A responsabilidade social da OAB
Leia, na íntegra, a Conferência do presidente nacional da OAB, Rubens Approbato Machado, proferida na XVII Conferência dos Advogados Catarinenses:
Minhas Senhoras, Meus Senhores
Confesso que o tema desta palestra – A RESPONSABILIDADE SOCIAL DA OAB – sugerido pela Digna Comissão Organizadora desta XIV Conferência dos Advogados Catarinenses, é de minha particular predileção.
Explico as razões: tratar da responsabilidade social na esfera da nossa entidade é tratar, sobretudo, da responsabilidade social do advogado. E tratar da responsabilidade social do advogado não deixa de ser uma descrição dos valores e das qualidades da nossa profissão. Se assim o é, permitam-me as senhoras advogadas e os senhores advogados aqui presentes, fazer breves digressões sobre o conceito do advogado e o sentido da advocacia, antes de ingressar na esfera mais larga da nossa entidade.
Começo lembrando que a advocacia está intimamente atrelada à idéia de paz social. Esta referência decorre do sentido de que a advocacia objetiva, em primeiro lugar, a composição justa da lide, a conciliação das partes, procurando encaminhá-las para uma solução pacífica do litígio e em termos civilizados, sem estímulos à litigiosidade, e só buscando a ação estatal da prestação jurisdicional, quando frustradas todas as possibilidades de conciliação. Há, assim, um colchão social a abrigar o perfil do advogado.
Lembro, a seguir, que a Constituição Federal, por meio do art. 133, contempla a advocacia como uma identidade de caráter público, ao reconhecer que o advogado é indispensável à administração da justiça, relevância que o legislador infra-constitucional reforçou na lei 8906/94 – Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil-OAB – quando conferiu ao advogado independência funcional, ao dispor que o advogado é inviolável por seus atos, no exercício da profissão, igualando o advogado aos juízes e promotores, onde inexiste subordinação profissional ou hierárquica. Vale proclamar que, dentro do grande-guarda chuva da administração da justiça, a alma do advogado se faz presente no promotor, no juiz, pois tanto um quanto o outro ingressam no mundo do exercício do Direito pelas portas generosas da advocacia, cumprindo, cada um, seus ritos de passagem, até retornarem, ao fim de suas missões especializadas, para a grande família da OAB.
Um ligeiro apanhado do advogado Antônio Alexandre Ferrassini revela a amplitude do munus publico da advocacia:
Pelo art.133, o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, os limites da lei.
Por sua vez, os artigos 2º e 31 da Lei nº 8.906/94 regularam a questão da inviolabilidade funcional da seguinte maneira:
Art. 2º O advogado é indispensável à administração da justiça.
§ 1º No seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social.
§ 2º No processo judicial, o advogado contribui, na postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador, e seus atos constituem múnus público.
§ 3º No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites da lei.
Art, 31. O advogado deve proceder de forma que o torne merecedor de respeito e que contribua para o prestígio da classe e da advocacia.
§ 1º O advogado, no exercício da profissão, deve manter independência em qualquer circunstância.
§ 2º Nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão.”
Esse conjunto de normas tem o dom de transferir para o advogado a independência que ele necessita para exercer, dentro do Estado Democrático de Direito, da forma mais ampla possível, o direito de defesa dos interesses a ele confiados, sem temor, e com a segurança de que os atos por ele praticados, no exercício profissional, não receberão e nem podem receber represálias.
E por deter imunidade profissional, o advogado há de se inspirar na fonte ética da responsabilidade, que quer significar diligência para com os interesses do cliente, zelo para com a processualística do setor e dever de aperfeiçoar as técnicas e métodos de atuação, além do respeito, equilíbrio e moderação nas atitudes, o que não significa subserviência.
Há de ser lembrada a lição do grande Rui Barbosa, pela qual o advogado não se subordina, na sua atuação profissional, a nenhum poder humano, a não ser à sua própria consciência e à lei, decorrendo daí, a necessidade de balizamentos éticos.
E para procedermos de acordo com esses balizamentos, dispomos, hoje, do nosso Código de Ética, baixado pelo Conselho Federal da Ordem (art. 33 e 54, V, do atual Estatuto da OAB), que constitui o farol para iluminar a consciência dos advogados. Para enfrentar as intempéries ambientais, as pressões e contra-pressões, os crescentes conflitos entre lei e moral, o advogado tem a sua melhor ferramenta de defesa: o Código de Ética, que é o esteio de sua consciência e a garantia de sua independência.
Cabe ao advogado, como lembra Luiz Otávio de Oliveira Amaral, mais que intermediar povo e poder judicante, exercer com sua formação ético-humanística, um papel regulador do justo e virtuoso equilíbrio na prestação jurisdicional. Ou, como ensina o mestre dos mestres Miguel Reale: “O advogado deve preservar contra tudo e contra todos o seu cunho liberal e humanista de sua profissão liberal, porque fundada na liberdade e convicção científica; humanista, porque tem como fundamento a dignidade da pessoa humana e a livre afirmação das infinitas tendências e inclinações do homem”.
Senhoras e Senhores
Depois desta breve descrição sobre a missão do advogado, que, como vimos, implica assumir altas responsabilidades sociais, cabe, agora, inferir sobre a nossa Ordem, destacando o seu papel na esfera da responsabilidade social, conforme recomenda o título da palestra.
Valho-me, inicialmente, da objetiva e esclarecedora descrição do já mencionado Luiz Otávio de Oliveira Amaral, que mostra, no trabalho sobre “A trajetória dos Advogados do Brasil”, os passos da nossa OAB.
A inspiração provém da França, onde, sob a Ordenança de Felipe de Valois, surge a Ordem, como confraria de advogados e procuradores. Emergiu, desde então, a figura do Bâtonnier, o advogado escolhido como homenagem à sua dignidade profissional, para ostentar, nos festejos de São Nicolau (santo patrono dos advogados franceses) o bâton (bastão) com as insígnias do santo.
No Brasil Império, influentes homens públicos comungavam a idéia de uma Ordem, mas acabou se criando o Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, em 1843, com sede na Corte, Rio de Janeiro, e filiais nas Províncias. O ideário inicial se voltava para a luta pelo Direito, pela Justiça e pelo aperfeiçoamento moral e intelectual do advogado. Como entidade cultural, só antecedeu o Instituto dos Advogados o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. No período do Império e, posteriormente, na era da Primeira República, muitas e infrutíferas tentativas legislativas houveram para a criação de uma entidade de classe dos advogados, a Ordem. Concretizou-se essa aspiração, no governo revolucionário de 1930, com a criação da Ordem dos Advogados do Brasil, no artigo 17, do Decreto 19.408, de 18 de novembro de 1930. É interessante observar que, já em 1917, Azevedo Marques, como delegado da Faculdade de Direito no Instituto da Ordem dos Advogados de São Paulo, reverberava que “não existe disciplina e compostura suficiente nem estágios, não tendo o valor que deviam ter os diplomas científicos, a experiência, a proficiência, o tirocínio e o esforço”.
Nascida a Ordem, em 18 de novembro de 1930, dentro de um regime arbitrário e centralizador, pelo trabalho idealista de um ilustre magistrado, o desembargador da Corte de Apelação do Rio de Janeiro (hoje Tribunal de Justiça), André Faria Pereira, que, encarregado pelo ministro da Justiça, Oswaldo Aranha, de elaborar um decreto de reforma do Tribunal, acabou incluindo um dispositivo (o mencionado artigo 17), tornando real o sonho da classe: nasceu, naquele dia e sob aquele ambiente a ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, tendo sido seu primeiro Presidente o advogado LEVY CARNEIRO que era e se manteve Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros e, na ocasião, exercia a função de consultor-geral da República.
A normatização da profissão se deu pelo REGULAMENTO (decreto n.20.784, de 14.12.1931 e consolidado pelo Decreto n. 22.478, de 20.02.1933). Esse Regulamento veio depois de intensa discussão nos meios jurídicos. O Regulamento inicial foi modificado por diversas vezes, até surgir, em 27 de abril de 1963, a LEI 4.215, que foi o Estatuto da Ordem e a regulamentação da profissão, até sua revogação pela lei 8.906( 04.07.1994), que é o atual Estatuto da Advocacia e da OAB.
As disposições normativas que regraram e disciplinaram a profissão, desde 1930 até a vigência da Lei 4.215/63, sempre tiveram advocacia como o exercício de uma profissão liberal pura. A partir do golpe militar de 1964, com a criação indiscriminada de cursos jurídicos, o perfil do advogado mudou, ocorrendo, como é notório, a proletarização da classe e transformando o profissional, na maioria das vezes, em um assalariado, dependente de uma relação de emprego, quer no setor público, quer no setor privado e, mesmo, junto a escritórios de advocacia.
Foi essa modificação do perfil do profissional da advocacia que impôs a edição de uma nova lei, que é a vigente Lei 8.906 de 1994, que traçou novos rumos para a profissão e contemplou a figura do advogado empregador e do advogado empregado, sem, porém, retirar-lhes a independência profissional, a obediência de suas prerrogativas e dos princípios éticos, fundamentos essenciais do exercício da advocacia, inclusive dando relevo à missão social do advogado.
Essa diretiva de defesa institucional do advogado, profissional da cidadania e da justiça, defensor da sociedade, da liberdade e do Estado de Direito democrático, só é possível com uma ORDEM DOS ADVOGADOS forte, independente, que não se circunscreva a ser exclusivamente uma entidade corporativa, mas, indo além dessa nobilitante função, e ser uma entidade de compromissos de defesa das instituições democráticas, função essa que lhe é imposta pela Constituição, pela Lei e pela própria coletividade brasileira.
Merece leitura diária o disposto no artigo 44 e seus parágrafos, da Lei 8.906/94:
“Artigo 44. A Ordem dos Advogados do Brasil-OAB, serviço público, dotada da personalidade jurídica e forma federativa, tem por finalidade:
I – defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas;
II – promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil.
Parágrafo primeiro: A OAB não mantém com órgão da Administração Pública qualquer vínculo funcional ou hierárquico.
Parágrafo segundo: O uso da sigla “OAB” é privativo da Ordem dos Advogados do Brasil.”
A natureza da Ordem, como se pode depreender da leitura de seu Estatuto, tem caráter de serviço público, conservando ela, porém, sua plena autonomia. Por várias vezes se procurou restringir a sua independência, por meio de subordinações ao Tribunal de Contas, ao Ministério da Justiça ou ao Ministério do Trabalho. Aos governantes autoritários ou àqueles que não querem ser incomodados com uma entidade livre e corajosa, não interessa uma OAB liberta do jugo governamental.
Convém, neste passo, lembrar que a sua identidade está descrita no ensinamento do jurista Dario de Almeida Magalhães:
“Órgão de cooperação com a justiça e indispensável ao bom desempenho desta, a Ordem, pelas finalidades que lhe são reservadas, executam, assim, inquestionavelmente, um serviço público especializado de caráter permanente e de natureza daqueles que só podem ser realizados por entidade estatal, ou por entidade a que se transferiu o atributo específico da autoridade, isto é, o imperium. Na realização de sua tarefa e no exercício de seus poderes, a Ordem não está subordinada senão à lei.”
Pelas trilhas da defesa dos direitos da coletividade, desfraldando as bandeiras da Justiça e do Estado Democrático de Direito, bradando contra as arbitrariedades, as injustiças e as perseguições políticas, a ORDEM liderou os momentos mais importantes da história contemporânea do nosso país, seguindo a tradição dos advogados, de não calar a voz, de não se dobrar diante das pressões, de defender, intransigentemente, a dignidade humana, a Cidadania, a moralidade pública, a justiça e a paz social.
Resume-se nesse ideário a responsabilidade social da Ordem.
Dessa linha de idéias e conceitos, podemos pinçar uma questão que é chave para entendermos o conceito de responsabilidade social da Ordem dos Advogados do Brasil:
“onde e como a Ordem desempenha a sua responsabilidade social?”
Tentemos explicitar algumas respostas.
A primeira abordagem se dá no plano da ordem normativa. Assim reza o artigo 3. da Constituição Federal:
Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Defender estes objetivos faz parte da nobre missão da nossa Entidade.
A grandeza de uma sociedade livre, a fortaleza da condição humana, a igualdade entre as classes sociais, a promoção do bem comum constituem, sem dúvida, os eixos da ação de responsabilidade social da OAB.
Infelizmente, o retrato de nossa realidade está muito distante da utopia desenhada pela nossa Constituição.
Vejamos os dados mais recentes: o Brasil acaba de ser inserido, mais uma vez, pela Organização das Nações Unidas, na planilha que indica o Índice de Desenvolvimento Humano e a Índice de Gini, referente à desigualdade de renda. O Brasil ocupa o 73o lugar no ranking dos países que integram o IDH. E é a quarta pior Nação no conceito da concentração de renda, só perdendo posição – vejam que vergonha – para Serra Leoa, República Centro-Africana e Suazilândia. Estamos entre os quatro piores países do mundo no que se refere à concentração de renda.
Como as senhoras e os senhores percebem, o escopo fundamental da cidadania, que é a base sobre a qual se assentam os Direitos Humanos, tão bem descritos no art. 3o de nossa Carta Magna, não passa de um sonho ou de uma retórica exuberante.
Combater a tragédia social e defender a cidadania, cujo escopo se ampara na idéia de igualdade de cada um, na promoção do bem comum, no acesso de todos aos bens, aos serviços e às riquezas nacionais, é um dever inarredável da OAB.
Ainda no plano da ordem normativa, podemos nos ater ao artigo 5o da CF, que, no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), Capítulo I (Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) onde estão asseguradas as condições básicas para o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Para não ficarmos apenas no terreno das constatações e descrição dos dispositivos normativos constitucionais, tomemos como parâmetro inicial de nossa reflexão e a título exemplificativo a questão do direito à terra, do direito à moradia. Trata-se de um direito inalienável para a consolidação da identidade dos cidadãos. Sem respeito a um direito como esse, não há como se garantir a dignidade, valor-central dos cidadãos.
Que responsabilidade social maior que a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos?
“Sem respeito aos direitos, não existem grandes povos; quase poder-se-ia dizer que não há sociedade; pois o que vem a ser uma reunião de seres racionais e inteligentes, cujo único laço é a força?”. Esse conceito lapidar de Alexis de Tocqueville nos remete para a questão que está na ordem do dia dos problemas brasileiros: que valores são mais importantes no julgamento de causas envolvendo os direitos sociais e os direitos individuais? o que deve prevalecer, por exemplo? a importante defesa do meio ambiente ou a defesa da dignidade de cidadãos lesados que ocupam terrenos de preservação de mananciais, decorrentes de explorações muitas vezes sob as vistas grossas e a conivência da administração pública, ou que ocupam terras, adquirindo-as com sacrifício de loteadores criminosos, para poder construir a sua casa e gerar condições de subsistência?
Tomar partido a respeito de tão polêmica questão faz parte do papel social da Ordem dos Advogados do Brasil.
É seu dever partir para a defesa dos direitos humanos, que implica a expressão de valores de isonomia, solidariedade e liberdade. O mencionado artigo quinto de nossa Constituição assim se inicia: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade…” E no inciso III: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Aí estão consignados preceitos morais que fundamentam os alicerces dos cidadãos.
Esse raciocínio preambular nos leva à afirmação de que, no exemplo suscitado, o direito à moradia é um dos direitos fundamentais da pessoa humana, na letra fria da lei. A realidade, como bem o sabemos, é feita de injustiça e indiferença. A carência habitacional nos centros urbanos é um problema gravíssimo, fruto de distorções sociais e econômicas. Só em São Paulo essa deficiência ultrapassa a casa de um milhão de moradias. O Brasil vem se transformando no que se chama de uma “sociedade darwiniana”, na qual os menos favorecidos não têm condições de sobreviverem e são deixados para trás, esquecidos, pelo Poder Público.
Que conclusão podemos tirar dessa ligeira reflexão?
A conclusão é a da necessidade de existir um espaço crítico, onde se possa plasmar o escopo da cidadania, e de onde se possa originar a pressão para as soluções demandadas pela sociedade. É nesta esfera que atua a OAB, com a força de sua responsabilidade social. E, em função da credibilidade conquistada, ela poderá dizer bem alto que os direitos inerentes à dignidade humana dos cidadãos não podem ser subordinados a direitos sociais, difusos e abrangentes, que também devem ser respeitados e preservados. É necessária uma adequação no confronto entre esses direitos substanciais, para que a dignidade humana, fundamento da República Federativa do Brasil, como estado democrático de direito.
Vejamos outro exemplo. A sociedade tem todo direito de retirar de seu convívio os criminosos com julgamento definitivo, sem prejuízo, no entanto, dos valores que alicerçam a dignidade humana. Quando o Estado, por falta de infra-estrutura e preparo, impõe outras formas de punição de crueldade aos presos, além daquelas a que foram submetidas por força da lei, está ilicitamente promovendo a degradação humana. A pena justa, imposta pelo Estado, através do devido processo legal, acaba sendo acrescida de uma outra pena, que é a mais cruel, do aviltamento e degradação do ser humano. E é pela voz da OAB que esse tipo de mazela vem a conhecimento público, na expressão, mais uma vez, da defesa dos direitos individuais e da dignidade humana.
Para se tirar das ruas uma criança sem estrutura familiar, sem escola, levada a praticar delitos ou deles estando próxima, é preciso se dispor de uma sólida infra-estrutura de recuperação, capaz de lhe dar conforto, carinho e amparo, sob pena de estarmos colocando em outro espaço de criminalidade. Ou seja, a sociedade e o Estado, juntos, devem se dar as mãos no esforço de resgate dos direitos das crianças de rua.
A verdade é que o Estado brasileiro, sob a idéia central de preservação da ordem pública, contribui e muito para a degradação da vida de muitos grupos. O Estado não está preparado para educar, para resgatar a dignidade de pessoas que cometem delitos, para lhes oferecer um tratamento decente nos cárceres. Que adianta, como no primeiro exemplo colacionado, desafogar as áreas de mananciais, o que é importante, mas deixar famílias inteiras vivendo ao relento, debaixo de pontes e viadutos, sem uma política eficiente e socialmente justa para solucionar o problema da moradia? Infelizmente, a tão batida expressão “soberania da lei” torna-se, freqüentemente, antidemocrática. Um Governo de leis e não de homens, todos o sabem, acaba resvalando pela tirania. Estar subordinado a leis cujos dispositivos não são democráticos, no espírito, na intenção e nos resultados, não gera democracia.
A lei, como instrumento de Governo, pode ser usada para a tirania ou para a justiça, para a liberdade ou para a opressão, para a eqüidade ou para a iniqüidade, para consolidar a democracia ou para enfraquecê-la, como bem lembra Leslie Lipson, em A Civilização Democrática.
Sabemos que os nossos valores democráticos são precários. Por acaso, podemos dizer que praticamos igualdade de direitos para todos? A sociedade está provida de todos os recursos e meios para seu bem estar? Praticamos uma verdadeira justiça social?
Essas candentes indagações têm merecido da OAB não apenas uma profunda reflexão, mas uma ação consciente, na forma de denúncias, na forma de pressão, na forma de mobilização e na forma de permanente articulação junto aos Poderes Públicos. A responsabilidade social da OAB resvala pela defesa dos direitos individuais e sociais, pela preservação das normas positivas, pela garantia da ordem pública.
Os cidadãos não podem ser massacrados pela ineficiência do Estado. Por isso, uma das funções da Ordem é a de colocar uma lupa sobre os agudos problemas sociais, os eixos que sustentam o edifício da dignidade humana.
Senhoras advogadas, senhores advogados
O momento que estamos atravessando é particularmente significativo para colocarmos na mesa de discussões as grandes questões nacionais.
Como já destaquei, não podemos nos conformar com a pérfida situação nacional, descrita vergonhosamente pelo Relatório da Organização das Nações Unidas. Tenho dito e repetido em mensagens várias: uma democracia que não dá oportunidades por igual, que não serve de instrumento para diminuir distâncias sociais, é uma caricatura mal desenhada de si mesma.
O povo brasileiro, que deve ocupar o lugar central da Nação, principalmente em ciclos eleitorais, como o que estamos vivenciando, é, infelizmente, usado como massa de manobra, apenas como densidade eleitoral. A população continua alheia aos negócios do Estado e é permanentemente sujeita a choques – como a crise de energia, no final do ano passado, sujeitando-se, ainda, a tentativas de golpes nas reservas em Fundos de Investimento, e a ameaças de instabilidade, que denotam a irresponsabilidade do Estado e a fragilidade da política econômica em face dos humores dos especuladores internacionais. Em compensação, a folha em cascata dos tributos já ultrapassa a casa dos 34% do Produto Interno Bruto, dinheiro que sai dos nossos bolsos, mas não retorna na mesma proporção do desembolso.
Na esteira da responsabilidade social da Ordem, não posso deixar de colocar a lupa sobre o espectro institucional, para fazer a seguinte radiografia:
Os espaços da administração pública nacional continuam a fazer a festa dos apaniguados dos partidos políticos.
O mandonismo, o compadrismo, o familismo amoral, os feudos, os jogos de interesses mútuos pautam a melodia nas administrações públicas, nas esferas – municipal, estadual e federal.
O sistema de comunicação é partilhado pelos políticos, usando-se a concessão estatal como moeda de troca no balcão do fisiologismo, e se propiciando, através desse meio, a perpetuação no poder, a corrosão do sistema democrático e a efetividade dos avanços e reformas.
As leis eleitorais, feitas para atender pleitos dentro de uma determinada conjuntura, são constantemente agredidas, comprometendo o ideal democrático da ordem e da estabilidade legal.
Não por acaso, expande-se, entre nós, a cultura da improvisação e o provisório acaba se transformando no permanente, como a famigerada CPMF, transformada em instrumento duradouro.
No plano político, o nosso modelo mais se assemelha ao presidencialismo imperial ou, como queiram, um parlamentarismo às avessas. Basta verificarmos a contrafação.
Por muito tempo, o Poder Executivo usurpando funções do Poder Legislativo, fazia leis para ele mesmo, Executivo, operar e, assim, desenvolvendo, entre nós, um Parlamentarismo às avessas. E isso ocorria, apesar das restrições feitas ao uso das Medidas Provisórias. Foi a voz da OAB, cumprindo sua missão na defesa da ordem e da sociedade, que alterou esse caminho tortuoso.
Na esfera do entretenimento, a exploração do mundo cão, a vulgaridade, as mazelas, o histrionismo, as exibições públicas de uma escatologia aviltante, exploradas em cenas íntimas nas casas de artistas e congêneres, atestam um estado geral de amoralidade, impudor e ausência de sentido ético. A dignidade humana, base dos direitos fundamentais, é atingida em seus valores e princípios, entre os quais o direito à privacidade.
A corrupção, por seu lado, continua a campear, inundando espaços, ganhando novas formas tecnológicas, sofisticadas.
Os cárceres se locupletam de bandidos, que passam a implantar um Estado dentro do Estado, com as lideranças, dentro das prisões, dando ordens, por telefone celular, acionando o tráfico de drogas, determinando assassinatos, fazendo “leis” da criminalidade. A situação de guerra generalizada, comandada pelas gangues e bandos criminosos, e a violência nas cidades e nos campos, têm sido responsável pelo assassinato de 40 mil brasileiros por ano, quantidade maior que as guerras modernas.
As cadeias se transformam em verdadeiros queijos suíços, esburacadas por todos os lados, propiciando a fuga em massa de bandidos.
As grandes cidades se transformam em sucursais do inferno e do caos, expandindo as ondas de angústia, insegurança e medo.
Expandem-se os núcleos de miséria metropolitana, bastando ver, a corrida rotineira dos cordões de miseráveis e de favelados que afluem em massa para resgatar restos de alimentos deteriorados, nos lixões periféricos das grandes cidades.
Que cidadania pode se ganhar, dentro de uma moldura social precária como esta? Esta é a moldura aviltante que integra o discurso crítico da OAB, em suas manifestações perante autoridades e em eventos de significação social, para os quais é convidada.
Temos continuamente apregoado a necessidade de o Governo refazer a equação econômica, de modo a contemplar com força a rede de proteção social. A disparidade na distribuição de renda é problema emblemático do País. A desigualdade social é um golpe na cidadania. Apesar do quadro de estabilidade econômica conseguido pelo Plano Real, os índices de pobreza se mantiveram altos, com 40% da população situados abaixo da linha da pobreza. Hoje, 1% da população detém 53% do estoque da riqueza do país. Esses índices são vergonhosos.
Os recursos nacionais, repartidos entre a União, Estados e Municípios, têm sido suficientes apenas para manter funcionando precariamente estruturas administrativas, muitas anacrônicas. Os investimentos nas áreas sociais, mesmo vultosos, são mal direcionados, mal controlados, e freqüentemente sujeitos ao crivo político de grupos regionais, quando não desviados de suas finalidades para o interesse pessoal que gera a corrupção. A falta de continuidade administrativa, uma das mazelas do nosso sistema político, coloca Estados e Municípios na posição de um eterno reinício, sem prosseguimento dos programas de desenvolvimento. Bilhões de reais são perdidos por falta de continuidade e coerência administrativa.
A OAB tem defendido a idéia de refundação do Estado como alternativa mais consistente para o país reencontrar os caminhos da justiça social e da cidadania.
Refundar o Estado significa, por exemplo, refazer as regras e práticas do sistema político. O nosso sistema político, em função da cultura paternalista, originada do mandonismo colonial que ainda impera em muitas unidades federativas, se ressente de conteúdo social e de disciplinas coletivas, servindo, freqüentemente, a interesses de elites econômicas. Estas, por sua vez, determinam as condições da política, modelando os sistemas decisórios e assumindo, quase sempre, os lugares destinados às representações populares. Dominam ou mantêm poderosos vínculos com o sistema de comunicação de massa e com as estruturas públicas nos planos federal, estadual e municipal, fatiando os espaços e abrindo comportas de corrupção nas malhas das administrações.
A máquina do Estado, da mesma forma, é um conjunto desarmonioso de estruturas, normas, processos e quadros, que aleija o desenho institucional. Os serviços oferecidos pelas estruturas públicas são ruins, a partir por exemplo, dos hospitais. As filas se multiplicam nos guichês. A burocracia emperra os processos. As folhas de pagamento do funcionalismo ultrapassam os limites estipulados pela lei, e mesmo nos Estados que a cumprem, faltam recursos para investimentos. Não é de admirar que Estados e Municípios estejam quebrados. Mesmo a Lei de Responsabilidade Fiscal está sendo driblada em algumas unidades federativas.A sangria de pessoal qualificado na administração pública agrava as deficiências do Estado. Não há sinergia de ações entre os setores da máquina, faltam estratégias e políticas de longo prazo.
Esta moldura deformada está a exigir a refundação do Estado brasileiro.
Senhoras e senhores
Nós, advogados, temos um importante papel dentro da nossa Entidade. Podemos seguramente ser mais engajados nas lutas da OAB para defender a cidadania e para resgatar os eixos perdidos de nossa democracia social.
Como se pode observar, trata-se de uma missão de reforço à missão institucional da Ordem, que deve transcender as suas rotinas e preocupações corporativas. Quero sublinhar que a Ordem tem uma responsabilidade que transcende o exercício de defesa da advocacia. A Ordem tem a responsabilidade de defender a sociedade. Ela é o pulmão que oxigena o corpo nacional. Por seus fluxos, por seus canais, deve fluir a seiva que vitaliza as instituições nacionais. É oportuno recorrer a um dos nossos lemas: a OAB não tem compromisso com grupos e pessoas, com partidos e facções. O compromisso da OAB é com a coletividade nacional.
Vista por esse prisma, a Ordem é a porta-voz da sociedade pela defesa da consolidação institucional e política do país. Muitos perguntam: que deve fazer a Ordem para resgatar o ideário cívico, as bases da moralidade e da ética, a dignidade e a autoridade, o respeito às normas constitucionais, os valores perdidos da Cidadania, os compromissos básicos do país?
Respondo: a função primordial da Ordem deve ser a mesma que a da luz: iluminar os ambientes. Daí o seu papel de lume da sociedade. Deve a Ordem, cada vez mais, assumir seu papel de defensora dos grupamentos sociais.
Dentro desses altos propósitos, a Ordem há de desenvolver seus programas, seus projetos, suas ações, sua responsabilidade social.
O papel da Ordem, como as senhoras e os senhores poderão concluir, é o de tentar repor a normalidade constitucional, pela conscientização cívica dos cidadãos, pela pressão sobre a representação política, pela mobilização social, pela ação de cada conselheiro e de cada advogado nas suas comunidades e nas Subsecções onde atuam.
Essa é a razão pela qual as advogadas e advogados precisam se engajar mais na instituição, fazendo-se, sempre e sempre, mais presentes nas Seccionais e nas Subsecções de seus Estados. Como todos sabem, a vida de uma instituição é o pulsar de sua comunidade, é a energia vital que flui da criatividade de seus participantes. Fortalecer a instituição é trabalhar pela grandeza do próprio advogado. Nesse sentido, faço um apelo para que as senhoras e os senhores ingressem no programa de recadastramento dos advogados. E as razões para tanto são muito lógicas: precisamos efetivamente conhecer o nosso corpo funcional, suas dimensões, natureza, expectativas e demandas, a fim de produzirmos programas e ações corporativas e institucionais mais consentâneas com a realidade dos advogados.
O perfeito conhecimento dos grupamentos estaduais permitirá interação estreita entre as Seccionais, propiciando, via on line, saber se um advogado de um Estado, por exemplo, do Amapá, em atividade, em outro Estado, por exemplo Em Santa Catarina, está em dia com suas obrigações, ou se está excluído ou suspenso, ou mesmo se porta qualquer restrição ao exercício profissional, por incompatibilidades ou impedimentos. Trata-se, como se percebe, de um controle melhor e mais eficaz do exercício profissional, controle que reverterá em benefício dos próprios advogados, na medida em que a falsificação de documentos estará sob a lupa da Ordem.
Adiante-se que os novos documentos, feitos pela casa da Moeda, entidade oficial e respeitada, agregam os elementos e requisitos da tecnologia mais recente, impedindo falsificações, na medida em que é dotada de meios tecnológicos que impedem a sua contrafacção. Com a informatização dos Tribunais de todo o país, meta que está sendo implementada, e com a assinatura digital dos advogados, os novos documentos se constituirão em mais um elemento do conjunto tecnológico que permitirá exercer, virtualmente, a advocacia em qualquer região do país. Será a conquista da agilidade processual, da tão reclamada celeridade dos processos na Justiça. E o valor a ser cobrado pela confecção desses documentos, a preço de custo, é muito inferior aos custos de documentos congêneres, como o passaporte e a carteira de habilitação de motorista.
Deixo, por último, uma palavra sobre o DIREITO.
O ser humano, único abençoado com a dádiva divina da inteligência, é um ser gregário, que só sobrevive estando em sociedade. Por essa razão elementar, o convívio entre os seres humanos há de ser regrado por normas sociais, transformadas em normas jurídicas, cujo descumprimento acarreta uma sanção, imposta pelo Estado instituído pelos próprios homens, obediente às regras fundamentais do direito ao contraditório e da ampla defesa.
É nessa afirmação que se pode assegurar que, aos profissionais do Direito, cabe papel fundamental na estratégia de mobilização social de um país. No Brasil, pelas condições aqui descritas, tal mobilização se faz mais premente.
Sem Direito, não há Justiça; sem Justiça não há Democracia; sem Democracia, não há Liberdade. E uma Nação sem liberdade está condenada à barbárie, afastada dos horizontes da Cidadania. Será uma Nação sem esperança, será uma Nação de olhos fechados ao futuro.
Em palavras finais, deixo, aqui, a minha palavra de fé nos destinos do Brasil:
Creio no destino promissor de nossa Pátria;
Creio nas imensas potencialidades do nosso país;
Creio nos valores do nosso povo;
Temos, enfim, de lutar pelos três amores que deixou Deus aos homens.
Três amores que, segundo a lição do advogado RUI BARBOSA, são:
o amor à Pátria
o amor à liberdade
o amor à verdade.
Muito obrigado.
RUBENS APPROBATO MACHADO
Presidente Nacional da OAB
Lages, 08 de agosto de 2002