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D´Urso: endurecimento de penas se mostra, sempre, frustração

quinta-feira, 8 de junho de 2006 às 07h13

Brasília, 08/06/2006 - O presidente da Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo, o advogado criminalista Luiz Flávio Bordes D´Urso, é contra o endurecimento do sistema penal puro e simples e afirmou que todas as vezes que se tentou exclusivamente endurecer o sistema para diminuir a criminalidade, o resultado foi, sempre, frustração. “A única chance que a sociedade tem é fazer com que o indivíduo tenha a certeza da punição, independente da quantidade ou do peso da pena”. A afirmação foi dada em entrevista exclusiva a este site pelo presidente da OAB-SP, que acompanhou de perto a recente onda de ataques a São Paulo, deflagrados pela facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC).

Como exemplo da pouca eficácia do endurecimento das penas, D´Urso citou o ano de 1990, quando foi editada a Lei dos Crimes Hediondos para combater o tráfico de entorpecentes e a extorsão mediante seqüestros. De 1990 para cá, 16 anos se passaram e essas duas modalidades criminosas tiveram as penas bastante aumentadas e uma série de benefícios e garantias individuais acabaram suprimidos por conta de inconstitucionalidades presentes nessa Lei. “Todo esse esforço não resultou na diminuição dessa criminalidade. Pelo contrário, aumentaram os seqüestros e aumentou o tráfico de entorpecentes, o que vem, mais uma vez, demonstrar que não é esse o caminho”, exemplificou. “O crime organizado foi deitando raízes em todas as unidades ou na maioria das unidades do sistema prisional, montando uma estrutura paralela que chega a ponto de desafiar o próprio Estado”.

Quanto ao crime organizado nos presídios brasileiros, Luiz Flávio Borges D´Urso afirma que o governo já teve, há décadas, a chance de detectar a semente de toda essa problemática. Ele conta que existia um antigo movimento nas prisões chamado de “serpentes negras”, que foi se ampliando e, hoje, culminou no surgimento e fortalecimento das facções criminosas que conhecemos. “Houve certa inocência do Estado ao longo desses anos, de subestimar o poder de organização desses grupos criminosos, que contam, inclusive, com esse instrumento poderosíssimo que viabilizava a comunicação, que é o telefone celular”.

O presidente da OAB-SP rebateu a ilação feita por alguns de que é o advogado o responsável por levar para o interior das unidades carcerárias aparelhos celulares e de atuar como pombo-correio, levando e trazendo informações para criminosos. “Até porque, na maioria das unidades, os advogados passam por detectores de metais, pela revista eletrônica e, quando adentram a unidade de segurança máxima, não têm qualquer contato físico com o cliente”, finalizou D´Urso, acrescentando que a advocacia não é contra a revista eletrônica nos presídios, a exemplo do que já ocorre nos aeroportos e agências bancárias.

A seguir, a íntegra da entrevista concedida pelo presidente da OAB de São Paulo, Luiz Flávio Borges D´Urso, com exclusividade para este site:

P - Esses últimos acontecimentos, envolvendo advogados com o crime organizado, isso preocupa a categoria, preocupa a Ordem dos Advogados do Brasil?
R - No que diz respeito à OAB São Paulo, é importante frisar que no Tribunal de Ética e Disciplina temos, aproximadamente, 18 mil processos. Desses, os processos disciplinares dizem respeito a uma quantidade menor que três mil advogados. Num universo de 250 mil, estamos falando de 1% da categoria que tem alguma questão ética a ser examinada pelo Tribunal de Ética. Essas questões vão desde atraso na devolução de um processo até processos de profissionais que, efetivamente, cometeram crimes. De maneira que 99% da advocacia paulista é formada por gente honesta, que trabalha observando a ética e dignificando a profissão. Mas há exceções, como em qualquer categoria. Lamentavelmente, as carreiras de juiz, promotor, jornalista, engenheiro, de médico, qualquer uma delas, têm as suas exceções. Com a nossa não seria diferente. Então, nós temos essa quantidade, que é pequena proporcionalmente falando, que, num dado momento, resolveu se tornar criminosa ao invés de advogar. São comportamentos que merecem resposta à altura não só do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP, mas também da Justiça comum. De maneira que a posição da OAB de São Paulo é muito transparente, pois temos atuado firmemente em defesa da advocacia, no sentido de proteger o advogado que trabalha honestamente, de forma ética, e punindo, na proporção das culpas, aqueles advogados que se desviaram da retidão ética na sua conduta profissional.

P - Quais são os últimos levantamentos que a OAB-SP tem de profissionais que foram punidos por não atuarem com a ética à frente da profissão?
R - No último ano, diante do represamento dos processos éticos, nós tivemos mais de mil e oitocentas punições, que vão desde a advertência até a expulsão dos quadros da Ordem. Esse é um número significativo porque hoje não há mais processos pendentes. O tempo do processo é observado, aliás, como todos os procedimentos internos da OAB São Paulo. Temos dado uma resposta muito pronta a esses reclamos que, no fundo, mais do que punir o advogado, são iniciativas que vêm em defesa da própria advocacia e da sociedade.

P - Em relação ao episódio lamentável ocorrido em São Paulo, com os ataques conduzidos pelo PCC, o que está acontecendo, já que o senhor é advogado criminalista, com os presídios brasileiros? O que está acontecendo com a segurança no país, principalmente no estado de São Paulo?
R - Nós temos um problema prisional muito grave no Brasil. O processo criminal deságua sempre, em havendo condenação à pena privativa de liberdade, num sistema prisional que teria como meta, à luz da Lei das Execuções Penais, além de punir, recuperar o homem, que são os dois objetivos fundamentais da pena na legislação brasileira. A tarefa de recuperar o homem é uma tarefa que, com a ausência da aplicação da Lei da Execução Penal, não tem tido êxito. Lamentavelmente, as pessoas que vão para unidades prisionais do Brasil, de um modo geral, estão sendo pioradas, em hipótese alguma melhoradas ou recuperadas. As conseqüências do momento em que o homem está encarcerado, no sistema atual, são muito piores do que a perda da liberdade. O indivíduo entra num sistema de alto risco. Ele é seviciado fisicamente, às vezes seviciado sexualmente, e passa a ser refém de uma estrutura criminosa, que permeia as unidades prisionais em São Paulo e no Brasil. E isto impõe uma condição sub-humana a essas criaturas que o Estado tem que tentar recuperar, sob pena de suportar o ônus da ausência dessa recuperação.

P - Como o preso tem voltado ao convívio social, depois de passar por unidades prisionais como as que temos no país, onde o detento normalmente se alia a uma facção criminosa?
R - Nós não temos, felizmente, pena de morte e nem prisão perpétua. De maneira que, mais cedo ou mais tarde, o preso volta ao convívio social. Com o advento da articulação da organização criminosa dentro dos presídios, o que, na sua origem, é um fenômeno mundial, verificamos que são cometidos crimes por quadrilhas internas, que se associam até mesmo para autoproteção e exercício do poder. Isso acontece em alguns Estados brasileiros. Em São Paulo, lamentavelmente, o que constatamos de uma forma muito dura, face a esses últimos episódios, é que essa organização criminosa ganhou intensidade, ultrapassou os limites territoriais de uma unidade prisional. O crime organizado foi deitando raízes em todas as unidades ou na maioria das unidades do sistema prisional, montando uma estrutura paralela que chegou a ponto de desafiar o próprio Estado. Hoje, muitos dos crimes cometidos nas ruas são arquitetados dentro das unidades prisionais, por conta de suas lideranças.

P - Como o governo pode lidar com essa realidade? Já foi feito algo com relação a isso?
R - O Estado teve, há décadas atrás, condição de detectar a semente disso. Existia um movimento nas prisões chamado de “serpentes negras”, que, depois, foi se ampliando até o surgimento dessas facções criminosas. Houve certa inocência do Estado ao longo desses anos, de subestimar o poder de organização desses grupos criminosos, que contam, inclusive, com esse instrumento poderosíssimo que viabilizava a comunicação, que é o telefone celular. Até hoje o Estado não teve sucesso na tentativa de impedir a entrada de celulares nas unidades prisionais ou de fazê-los emudecer. O aspecto tecnológico, as dificuldades com as concessionárias levaram a essa situação onde, dentro dos presídios, há uma grande proliferação de telefones celulares e esses presos falam com qualquer pessoa, a qualquer tempo.

P - Como os advogados receberam essa certa responsabilização que caiu em suas costas, de que são os advogados quem levam aparelhos celulares para seus clientes nas cadeias?
R - Reputamos e rejeitamos, de forma veemente, essa acusação que ultimamente tem sido feita, de que os advogados levam telefones celulares para dentro das unidades prisionais. No que diz respeito a São Paulo, neste universo de 250 mil advogados, não temos uma única reclamação objetiva, sequer, de um advogado que tenha tentado ingressar numa unidade prisional para levar celular para seu cliente. Até porque, na maioria das unidades, os advogados passam por detectores de metais, pela revista eletrônica e, quando adentram a unidade de segurança máxima, não têm qualquer contato físico com o cliente. Geralmente, conversam por meio do parlatório, por intermédio de uma tela, pela qual não passa sequer uma folha de papel, ou por vidro, com a conversa se dando por interfone. Contato físico? Nenhum. E mesmo assim, nos pentes finos que a Polícia tem realizado, são encontrados de 200 a 300 celulares dentro das unidades. O que, reitero, não pode ser creditado à advocacia mas, sim, a outras pessoas que têm contato com o preso. Não podemos esquecer que o preso recebe a visita de sua família, dos seus amigos e de religiosos. Os agentes penitenciários também são um elo do preso com o mundo exterior. Não imputo responsabilidade individualizada a nenhum deles mas, sem dúvida nenhuma, esses são flancos que podem, eventualmente, num desvio de comportamento, servir de caminho de ingresso do celular dentro do sistema. Algumas unidades recebem, por exemplo, duas, três mil quentinhas por dia e a verificação delas se dá por amostragem. De maneira que ali, no conteúdo do alimento, podem ingressar muitos aparelhos de telefone celular. O celular precisa ser carregado, portanto, tem que ter uma tomada dentro da cadeia, dentro da cela, acessível a esses presos. De maneira que compete ao Estado, de forma rigorosa, apurar o canal de entrada desses celulares e, em contrapartida, trabalhar no sentido de fazer cessar o sinal desses celulares dentro dos presídios. Isso é o que a sociedade cobra das autoridades, na tentativa de desarticular essa organização que tem, por meio da sua comunicação rápida e eficaz, essa capacidade gigantesca de articulação.

P - Os advogados também têm sido suspeitos de estarem atuando como informantes ou de serem pombos-correio, levando informações dos presos para o mundo exterior.
R - Eu quero refutar e, veementemente, rejeitar a imputação de que alguns advogados servem de “pombo-correio” para levar e trazer informações do crime organizado. Evidente que, na regra, não se pode admitir isso, até porque um preso que tem um telefone celular ao alcance da mão para conversar a qualquer momento com quem quer que seja, pelo tempo que desejar, não precisa de uma pessoa física para ser portadora de uma mensagem para outra unidade prisional. Portanto, isso é uma bobagem. E quando, eventualmente, um episódio desses é detectado, há a pronta resposta da Ordem, por meio do seu Tribunal de Ética e Disciplina. Se houver o cometimento de um crime por parte desse advogado, por exceção, estaremos diante de alguém que não se porta como advogado mas, sim, como criminoso. Logo, essa pessoa merece receber tratamento de acordo com a conduta criminosa que perpetua, seja no âmbito da Justiça comum, seja no âmbito do Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem.

P - Porque que a OAB não aceita a revista pessoal do advogado na entrada dos presídios ou na saída?
R - Vamos começar deixando bem claro que não só a OAB, mas a advocacia aceita a revista, mas a revista eletrônica. Da mesma forma que passamos por revista nos aeroportos, nas unidades bancárias, nos fóruns, devemos passar também nos presídios. O advogado, ao ingressar nessas unidades, sempre é submetido à revista eletrônica, seja por meio do arco detector de metal seja por aquele aparelho manual que parece uma “raquete eletrônica”. E também submete, como nos aeroportos, as suas pastas ao aparelho de raio-x. Se, eventualmente, houver ali uma massa, um volume suspeito, então o agente o aponta e o advogado deve apresentar aquilo que é foco da suspeita. Isso acontece. O que não se pode admitir, e isto por força de lei e não por um privilégio do advogado, é que suas pastas e seus documentos, que não são seus mas de seus clientes, sejam violados. Os documentos dos quais o advogado é guardião estão sob sigilo. Não se pode dar a eles publicidade, dar acesso a quem quer que seja. Essa estrutura legislativa visa a proteger exclusivamente o cidadão. De maneira que rejeitamos esse procedimento de vasculhar a pasta do advogado e seus bolsos, por conta dos documentos que, eventualmente, o advogado tenha sob sigilo, sendo guardião e por força de lei. Agora, quanto à revista eletrônica, a esta não há nenhuma restrição, até porque a revista tem a finalidade de verificar se ali há alguma arma ou algum objeto que possa trazer riscos. Isso o detector de metais capta, logo, o advogado não tem acesso à unidade prisional com nenhuma massa ou objeto que seja suspeito. Não temos restrição nenhuma à revista eletrônica.

P - O senhor considera verdadeira a máxima de que “a polícia prende e a Justiça solta os bandidos de alta periculosidade”?
R - Primeiro, precisamos explicar para a população que o nosso sistema estabelece duas formas de prisão: a prisão punição, que estabelece conseqüência pela culpa formada de alguém, e as prisões que acontecem antes dessa culpa formada, antes de uma sentença definitiva. Essas prisões que acontecem antes da sentença definitiva não têm nada a ver com a culpa do indivíduo, mas sim, com o interesse do processo. No Brasil, existem cinco modalidades de prisões antes da sentença: prisão temporária, prisão preventiva, prisão em razão de pronúncia, a prisão advinda de uma sentença condenatória, contra a qual ainda pende recurso, e a prisão em flagrante. Essas formas de prisão, reitero, não têm nada a ver com punição, têm a ver com o processo. De maneira que há, no âmbito da população, uma sensação de que o indivíduo, ao cometer um crime, ao ser acusado de um crime, ou confessar um crime, deve ser preso imediatamente. Só que isso contraria o princípio constitucional da presunção de inocência, que diz que todos são inocentes até que haja a sentença penal condenatória definitiva. Isto porque, dentro da estrutura da nossa legislação, só se pode determinar a culpa de alguém depois que houver o seu julgamento. Portanto, a idéia que é passada para a sociedade, de que a polícia prende e a Justiça solta não tem, em si, um propósito de impunidade, pelo contrário, tem em si o propósito de cumprir a lei, de garantir o princípio constitucional da presunção de inocência. Depois de julgado definitivamente, aí sim estamos diante de uma pena que pode ser privativa liberdade, portanto, cadeia. Esse é o sistema brasileiro e é o sistema mais prudente, na minha opinião, pois não milita em favor da impunidade, pelo contrário, milita em favor das garantias individuais. É um mecanismo de proteção ao cidadão, fazer com que quem comete o crime seja punido. Mas nem todos que são acusados são, efetivamente, culpados. Então, foi para proteger o cidadão que esse sistema foi contemplado pela Constituição e pela legislação processual penal no Brasil.

P - A lentidão da Justiça brasileira beneficia o aumento da criminalidade no país?
R - Esse é um ponto grave, esse é um tendão de Aquiles que temos na Justiça brasileira. O problema não reside, como apregoam alguns, na brandura do sistema penal ou na ausência do rigor. Por outro lado, também não reside numa mudança legislativa que pudesse, como panacéia, resolver todos os problemas da criminalidade. O problema reside numa estrutura do Judiciário, que não dá a resposta que a população espera, num tempo oportuno. Por vezes, nós verificamos teses que dizem que precisamos diminuir a quantidade de recursos para acabar com a impunidade. O problema não está na quantidade dos recursos, está no tempo que esses recursos levam para serem julgados. Se nós tivéssemos três recursos, cada um levando seis meses, estamos falando em um ano e meio para ter a solução. Se nós reduzíssemos para um e demorarmos cinco anos para julgar esse único recurso, de nada valeu essa redução, pelo contrário. Então, o problema não está na estrutura do processo propriamente dito.

P - Então o problema está na demora do julgamento do processo e não no número de processos, não é mesmo? De qualquer modo, isso contribui para a impunidade, não?
R - Algum ajuste na estrutura é bom fazer, é necessário. Mas o eixo do problema reside no desaparelhamento da Justiça, em especial da Justiça do Estado de São Paulo, onde faltam juízes, faltam funcionários. Os funcionários precisam ter remuneração adequada, condições de trabalho adequadas para que o processo caminhe num tempo oportuno. Numa pesquisa feita em nível nacional, vamos encontrar prazos díspares entre os Estados na tramitação de processos. No Rio de Janeiro, um processo, para ser julgado em primeira e segunda instância, leva, em média, um ano e meio. No Rio Grande do Sul, mais ou menos esse período. Em São Paulo, a média é de sete anos. Essa distinção é por conta da ausência de investimento na estrutura do Judiciário, que traz conseqüências ao tempo da prestação jurisdicional. O processo demora muito em São Paulo. E, agora, no núcleo da sua pergunta: isto, de certa forma, contribui para a impunidade? Sem dúvida nenhuma. Contribui para a impunidade e é uma mola propulsora a fazer com que as pessoas passem a ter uma sensação de impunidade generalizada, a estimular alguns até a cometer crimes, pelo senso que permeia a sociedade a dizer que quem comete crime não é alcançado pelo Estado.

P - E o que fazer para enfrentar esse problema?
R - Em costumo dizer que é um equívoco as teses do endurecimento do sistema penal puro e simples, aliás muito presentes quando nós vivemos um período como esse, de comoção social, de crise na segurança pública. Toda vez que se quer diminuir um determinado delito, uma modalidade criminosa específica, vem uma onda de endurecimento do sistema, a dizer que precisa aumentar a pena, diminuir garantias e, aí, o crime diminui. O Brasil passou por isso em 1990, com a Lei dos Crimes Hediondos. E em todo o mundo, todas as vezes que se tentou exclusivamente endurecer o sistema para diminuir a criminalidade, o resultado foi, sempre, frustração. Observe, por exemplo, que em 1990 a Lei dos Crimes Hediondos nasceu para combater o tráfico de entorpecentes e a extorsão mediante seqüestros. De 1990 para cá, 16 anos se passaram. Essas duas modalidades criminosas tiveram as penas bastante aumentadas, tiveram uma série de benefícios suprimidos, e até garantias individuais, por conta de inconstitucionalidades presentes na Lei dos Crimes Hediondos. Todo esse esforço não resultou na diminuição dessa criminalidade. Pelo contrário, aumentaram os seqüestros e aumentou o tráfico de entorpecentes, o que vem, mais uma vez, demonstrar que não é esse o caminho. A única chance que a sociedade tem é fazer com que o indivíduo tenha a certeza da punição, independente da quantidade ou do peso da pena. Certeza de uma punição, respeitadas as garantias individuais, respeitados todos os mecanismos de cidadania, mas que o indivíduo, efetivamente, que cometa delito, seja preso. Essa certeza da punição deve ser o alvo a ser perseguido pela nação brasileira na tentativa de desestimular o indivíduo a cometer crimes. Para fechar: quem vai cometer um crime não está preocupado se a pena prevista é de cinco, oito ou dez anos, até porque ele não vai consultar a legislação para saber a que pena estará sujeito. Ele se preocupa se será punido ou não, de forma geral. Se a resposta for: vá em frente que você não será punido, ele comete o crime. Se a resposta for ao contrário, talvez ele não cometa o crime. Esse é único caminho que, tecnicamente, vejo para combater o avanço da criminalidade.

P - Diante desse quadro que o senhor traçou, o senhor diria que o Brasil, neste momento, com a criminalidade aumentando, está precisando mais de emprego, de mais juízes ou mais presídios?
R - Vamos lá. Você focar o problema da criminalidade só nas conseqüências é uma visão muito parcial, que não vai trazer nenhuma contribuição efetiva a todo o problema. Você tem que avançar nas causas, desde a injusta distribuição de renda, essa desigualdade gritante que nós temos no Brasil, à ausência de perspectivas para esses jovens. Esses são fatores que predispõem o indivíduo a cometer o crime. Isso não significa que quem não tenha uma condição social, que quem seja pobre, que quem não tenha emprego ou perspectiva, vá cometer o crime. Mas são fatores que predispõem o indivíduo a ser vulnerável a um apelo de um intento criminoso. De maneira que nós precisaríamos atuar no quadro da prevenção, no âmbito social. Nós temos que atuar no quadro da prevenção no âmbito policial. Não se esqueça que Polícia Militar, ela atua antes do cometimento do crime, a polícia judiciária, a polícia de investigação atua depois do cometimento do crime. Portanto, a estrutura do Estado, na ostensividade de fardamento, de viatura, de presença física na rua, é um fator inibidor do cometimento do crime. Mas, uma vez o crime cometido, e sempre o será, o que nós precisamos é trabalhar com índices de tolerabilidade. Este é um fenômeno humano, de maneira que o quebramento das regras de convivência, desde o início dos tempos, esteve presente entre os homens. O que nós precisamos é trabalhar para diminuir o quanto possível, esses índices.

R - Que medidas básicas Justiça precisa adotar para inibir esses índices?
R - Os mecanismos devem ser os baseados nas conseqüências àqueles que cometeram crimes. É preciso ter também um mecanismo de investigação eficaz, no âmbito da polícia judiciária, ter um processo que tramite de forma adequada - e aí a informatização é um instrumento muito importante. Eu tenho dito que enquanto hoje nós falamos com o outro lado do mundo on-line, pelo avanço tecnológico, os processos ainda são costurados com agulha e barbante, na Justiça brasileira. Então, a Justiça precisa ter um choque de informatização, precisa recursos para isso. E, mais do que isso, nós precisamos de gestão administrativa na estrutura de uma parcela do Estado, que é o Poder Judiciário, que precisa funcionar bem. Quem sabe precisaríamos ter uma certificação do ISO 9000 para a Justiça, repensando todos os procedimentos, não só aqueles que estão na lei, mas os operacionais internos, a trazer eficiência a esse sistema. E o deságüe de tudo isso, que é um julgamento em tempo oportuno, vem exatamente, novamente, focar o sistema prisional, que precisa estar estruturado para recepcionar o condenado, fazê-lo cumprir a sua pena privativa de liberdade, exclusivamente deve conter o indivíduo, para que ele seja destituído do seu direito de ir e vir. Esta é a punição prevista na legislação, preservando-o e tentando recuperá-lo para que, quando ele volte à liberdade, tenha-se a chance de que ele não venha mais a cometer delitos. Portanto, não dá para focar num único ponto a dizer: “Não, esta é a solução”. Não pode ser assim. Nós temos que pensar de forma ampla, macro, em vários setores da sociedade, no âmbito do Legislativo, no âmbito do Executivo, no âmbito do Judiciário e da sociedade civil organizada. Todos precisam contribuir para mudar esse cenário.

P - A criminalidade tende a crescer no país ou há uma possibilidade de ela ser reduzida?
R - Me permita só fazer uma conclusão sobre o aspecto penitenciário. Na minha área de pós-graduação, trabalhei muito com a questão penitenciária e o foco dos meus estudos foi na área prisional. Minha dissertação de mestrado na USP foi sobre privatização de presídios, e no doutoramento foi sobre penas alternativas. E eu visitei, estudando, e tal, presídios americanos, presídios franceses, presídios na Itália, enfim, em vários lugares do mundo. Sempre advoguei a possibilidade de termos, no Brasil, uma experiência consagrada na Europa, que é da privatização dos presídios, no modelo da terceirização. Existem duas formas de privatização no mundo: o modelo americano, que é de privatização total, e o modelo francês, que é de co-gestão, Estado e iniciativa privada, juntos, para administrar a vida do homem e os serviços, no período em que ele cumpre a sua pena. O modelo da privatização total é inconstitucional no Brasil, porque ele entrega o homem à iniciativa privada, rompe todos os elos do Estado com esse homem e delega a função jurisdicional. Isso não é permitido pela Constituição brasileira. Já o modelo francês é de parceria. Então, ele entrega o homem à iniciativa privada, mas é o Estado quem continua a administrar a vida desse homem, a puni-lo, a dizer quando ele entra, quando ele sai da cadeia. Por esse modelo, cabe à iniciativa privada toda a gama de serviços, que é a parte material da fase de execução penal. Esse modelo é sucesso na França.

P - E no Brasil ?
R - Esse modelo está sendo experimentado no Brasil, tanto em Guarapuava, no Paraná, quanto em Juazeiro do Norte, no Ceará. Experiências que têm aproximadamente dez anos e experiências com resultados muito interessantes. Primeiro, que são unidades que não têm cara de presídio. São unidades de baixo custo na sua construção, mas que têm um ar de grandes fábricas. Há uma preocupação com a arquitetura prisional, que é voltada à recuperação do homem e à ambientação do homem no seu espaço. Há a preocupação de não haver superlotação. Portanto, as vagas são rigorosamente respeitadas, não há superlotação. Todos trabalham e quase todos estudam. De maneira que se tem ali assistência médica, assistência dentária, assistência jurídica e condições de dignidade, de preservação da integridade física, dos aspectos psicológicos do homem preso para prepará-lo para voltar à vida em liberdade, acomodado a um sistema de cumprimento das leis, de regras, de não voltar a delinqüir. É um sistema que tem baixíssimo índice de reincidência. O que foi constatado até aqui é que pode ser uma opção interessantíssima para uma parcela do sistema prisional brasileiro, que já se mostrou incapaz de cumprir a sua função, de punir e, ao mesmo tempo, recuperar o homem no modelo que temos hoje no Brasil.

P - E a criminalidade ?
R - O que é o crime? O crime é uma ficção. Nós poderíamos até dizer que o crime não existe, o crime é uma criação do homem. O crime nada mais é do que um comportamento humano que, num dado momento da História e num grupo social, se tornou uma conduta indesejável, tão indesejável a ponto de o Estado ir buscar o seu instrumento mais eficaz, que é o Direito Penal, com punições corporais, de privação de liberdade, para desestimular o indivíduo a cometer aquele tipo de conduta. Portanto, na concepção humana, o crime não existe. O que existem são comportamentos que se adjetivam como criminosos, a ter uma leitura de nocividade ao convívio e à paz social. Quanto maior for o campo de previsão legislativa de condutas indesejáveis, conseqüentemente maior a probabilidade de ter crimes.

P - Cite, por favor, um exemplo ?
P - Vou explicar: se tivermos na legislação dez figuras de comportamento que são eleitos como crimes, temos dez chances na vida do homem de delinqüir nessas modalidades. Alarga-se esta base, a querer resolver os problemas sociais por meio do Direito Penal, e tivermos 100, 200, 300 condutas que podem ser atribuídas como criminosas, por óbvio que aumenta a probabilidade do homem cometer crimes. E há um erro em se utilizar o Direito Penal como primeira reação do Estado a impedir determinada conduta. Há uma progressão, que deve ser observada, a fazer com que, em primeiro lugar, mecanismos extra jurídicos possam desestimular o indivíduo a cometer um determinado comportamento. Se esses mecanismos falharem, pensamos em mecanismos jurídicos, mas extra penais. Se esses também falharem, e esse comportamento é muito nocivo, só aí estaria autorizado a você fazer uma previsão no âmbito criminal. Ele só deve entrar em cena quando os primeiros mecanismos de controle social falharam. O que vemos é uma ânsia muito grande do legislador brasileiro em tentar resolver problemas sociais no âmbito penal. Aí se complica muito a situação. Eu dou sempre o exemplo: se quisermos que não se jogue papel no chão num determinado ambiente, é preciso um processo de educação, mesmo o Jurídico aplicando uma pena. Mas se começarmos pelo limite, pela última trincheira, o Direito Penal, a dizer: “quem jogar papel no chão vai preso”, o que vai se fazer depois? Não há muito mais mecanismos para dissuadir o indivíduo daquele comportamento. De maneira que isso precisa ser respeitado. O Direito Penal tem que ser o último momento e os outros mecanismos precisam ser usados com mais intensidade para reservar o Direito Penal só para aquilo o que realmente for grave. Há um fenômeno, no Brasil, de ampliação desse leque de condutas que estão contempladas no âmbito penal. É um primeiro equívoco que, em segundo lugar, há uma ânsia de achar que com o Direito Penal você resolve os problemas da sociedade. Outro exemplo que dou é o seguinte: o analfabetismo. É uma coisa ruim para a sociedade, mas como resolver isso? Não é por lei. Se estabelecêssemos uma lei, a de que é obrigatório o indivíduo ser alfabetizado e, no âmbito penal, quem for analfabeto vai para a cadeia, nada adiantaria. Mas essa lei leva gente para a cadeia e, nas estatísticas, vai trazer uma idéia de que se ampliou o cometimento de condutas criminosas. Portanto, para voltar, agora, ao eixo da pergunta: podemos ter um aumento da criminalidade ou uma diminuição da criminalidade, depende do que se entende por criminalidade. Agora, se você me perguntar se a sociedade está mais violenta, se a sociedade quebra mais as regras de convivência e se a sociedade está mais hostil, menos solidária, aí eu direi que, lamentavelmente, está sim.

P - Mas isso é um fenômeno brasileiro ?
R - Não é um fenômeno brasileiro. É mundial. Até pela mudança do eixo dos valores, onde o eixo do valor humano, do homem como essência passa a ser substituído pelo dinheiro, pela concorrência desenfreada, pela ausência de limites éticos. Lamentavelmente, é uma mudança do comportamento mundial, onde se exacerba uma violência que vem negar princípios que estão inerentes ao ser humano, os de solidariedade, de desenvolver-se como criatura humana dentro de um contexto de grupo. O homem não é um ser solitário. É um ser que, para sobreviver, precisa estar inserido num grupo. E esse grupo é a sociedade moderna que precisa responder aos anseios desse homem, de prosperidade, de crescimento e de busca dos objetivos maiores da criatura humana. De maneira que as regras de convivência servem para trazer harmonia a esse grupo. Se essas regras passam a regrar, a ponto de trazer mais conseqüências nefastas ao grupo do que, propriamente, a prevenir esse comportamento, vamos ter aumento da criminalidade, porque tem um aumento da criminalidade, porque tem um aumento necessário deste comportamento hostil do homem para como o homem, dentro dos próprios grupos sociais.

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