DESAFIOS ATUAIS DA ADVOCACIA PÚBLICA
A edição da Constituição de 1988 inaugurou o momento mais promissor para a Advocacia Pública ao longo da história do Estado brasileiro. Com efeito, nosso último constituinte, numa decisão de invulgar felicidade, definiu a existência das chamadas Funções Essenciais à Justiça, compostas pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pela Advocacia Pública e pela Advocacia (geral ou privada), conforme prescrevem os arts. 127 a 135 do Texto Maior.
O jurista Diogo de Figueiredo Moreira Neto, reconhecido amplamente como a maior autoridade brasileira em matéria de Advocacia Pública, formulou com precisão e maestria, em estrita consonância com a Carta Magna, a concepção das Procuraturas Constitucionais (Advocacia Pública em sentido amplo). Identificou, o acatado Mestre: a) a advocacia da sociedade, viabilizada pelo Ministério Público, relacionada com a defesa de interesses sociais com várias dimensões subjetivas, da ordem jurídica e do regime democrático; b) a advocacia dos necessitados, operacionalizada pela Defensoria Pública, voltada para a defesa dos interesses daqueles caracterizados pela insuficiência de recursos e c) a advocacia do Estado (ou Advocacia Pública em sentido estrito), instrumentalizada pela AGU (Advocacia-Geral da União) e pelas Procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, vocacionada para a defesa dos interesses públicos primários e secundários (com a clara prevalência dos primeiros em relação aos últimos, em caso de conflito, em homenagem à construção responsável do Estado Democrático de Direito).
Não obstante a estatura constitucional e a inegável importância para a sociedade e para os Poderes Públicos, a Advocacia do Estado (ou Advocacia Pública em sentido estrito), e mesmo a Advocacia dos necessitados (ou Defensoria Pública), experimenta consideráveis dificuldades para o exercício escorreito de suas relevantíssimas missões. Com efeito, prevalece em boa parte dos agentes políticos em posições estratégicas nos Legislativos e nos Executivos, uma significativa incompreensão, em franca dissonância com a construção do Estado Democrático de Direito definido pela Constituição, acerca da inafastável necessidade de prestigiar esses cruciais segmentos das atividades estatais.
As dificuldades começam com carências materiais de várias ordens. Destacam-se, nessa seara, espaços físicos inadequados, equipamentos e sistemas de informática insuficientes e ações de formação e capacitação profissionais deficitárias. No quesito recursos humanos pontificam quadros de procuradores com quantitativos abaixo das necessidades e ausências ou insuficiências de carreiras de apoio especializadas.
Existem, ainda, consideráveis vicissitudes no campo da afirmação da concepção de uma verdadeira Advocacia de Estado, minada pela censurável e deletéria Advocacia de Governo. A exclusividade da ocupação de cargos de direção jurídica por advogados públicos de carreira, já assentada em inúmeras decisões do Supremo Tribunal Federal, encontra resistências, sobretudo na AGU. O respeito à independência técnico-funcional dos advogados públicos e a efetivação de gestões democráticas e participativas sofrem com o exercício de uma deturpada hierarquia administrativa, que busca, indevidamente, manietar as características essenciais da profissão de advogado quando exercida em espaço público-estatal.
Obviamente, esses problemas manifestam-se em intensidade e formas distintas nos inúmeros órgãos das Advocacia Pública federal, estadual, distrital e municipal. Alguns estão em condições razoavelmente adequadas, reclamando aperfeiçoamentos ou acréscimos. Em outros casos, quase tudo está por ser construído.
Três exemplos emblemáticos ilustram a vigente insensibilidade governamental para com os vários setores da Advocacia Pública. Em passado recente, o ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva vetou dispositivo da Lei de Diretrizes Orçamentárias que buscava estabelecer limites para as restrições financeiras ao funcionamento da PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional). No segundo semestre de 2012, a Presidente Dilma Rousseff encaminhou, ao Congresso Nacional, um projeto de alteração da Lei Orgânica da AGU. Nesse projeto, inspirado por uma cúpula administrativa envolvida num escândalo de corrupção sem precedentes na instituição, atentou-se contra a exclusividade do exercício das funções institucionais da AGU por seus membros de carreira e o exercício da independência técnico-funcional em bases republicanas. Ainda nessa linha, vivenciamos uma inusitada luta contra o veto presidencial ao projeto de lei complementar que garante a autonomia financeira das Defensorias Públicas. Consta que interesses financeiros enviesados, articulados por alguns Governadores de Estados, são óbices à estruturação das Defensorias e, por consequência, ao eficiente serviço por elas prestados justamente aos mais necessitados.
Portanto, é possível afirmar que um dos grandes desafios atuais da Advocacia Pública consiste na necessidade de sensibilização ou convencimento dos principais agentes políticos para a necessidade de dotar essa Função Essencial à Justiça, em seus vários níveis, das condições materiais, humanas, jurídicas e políticas para o adequado cumprimento de suas missões. Essa empreitada passa pela mobilização dos advogados públicos, pela atuação consequente de suas entidades representativas, pela presença marcante da Ordem dos Advogados do Brasil, pela integração de importantes segmentos da sociedade civil e por um profundo debate na imprensa e no Parlamento.
Subsiste, ainda, um grande desafio numa perspectiva preponderantemente interna. Trata-se da precisa definição da identidade do advogado público. Aqui, o termo “identidade” aparece como delimitação e consciência do papel desempenhado, notadamente nas relações com os gestores ou governantes (a face visível do “cliente”).
Perceba-se que o advogado público pauta sua atividade, quer contenciosa, quer consultiva, na legalidade em sentido amplo (ou juridicidade). Na atuação contenciosa são defendidas políticas públicas e atos administrativos sob os argumentos de serem fundados em leis e estarem em consonância com a Constituição. É certo, registre-se, a persistência de uma séria dificuldade, a ser operacionalmente superada, quanto à defesa, ou não, dos atos administrativos reputados ilegais ou inconstitucionais, considerados e devidamente tratados os espaços de razoabilidade e as convicções pessoais acerca das matérias jurídicas envolvidas. Na atuação consultiva são reconhecidas, ou não, a constitucionalidade e a legalidade de políticas públicas e atos administrativos. Ainda nessa seara podem e devem ser apontados os caminhos ou soluções que afastem os ilícitos de todas as ordens para a consecução da decisão política adotada. Esses são os traços mais salientes de uma Advocacia de Estado.
São dois, portanto, os grandes desafios atuais no âmbito da Advocacia Pública. Em primeiro lugar, é preciso, num esforço de vários setores sociais, sensibilizar os principais agentes políticos para a necessidade de prover essa Função Essencial à Justiça, em seus vários níveis, das condições para o escorreito cumprimento de suas funções. Em segundo lugar, no plano interno, é crucial um profundo investimento de tempo e consciências no sentido de definir com razoável precisão e nas várias formas de atuação funcional a adequada identidade do advogado público.
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Contribuição doutrinária
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