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Artigo: A propósito do Parecer do Conselho Nacional de Educação

quarta-feira, 26 de junho de 2002 às 15h08

Por Milton Paulo de Carvalho
Mestre e Doutor em Direito pela USP. Secretário da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB.

Advertência prévia

Não se imagine amargor ou pessimismo à base das considerações adiante expendidas, porque são elas fruto de autêntico e sincero espírito de colaboração. Todavia, concebidas diante da realidade do ensino do direito no Brasil, já de há algum tempo adversa e agora na iminência de derrocada, em razão da emissão do Parecer n.º 0146/2002 do Conselho Nacional da Educação, é inevitável a decepção, porquanto todos os esforços dos organismos e setores da vida universitária nacional, patrioticamente comprometidos com o reerguimento do ensino jurídico, vêem-se frustrados, denunciando que se mal estávamos, muito pior ficaremos.

Por isso, falaremos menos sobre os males que especificamente nos atemorizam, e mais genericamente sobre as causas, umas próximas, outras remotas, da situação sugerida pelo referido Parecer, que se pode convolar em Resolução em breve tempo.

Causas da situação atual do ensino do direito no Brasil

É inegável o estado de deficiência em que se encontra o ensino do direito no Brasil. Várias causas remotas, ou externas, podem ser apontadas: entre outras avultam a ineficiência dos cursos elementares, que em grande número de vezes nem sequer chega a despertar no jovem qualquer vocação profissional; o declínio no cultivo das humanidades, como fator verificado em quase todas as partes do mundo, em comparação com o incremento das ciências exatas e tecnológicas; a banalização do direito positivo escrito, com raízes na inaptidão para o exercício do poder de legislar; o desprestígio da justiça, como instituição, em razão, antes de tudo, da sua morosidade. Interpenetram-se, portanto, um descrédito (embora infundado, porque superficial e apressado) no cultivo do direito como ciência, e o desprestígio profissional e social do operador dessa área do conhecimento.

Como obstáculos a uma correta formação humanística, notam-se na sociedade moderna o estado de derrelição paterna, de deformação ética, de nenhuma polidez social, de total desafeição pelo idioma e pela história, em que se encontra enorme parte da juventude brasileira.

Por outro lado, entre as causas próximas, ou internas, nota-se que a legislação brasileira sobre o ensino superior caracteriza-se pela abstração e generalidade exageradas. A partir da regra mais alta, vinda da Constituição da República, ao assegurar, programaticamente, a autonomia universitária, as normas infra-constitucionais mantêm-se também abstratas e genéricas, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996) e o Decreto n.º 2.306, de 19 de agosto de 1997, abrindo ensejo à expedição de portarias e resoluções, para cuja elaboração e para cuja execução os órgãos estatais se socorrem da contribuição de entidades das mais variadas procedências e com os mais variados fins, bem como de professores universitários especializados no ensino do direito. Atuam inúmeras instituições, de forma a gerar notável descompasso entre as respectivas competências; proliferam textos normativos e de instruções procedimentais, baixados pelos vários segmentos da administração universitária, nem todos primando pela objetividade, pela clareza e pela coerência, o que acarreta a proximidade ou a presença constante de organismos estranhos com interesses próprios e a sua nem sempre oportuna ingerência e participação. Característico dessas normas é o alheiamento da realidade do ensino do direito no País. Nesse contexto, os responsáveis pela formação profissional do graduado em direito acham-se impotentes, em razão de situar-se grande parte do mal nos fatos apontados como causas remotas, mas também em razão da diversidade das atribuições divididas entre eles, seja por atos normativos, seja de fato. Aí situamos a causa próxima da situação a que chegou hoje o ensino do direito no Brasil.

Não nos surpreende, portanto, a edição de mais um desses atos, agora carregado com tintas sombrias. É o processo de degradação do ensino jurídico em andamento. A esse ponto chegou em razão da distância entre as normas e a realidade, e à condescendência da autoridade e dos órgãos que a assessoraram.

Mais uma escaramuça perdida.

Os últimos panos ainda resistem.

Urge uma tomada de posição, mesmo que derradeira.

Por isso, aplaudimos a oportuna iniciativa do Colégio Brasileiro de Faculdades de Direito, promovendo estas reflexões, que por certo se encaminharão para a não aprovação do Parecer (era o que se esperava!) e a uma urgente revisão do processo de administração do ensino jurídico.

Algumas proposições do Parecer CES/CNE 0146/2002.

Algumas das proposições do citado Parecer – talvez as que mais têm despertado a desolação de quantos esperavam ter, em futuro não muito distante, bacharéis brasileiros cultos, honestos, capazes e com elevado espírito de serviço na administração da justiça –, têm sua origem no quadro que se acaba de descrever.

Vejamo-las, começando pelo cipoal de regras emanadas das mais diversas entidades:

Diretrizes curriculares

A Lei n.º 9.131, de 24.11.95, pelo seu art. 9.º, alínea c, atribuiu competência à Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação para “a elaboração do projeto de Diretrizes Curriculares Nacionais – DCN, que orientarão os cursos de graduação, a partir das propostas a serem enviadas pela Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação ao CNE”, o que foi ratificado pelo art. 9.º, inciso VII, da Lei de Diretrizes e Bases (n.º 9.394, de 20.12.96). Essas normas ratificaram também o procedimento então praticado, de refletir as “sugestões enviadas pelos membros da comunidade acadêmica jurídica”, sendo esse órgão intermediário a já atuante Comissão de Especialistas no Ensino do Direito (CEED), a qual, por sua vez, laborava em estreita “parceria” com a Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB.

Por sua vez, as diretrizes curriculares consignadas na ainda vigente Portaria n.º 1.886/94 visam “integrar-se ao processo de construção de qualidade dos cursos de Direito”, bem como “servir de referência para as Instituições de Ensino Superior na organização de seus programas de formação, permitindo flexibilidade na construção dos currículos plenos”, segundo consignado no Documento emitido pela Comissão de Especialistas de Ensino de Direito – CEED – e pela Comissão de Consultores ad hoc, em 13 e 14 de julho de 2000, com referência expressa ao Edital SEsu/MEC n.º 4/97.

O Parecer n.º CES/CNE 0146/2002, ao invocar, no seu relatório, os diplomas antecedentes e relativos às diretrizes curriculares, quais o Parecer 776/97, o Parecer 583/2001, o citado Edital 4/97 do MEC/SEsu, e o Plano Nacional de Educação constante da Lei n.º 10.172, de janeiro de 2001, e depois de afirmar que “... não se cogita mais do profissional ‘preparado’, mas do profissional apto às mudanças e, portanto, adaptável”, resume a intenção das autoridades ao aprovarem as tais diretrizes nestes termos: “... é garantir a flexibilidade, a criatividade e a responsabilidade das instituições ao elaborarem suas propostas curriculares.”

Quanto a inibir a iniciativa das instituições de ensino superior, é preciso dizer que a medida, ao contrário, propiciará a criação de cursos-novidades para atrair clientela, mantendo e consolidando, sob a aparência de especializações, o aprendizado superficial, que desconhece os fundamentos da ciência jurídica. A concorrência conseqüente à facilidade da abertura impelirá os empresários do ensino a oferecerem cursos sem nenhuma necessidade social, acolhendo, sem nenhum critério de seleção, a milhares de alunos que pagarão preços altíssimos, acotovelando-se em repletas salas de aula para ouvir mestres despreparados. Mais ainda. Não atingimos o estágio dessas especializações: a cultura propedêutica, básica, do candidato ao curso jurídico é paupérrima; o curso médio não adestra para a universidade, nem oferece condições de o candidato certificar-se da sua vocação antes do vestibular. Mais: os projetos ambiciosos chegarão ao ponto de admitir 600 ou 700 alunos para um curso com uma só especialidade, sem que o estudante tenha sido, com antecedência, suficientemente esclarecido e sem que tenha tido meios de decidir sobre a sua especialização.

Quanto à responsabilidade das instituições de ensino, como confiar na fiscalização que, esparsa, burocrática e descontínua, encontra freqüentemente situações adrede preparadas para recebê-la?

Na sua fundamentação, entre outros argumentos, o Parecer refere que, enquanto o currículo mínimo encerrava a concepção do exercício profissional cujo desempenho resultaria especialmente das disciplinas ou matérias profissionalizantes, com os mínimos obrigatórios fixados, “as diretrizes curriculares nacionais concebem a formação de nível superior como um processo contínuo, autônomo e permanente, com uma sólida formação básica e uma formação profissional fundamentada na competência teórico-prática, de acordo com o perfil de um formando adaptável às novas e emergentes demandas.”

Pensemos com olhos na realidade, sem divagações fantasiosas. “Sólida formação básica”, humanística, não a trazem, na sua quase totalidade, os jovens ao ingressar no curso de direito; porque os cursos anteriores não a oferecem e porque os exames vestibulares não propiciam tal apuração. Pretender que ela se produza num curso de três anos, sob o impacto do intenso e diversificado tráfico jurídico dos tempos atuais, que impele à convocação de docentes “especialistas”, por isso necessariamente distantes dos fundamentos históricos, filosóficos e éticos da ciência jurídica no seu todo, ultrapassa as raias do possível. Daí que a argumentação do cogitado Parecer a ninguém pode convencer.

Por outro lado, “formação profissional fundamentada na competência teórico-prática” é fórmula evidentemente demagógica, afirma demonstrado o que não consegue demonstrar, esbarrando, por isso, numa indagação preliminar e provocando sentimento de decepção: terá o CNE empregado a palavra “competência” no sentido de “capacidade”? “Capacidade teórico-prática” sem ter provido sobre critérios de recrutamento dos candidatos ao curso; sem ter exigido o conhecimento mínimo dos fundamentos da ciência jurídica, e depois de ter possibilitado a redução dos estudos a três anos?

Se não se evitar se consume tão grosseiro disparate, não haverá para o exercício da advocacia, e assim mesmo como meio de apenas prevenir os danos que se prenunciam, outra alternativa senão um estágio depois do curso, ou um curso complementar.

O art. 10 do Projeto de Resolução, distanciando-se do “currículo mínimo” constante do art. 6.º da Portaria n.º 1.886/94, não menciona matérias, mas relaciona “eixos interligados de formação” assim divididos: a) conteúdos de formação fundamental; b) conteúdos de formação profissional; e c) conteúdos de formação prática. Entenda-se isso à luz do “novo” perfil do formando, também estampado no Parecer, e ver-se-á que se o currículo mínimo não alcançou o seu desiderato, porque diluído na multiplicidade de novos “ramos” jurídicos e na multiplicidade dos métodos de aferição do aproveitamento do alunado (assistência às aulas, atividades complementares, núcleo de prática jurídica, monografia de conclusão, etc.), não será com essa receita de panacéia que teremos o bacharel ideal.

Da mesma forma, quando se refere à organização curricular, o Parecer acentua que se deve “preservar sempre o princípio do padrão de qualidade”. A afirmação é vaga e gratuita. Sem docentes capazes, porque pessimamente remunerados, e com centenas de alunos admitidos sem nenhum critério, amontoados em salas de aula, é fácil deduzir a inexistência de qualquer padrão de qualidade.

O parecer refere-se ainda a “interesses corporativos”, “responsáveis por obstáculos no ingresso no mercado de trabalho e por desnecessária ampliação ou prorrogação na duração do curso” (item 4 do relatório). Ora, acabamos de ver como tal será necessário, porque a formação, evidentemente, será insuficiente para o exercício profissional.

Tem-se a impressão de que os redatores do citado Parecer 0146/2002 não reconhecem a situação de descalabro em que se encontra o ensino jurídico, sustentando que se deva contemporizar com simples adaptações.

Ainda no relatório, o Parecer em exame faz distinção entre o currículo mínimo vigente (art. 6.º da Portaria 1.886/94) e as diretrizes curriculares de agora: aquele servia “à emissão de um diploma para o exercício profissional”; estas não se vinculam a diploma, porque o diploma, nos termos da Lei de Diretrizes e Bases (art. 48) se destina apenas a provar a formação recebida por seu titular.

Então, como resolver, se o trabalho do advogado demanda conhecimento científico não superficial e habilidade técnica? Repete-se: somente com uma formação específica, consistente num estágio além do curso, ou num curso complementar.

Projeto pedagógico

Os oportunistas apresentarão, como temos visto na Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB, projetos os mais esdrúxulos, estranhos ao meio em que atuam, inspirados em “tiradas” de marketing. O Parecer não leva em conta o desmazelo a que tem sido relegado esse ensino, em razão, entre outras causas, da deficiente fiscalização e da negligente tolerância com as irregularidades. A gritante realidade é do nenhum acompanhamento por parte das autoridades. Apesar da sistemática reprovação pela OAB.

Estágio

Se a prática do estágio como previsto no art. 10 da Portaria 1.886/94 tem sido, pelo menos em São Paulo, uma forma de alienar, quando não de perturbar, o aluno relativamente ao aprendizado científico, o que será do estágio previsto no Parecer, que pretende esteja o estagiário “consciente do seu atual perfil, naquela fase...”?

Em sã consciência, não atinamos com essa possibilidade, ainda que se pretenda que “ele próprio reconheça a necessidade de retificação da aprendizagem, nos conteúdos em que revelara equívocos ou insegurança de domínio, e da própria reprogramação da prática, assegurando-se-lhe, nessa reorientação e reprogramação teórico-prática, o direito subjetivo (sic) constitucional (sic) ao padrão de qualidade, que se revelará no exercício profissional, já no âmbito das instituições sociais.” Completamente apartadas da realidade brasileira essas suposições!

O Projeto de Resolução derivado desse Parecer prevê, no art. 2.º, inciso X, que o Núcleo de Prática Jurídica será responsável também por atividades “extensionistas”. Provavelmente, a pretensão será a de estender o Estágio a trabalhos de assistência judiciária... A Constituição da República garante “assistência jurídica” gratuita (a pretensão é confessadamente exagerada). Não temos nem assistência judiciária porque não temos defensoria pública. Teremos então estudantes que trabalham, mas não estudam...

Atividades complementares

Diga-se o mesmo que se disse sobre o estágio: se têm sido tais atividades deturpadas, como ficarão doravante? Embora previstas na Lei de Diretrizes e Bases, art. 44, inciso IV, não têm sido aplicadas convenientemente. Tornaram-se “caça-níqueis”, não guardam nenhuma dependência nem relação com o projeto pedagógico da instituição e não se subordinam à efetiva coordenação dos departamentos pertinentes.

Monografia

Se o estágio foi simplesmente frustrante e as atividades complementares desviaram-se do seu rumo inicial, a monografia de conclusão do curso, pelo que se pôde perceber no Estado de São Paulo, vem surtindo bons resultados. A sua supressão parece não ter explicação aceitável...

O item 3.2.1. do Parecer cuida do curso de direito e dedica um sub-item à descrição do perfil desejado do formando, nele enumerando as habilidades “mínimas” do profissional do direito. Quando se lêem essas “capacitações”, inevitavelmente se pergunta como o estudante, que percorreu um curso com todos os característicos anteriormente criticados, pode alcançá-las. Como pode o bacharel adquirir essas capacitações, se o seu curso esteve submetido “à criatividade e à competência inovadora das instituições de ensino superior”, como se garante no item 9.3. do Parecer? Deve lembrar-se que, em regra, o candidato ao curso de direito não tem nenhuma ou tem uma precaríssima formação humanística anterior!

O art. 8.º do Projeto de Resolução diz que o curso de direito deverá assegurar “no perfil do graduando...”. Dando-se à afirmação interpretação condizente com o resto do Projeto, não será absurdo concluir que se o aluno, aprovado com a maior nota em todo o curso realizado nos moldes do Parecer, não obtiver todos os resultados referidos no citado dispositivo, poderá até se socorrer do... Código de Defesa do Consumidor!

Duração do curso e carga horária

O art. 11 do Projeto remete-se aos Pareceres CES/CNE 583/2001, de 4/4/01, e 100/2002, de 13/3/02.

A não fixação da duração do curso confirma, de modo eloqüente, as nossas considerações iniciais: segundo a maneira de ver das entidades responsáveis pelo ensino jurídico, há que evoluir do ponto em que estamos, isto é, ir amoldando o profissional do direito às contingências precárias da sua formação, sem nenhuma preocupação de alterar substancialmente o estado atual.

Considerações finais e conclusão

É de atentar-se, finalmente, para o seguinte: as universidades públicas rareiam; as particulares proliferam. Não há, nem na Constituição, nem na lei, restrição à iniciativa privada nesse campo.

Criadas e autorizadas apressadamente, as universidades particulares exercitam os direitos inerentes à sua autonomia, e vão-se “expandindo territorialmente”, com a criação de cursos fora de sede, quantos queiram.

Mais do que isso, tais universidades poderiam aumentar em metade o número dos seus alunos do curso de direito, constante do ato de autorização ou do de reconhecimento, preenchidos certos requisitos, por autorização da Portaria Ministerial n.º 2.402, de 9 de novembro de 2001, se não tivesse prontamente reagido a Ordem dos Advogados do Brasil e obstado – utilizando ação judicial de força, pela qual fazia respeitar o seu direito-dever de manifestar-se previamente sobre providências dessa natureza – que, além de mal nascidos e mal desenvolvidos, recebessem tais cursos mais alunos (nada menos do que a metade a mais), recolhidos sem nenhum critério, como é de sobejo sabido.

Faz-se necessária uma revisão no complexo legislativo que rege o ensino do direito no Brasil, bem como uma radical mudança no sistema que o administra, para expurgá-lo de intromissões indevidas.

Enquanto isso não se alcança, há de se preservar o que até aqui se conseguiu, mas com o propósito firme de emendar as suas deficiências, no sentido de resgatar os apanágios de cultura e de relevância social, que sempre adornaram o profissional do direito.

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