Artigo: A Norma Geral Antielisão da MP Nº 66
por Alberto Xavier
A NORMA GERAL ANTIELISÃO DA MP Nº 66/02 E A TRIBUTAÇÃO POR ANALOGIA: UMA BRUTAL AGRESSÃO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
1 – A Medida Provisória nº 66, de 29 de Agosto de 2001, nos seus artigos 13 a 19, sob a epígrafe “procedimentos relativos à norma geral antielisão” visou implementar o parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional (“CTN”), acrescentado pela Lei Complementar nº 104/01, segundo o qual “a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”.
2 – A mais singela comparação entre as citadas disposições da Medida Provisória nº 66/02 e da lei complementar nº 104/01 revela que as primeiras não só ultrapassaram largamente e escopo da segunda, como também são com ela logicamente contraditórias.
3 – Ultrapassaram largamente o escopo da lei complementar nº 104/01 porque esta se limitou a autorizar a lei ordinária a estabelecer os procedimentos para a desconsideração dos atos jurídicos, mas não assim para alargar o círculo dos atos ou negócios suscetíveis de desconsideração. Ora, enquanto a lei complementar nº 104/01 tinha restringido tal círculo às hipóteses de simulação, como inequivocamente resulta da expressão dissimular (simulação relativa), o art. 13 da Medida Provisória nº 66/02 chega ao absurdo de afirmar que o nele disposto não se aplica aos casos de dolo, fraude ou simulação. Ao invés, afirma serem passíveis de desconsideração atos em que se verifique, entre outros fundamentos não tipificados, a ocorrência de “falta de propósito negocial” ou “abuso de forma”, considerando-se indicativo de falta de propósito negocial a opção pela forma mais complexa ou mais onerosa para os envolvidos entre duas ou mais formas para a prática de determinado ato e considerando abuso de forma jurídica a prática de ato ou negócio jurídico indireto que produza o mesmo resultado econômico do ato ou negócio jurídico dissimulado (art. 14)
4 – É de tal modo evidente o caráter exorbitante e contraditório da lei ordinária (medida provisória ) em relação ao que estabelece a lei complementar que a invalide das disposições em causa resulta dirta e imediatamente de violação da hierarquia constitucional das fontes de produção jurídica.
5 – Mais grave é, porém, o fato de tal violação atingir na sua essência o princípio básico do Sistema Tributário Nacional que é o princípio da legalidade da tributação, da essência de qualquer Estado – de -Direito, segundo o qual é vedado “exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça (art. 150, I da Constituição).
6 – O princípio da legalidade da tributação traduz-se num princípio de tipicidade, segundo o qual os fatos tributáveis constituem um numerus clausus constante de uma numeração taxativa, para além da qual existe um espaço de liberdade e propriedade insuscetível de ser preenchido por analogia. E daí que o art. 108, parágrafo 1º do CNT determine que “o emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não prevista em lei”.
7 – Ora, que a Medida Provisória nº 66/02 vem estabelecer cinicamente, às claras e sem pudor, é um sistema baseado na pura tributação por analogia, vez que permite que as autoridades administrativas tributar atos juridicamente válidos, não eivados de dolo, fraude ou simulação, que embora não previstos na lei fiscal, produzem, a juízo de um agente fiscal, um resultado econômico equivalente ao dos atos tipificados por lei. Trata-se, numa palavra, de tributação por analogia, por ato do Poder Executivo, o que, a prosperar, representaria a morte do princípio da legalidade da tributação.
8 – Sucede que esta tentativa de agressão não é possível na ordem constitucional brasileira, eis que o princípio da legalidade consagra uma garantia individual do cidadão, como resulta da própria formulação expressa do “caput” do art. 150 (“sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte...”), em tudo similar à garantia do art. 5º, inciso XXXIX, de que “não há crime sem lei que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
9 – O princípio da legalidade constitui garantia não só do direito de propriedade, inviolável aos termos do “caput” do art. 5º e do seu inciso XXII, como também do princípio da liberdade econômica, da livre iniciativa ou da liberdade de empresa – reconhecido como fundamento da República Federativa do Brasil logo no art. 1º da Constituição e como fundamento da ordem econômica no art. 170 - princípio este do qual é corolário o princípio da liberdade de contratar, que é também direito fundamental.
10 – liberdade significa alternativa de comportamentos, porque a liberdade de contratar consiste na garantia de que as opções alternativas no terreno do Direito Privado tenham como únicas conseqüências tributárias aquelas que resultam taxativamente da lei – princípio da tipicidade – com exclusão de quaisquer outras.
11- O fato de o princípio da legalidade constituir garantia individual faz com ele seja objeto de “ reserva de Constituição originária” que excluía competência de reforma do constituinte derivado. O parágrafo 4º do art. 60 da Constituição Federal é claro ao estabelecer que os direitos e garantias individuais (como os princípios da legalidade da tributação e da liberdade de contratar) incluem-se entre os limites materiais ao poder de emenda constitucional, de tal modo que nem sequer por emenda constitucional poderiam ser objeto de disciplina restritiva. Se não podem sequer ser objeto de medida por emenda constitucional, muito menos o podem por lei complementar, e por isso a Lei Complementar nº 104/01 manteve-se dentro dos lindes constitucionais ao restringir as hipóteses de desconsideração aos casos de atos simulados, contendo uma “cláusula anti-simulação” e não uma “cláusula antielisão”.
12 – No que concerne ao princípio de legalidade, o papel da lei complementar restringe-se ao de regular as limitações constitucionais ao poder de tributar, nos termos do art. 146 da Constituição Federal, regulação esta que, portanto, não pode ter qualquer alcance restritivo dos direitos dos contribuintes.Ainda sob este ângulo a Medida Provisório nº 66/02 é redondamente inconstitucional, já que a matéria de limitações ao poder de tributar é de competência exclusiva da lei complementar e, de harmonia com o art. 62, parágrafo 1º, III da Constituição , “ é vedado a edição de medidas provisórias sobre meteria reservada a lei complementar”.
13 – É, na verdade, aberrante o sistema que a Medida Provisória nº 66/02 pretende inovatoriamente instaurar. A tributação por analogia de atos válidos, não praticados em dolo, fraude ou simulação, representa, na verdade tributar um negócio que não se realizou, mas que hipoteticamente teria sido realizado se os sujeitos não tivessem optado pela alternativa negocial efetivamente adotada.
14 – Trata-se de tributar um “ato hipotético”, um “não ato” ou um ato por ficção legal. Pretende-se tributar um negócio que não se fez e que nunca se quis fazer, e o qual coincidirá na prática, inexoravelmente, com o modelo alternativo mais oneroso, que o Fisco impõe às partes para atingir os seus propósitos negociais, o que anula a liberdade de os cidadãos se organizarem e agirem da forma fiscalmente menos onerosa que a lei prevê.
15 – Não pode perder-se de vista, do ponto de vista político, que a doutrina da cláusula geral antielisiva ou do abuso de forma foi inspirada e mereceu o aplauso das ditaduras nazi-fascista. Assim sucedeu com a doutrina do abuso das formas da lei alemã, inspirada pelo ideólogo nazista ENNO BECKER; assim sucedeu com a lei francesa de 1941 do Marechal PETAIN; assim sucedeu com a lei espanhola da fraude à lei do ditador FANCISCO FRANCO;e assim sucedeu com a lei Argentina de 1946 de PÉRON.
16 – Ora, é neste modelos ideológicos repudiados pela história e incompatíveis com o Estado – de – Direito que se pretende instaurar uma “ditadura fiscal” que permite ao Fisco tributar ao seu capricho e arbítrio atos juridicamente lícitos e verdadeiros, submetendo o cidadão ao vexame de um poder inquisitorial que lhe permite se indagado porque fez uma venda e não uma permuta, porque fez um depósito e não um empréstimo, porque fez uma aumento de capital e não uma compra e venda, porque fez uma cisão e não uma dissolução, porque emitiu uma debênture e não uma parte beneficiária, e assim por diante.
17 – Que resta da liberdade civil de contratação, da liberdade econômica e organização e da propriedade dos bens legitimamente adquiridos? E em mãos de quem fica este poder de pesquisar, devassar, investigar e apreciar as razões que levam o cidadão a seguir um caminho em vez de outro?
18 – O clima de terror fiscal que um sistema dessa natureza inevitavelmente introduz é incompatível com a segurança jurídica, essencial ao Estado – de – Direito e à economia de mercado, pois sem ela é impossível a expressão da livre iniciativa, que requer segurança e liberdade, sem as quais não há propriedade nem planejamento empresarial possível.
19 – Tal sistema significa a morte do princípio da legalidade tributária e retrocesso inaceitável no caminho da construção de uma sociedade em que as liberdades civis e políticas assegurem os valores da personalidade, a propriedade e a economia de mercado.
20 – Terminamos este artigo com um apelo a todos os juristas para que unam os seus esforços no sentido de que as disposições dos artigos 13 a 19 da Medida Provisória nº 66/02, de inspiração totalitária e autocrática, e incompatíveis com a medula do Estado – de – Direito, sejam erradicadas pelo Poder Legislativo e pelo Poder Judiciário da ordem jurídica brasileira, onde em má hora se tentaram infiltrar pela via espúria e abusiva de medida provisória afrontosamente inconstitucional quanto à forma e quanto ao fundo.
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Alberto Xavier é advogado no Rio de Janeiro