BIOGRAFIAS NÃO -AUTORIZADAS: BUSCANDO O EQUILÍBRIO POSSÍVEL ENTRE OS DIREITOS EM DISPUTA
Cresceu, nos últimos meses, o debate acerca da validade jurídico-constitucional da divulgação de biografias não-autorizadas pelo biografado (1). Argumenta-se, de um lado, com inconstitucionalidade dos arts. 20 e 21 do novo Código Civil (2), dispositivos legais utilizados como fundamentos para a necessidade de autorização prévia à publicação ou divulgação. Por outro lado, também são fortes e eloquentes as vozes que sustentam a necessidade de manter íntegros e completamente eficazes os referidos dispositivos do Código Civil.
A discussão em questão contrapõe direitos expressamente inscritos na Constituição. De um lado, são levantados os direitos de manifestação de pensamento, liberdade de opinião e de informar, independentemente de censura ou licença (arts. 5o, incisos IV, IX, XIII e XIV; 215; 216-A e 220, principalmente). De outra banda, são esgrimidos os direitos à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (arts. 1o, inciso III e 5o, inciso X).
O direito constitucional contemporâneo denomina a tensão desenhada, entre direitos igualmente expressos na Carta Magna, de colisão entre normas constitucionais (direitos fundamentais, nos casos mais instigantes). Sustenta-se, ademais, que tal colisão resolve-se pela técnica da ponderação (de valores ou interesses), substancialmente diversa das técnicas clássicas de superação das antinomias jurídicas.
Um dos grandes problemas da ponderação, ou o seu maior problema, é que não existem parâmetros ou critérios (um caminho a ser seguido) para solucionar o conflito entre direitos constitucionais (abstratamente considerados). Creio que não existe “o caminho”, ou “o método”, para uma solução correta ou verdadeira no campo da ponderação. A decisão, ou a conclusão, dependerá fundamentalmente da valoração feita pelo intérprete-aplicador dos enunciados normativos e dos fatos, ou contextos fáticos, relevantes (tomados assim). Em outras palavras, a maior ou menor importância atribuída a esse ou aquele direito, a esse ou aquele enunciado normativo, a esse ou aquele fato, conformará uma solução discrepante de outra (ou outras) possível e válida juridicamente (porque consistente sob o ângulo argumentativo e de fundamento normativo).
Luís Roberto Barroso, um dos mais notáveis constitucionalistas brasileiros, com justiça e acerto alçado à condição de integrante do Supremo Tribunal Federal, alerta “... que a ponderação, embora preveja a atribuição de pesos diversos aos fatores relevantes de determinada situação, não fornece referências materiais ou axiológicas para a valoração a ser feita” (3).
Aparentemente, são três as propostas de soluções para o imbróglio criado. Em torno delas são identificados textos de caráter jurídico, debates na imprensa e movimentos sociais dos interessados. No dia 21 de novembro de 2013, o Supremo Tribunal Federal chegou a realizar audiência pública para discutir o assunto.
A primeira proposição para equacionamento do embate sustenta que é inaceitável qualquer restrição prévia à liberdade de expressão ou manifestação, caracterizável como censura prévia. Existiria uma precedência temporal do direito de livre manifestação sobre o direito à (inviolabilidade da) intimidade e correlatos. Esses últimos somente vingariam num segundo momento se devidamente caracterizadas as violações.
A segunda proposição para composição do litígio busca amparo numa suposta prevalência dos direitos à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem. Argumenta-se que a liberdade de expressão ou manifestação não são direitos a serem exercidos com o objetivo de explorar comercialmente aspectos ou detalhes da vida privada de pessoas públicas sem qualquer relevância para a sociedade. Realmente, algumas das tais “biografias não-autorizadas” parecem perseguir ganhos meramente comerciais na trilha da leviandade e do espetáculo sem escrúpulos.
A terceira proposição para resolução da controvérsia anota que não há precedência abstrata entre os direitos em disputa. Assim, somente em cada caso concreto seria possível avaliar e definir a prevalência desse ou daquele conjunto de direitos. Essa corrente deixa uma questão prática ou operacional aparentemente sem resposta. Afinal, uma “biografia não-autorizada” pode ou não ser publicada ou divulgada?
Não me parecem (juridicamente) adequadas as soluções apresentadas para o problema. Com efeito, apesar da ausência de referências (no dizer de Barroso), regras, métodos ou caminhos para conduzir a ponderação entre os valores e interesses em conflito, aceita-se amplamente que o processo de construção da solução deve observar, na maior medida possível, a chamada concordância prática dos elementos em choque. Assim, é desejável, se possível, concessões recíprocas que preservem, mesmo em escala mínima ou secundária, o direito que “perde” a disputa. A escolha de um direito, em total detrimento do outro, somente deve ser feita se nenhuma equação razoável de convivência entre os “opostos” for possível.
Sustento, com todas as dificuldades decorrentes desse posicionamento, uma solução para o problema que: a) admite a publicação ou divulgação de biografias não-autorizadas e b) confere ao biografado, ou seus herdeiros diretos, a possibilidade de contrapor, de forma imediata, o escrito ou filme realizado para retratar a vida objeto da narrativa.
O caminho sugerido pressupõe que o biografado, ou seus herdeiros diretos, seja notificado previamente à publicação ou divulgação da obra para, se quiser, em prazo razoável e extensão compatível com a biografia, registrar suas eventuais contraposições ao conteúdo a ser veiculado. Essas reservas ou ressalvas, se apresentadas, seriam veiculadas juntamente com a obra, sem qualquer alteração do conteúdo dessa última.
Essa forma de equacionamento do problema: a) reconhece, no plano abstrato, uma espécie de prevalência do direito de manifestação ou expressão e b) contempla, ainda que de forma secundária, os direitos à (inviolabilidade da) intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas.
Cumpre observar que a afirmação da referida prevalência do direito de manifestação ou expressão decorre uma cuidadosa análise do texto constitucional e do regime por ele instaurado. Com efeito, o ambiente definido pelo Estado Democrático de Direito reclama a livre circulação de ideias e informações. Ademais, a censura prévia está expressamente proibida no texto constitucional. Em suma, a sociedade projetada pelo constituinte é justamente aquela conformada pela liberdade, pelo debate, pela discussão e pela pluralidade.
Deve ainda ser considerado que a necessidade de autorização prévia para a publicação ou divulgação das biografias admite uma espécie de presunção da violação de direitos (intimidade, vida privada, honra e imagem). O raciocínio aceitável é justamente o oposto. Deve ser tomada como premissa, como regra, que as obras elaboradas respeitarão os marcos ou limites jurídico-constitucionais relacionados com a privacidade do biografado. A ilicitude, quando e se ocorrer, deverá ser combatida nas searas civis e penais pelos meios adequados.
Dois importantes aspectos da realidade social devem ser considerados: a) a excessiva demora (muito além da razoável duração do processo) do Judiciário para responder de forma efetiva à lesão dos direitos relacionados com a privacidade e b) a ocorrência de exploração meramente comercial da vida privada de pessoas famosas. Esses elementos reforçam a ideia da possibilidade de contraposição imediata antes apresentada.
NOTAS:
(1) Em relação ao assunto tramita no Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria da Ministra Carmen Lúcia, a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.815.
(2) “Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.
(3) Barroso, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. Pág. 338.
Autor(es):
Curriculum:
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Professor da Universidade Católica de Brasília
Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB/DF
Contribuição doutrinária
Advogados e demais operadores do direito podem colaborar enviando artigos que abordem temas do direito e ciências afins e que envolvam as finalidades institucionais da entidade e da atividade da profissão de advogado. Os interessados devem encaminhar os artigos para biblioteca@oab.org.br