãos instituídos pela Constituição;
2ª) ninguém pode ser julgado por órgão instituído após o fato;
3ª) entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competência que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja” ( op. cit., p. 117).
Em outro trecho, invoca o processualista Vicente Greco, que trata do princípio, dizendo que a “a regra significa que as regras de determinação de competência devem ser instituídas previamente aos fatos e de maneira geral e abstrata de modo a impedir a interferência autoritária externa. Não se admite a escolha do magistrado para determinado caso, nem a exclusão ou afastamento do magistrado para determinado caso, nem a exclusão ou afastamento do magistrado competente” ( op. cit., p. 118).

19. Em obra monográfica, Nelson Nery Filho explicita:
“Costuma-se salientar que o princípio do juiz natural se traduz no seguinte conteúdo: a) exigência de determinabilidade, consistente na prévia individualização dos juízes por meio de leis gerias, isto é, a pré-constituição do direito italiano ( art. 25, CF italiana); b) garantia de justiça material (independência e imparcialidade dos juízes); c) fixação de competência, vale dizer, o estabelecimento de critérios objetivos para a determinação da competência dos juízes; d) observância das determinações de procedimento referente à divisão funcional interna, tal como ocorre com o Geschafstverteilungsplan do direito alemão” ( Princípios do processo civil na constituição federal, Ed. R. dos Trib., 5ª ed., p. 68).

20. Com essa malfadada medida provisória, vive-se situação surrealista, porque o juízo natural, em regra, existe para defesa dos direitos individuais, mas, no caso sob análise, sua fratura atende a interesse particular ilícito em confronto com o interesse público. Ou seja, é conveniente ao presidente do Banco Central e ao governo que o juízo natural não seja respeitado. Mas, à sociedade civil importa a pureza do juízo natural, para preservação do interesse público.

21. Note-se que os fatos, atribuídos, em tese, ao atual presidente do Banco Central, seriam julgados pela primeira instância, se realmente existentes. Porém, uma simples medida provisória impõe à Corte Suprema deste país competência para julgar pessoa que, quando praticou fatos, em tese ilícitos, se achava sob a órbita de competência do juízo de primeiro grau.

22. Não fosse essa argumentação de procedência jurídica, haver-se-ia de ter como aberrante a hipótese, não agasalhada pela norma maior, ao se permitir, mediante medida provisória, que não é lei, a proteção resultante da condição de ministro de Estado, frisando-se que um ministro de Estado é nomeado livremente pelo Presidente da República, o que não ocorre com o presidente do Banco Central, cuja nomeação há de preceder de escolha pelo voto secreto de membros do Senado Federal ( art. 52, III, da Constituição Federal). Ministro de Estado, por força do disposto no artigo 84, II, da CF), é um mero auxiliar do Chefe do executivo federal.

23. Se se admitir como possível, juridicamente, a validade dessa inaceitável medida provisória, a competência do Supremo Tribunal poderá inchar-se de forma irresponsável, para abarcar, v.g., presidentes de Caixa Econômica, de Banco do Brasil, BNDES, secretários de ministérios, assessores e sub-assessores da Casa Civil e outros. Rigorosamente, não haveria limites. Bastaria a vontade do Presidente da República, diante de ameaça de investigação de ilícitos. Dar-se-ia cobertura, com uma sub-espécie normativa, que teria o poder de interferir no alargamento da competência do STF, mediante simplória alquimia.

24. Concluímos, propondo que, independente da ação direta de inconstitucionalidade, já existente (ADI 3290), movida por partido político, deve esse Conselho Federal legitimar-se com propositura, também, de ação, com a particularidade de que, aqui, se põe fundamento não existente na ação já ajuizada, referente ao princípios de moralidade pública e juízo natural.

25. Por outro lado, é conveniente que este eg. Conselho Federal proclame seu repúdio a essa medida provisória, que macula a Constituição brasileira. E, além disso, que seja encetada companha pela eliminação de medida provisória de nossa ordem constitucional, diante da gravidade que traz para a vida jurídica do país, causando estupefação como essa. O Executivo está especializando-se na escalada autoritária, sendo do domínio público a idéia, gestada no âmbito governamental, para criar a figura execrável do advogado-delator, ou seja, todo aquele que, patrocinando interesse de cliente, no exercício profissional, tomar ciência de operações financeiras, imobiliárias ou empresariais suspeitas, deva, obrigatoriamente, informar às autoridades fazendárias competentes. Ninguém se espante se vier essa criação fascista no bojo de uma medida provisória fascista.
A medida provisória de que, aqui, cuidamos, parece-nos ter sido a gota d’água na paciência jurídica de todos nós. Medida provisória precisa ser abolida. Crie-se procedimento legislativo sumaríssimo, com prazos mais exíguos e de forma mais simplificada do que aquele existente, hoje, no Congresso Nacional, porém, não podemos mais aceitar espécies normativas, brotadas no escaninho do Executivo, com vigência imediata, quando, sabemos todos nós, a legitimação da lei se acha na manifestação da vontade popular, que se plasma na discussão democrática das propostas, no seio das casas parlamentares.

26. Precisamos todos nos acautelar, não sendo impertinente a invocação do poema de Eduardo Alves da Costa “No caminho com Maiakowsky”:

“Tu sabes,
Conheces melhor do que eu
A velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
E roubam uma flor
Do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
Pisam as flores, matam nosso cão,
E não dizemos nada.
Até que um dia,
O mais frágil deles
Entra sozinho em nossa casa,
Rouba-nos a luz, e,
Conhecendo nossos medos,
Arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada”.

É o nosso voto, Presidente, que trazemos à alta consideração deste Colendo Conselho.

Sala de Sessões do Conselho Federal da OAB

Arx Tourinho
Conselheiro Federal - Relator

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