Artigo: Tudo pela parentalha
Brasília, 05/02/2006 – O artigo “Tudo pela parentalha” é de autoria do jornalista André Petry e foi publicado na edição número 1942 da revista Veja:
“Você confiaria num juiz que desse emprego em seu tribunal à mãe, à sogra, ao filho, ao primo, à tia e ao sobrinho? Você confiaria no senso de justiça desse juiz, no seu discernimento sobre ética, impessoalidade e moralidade administrativa? Você confiaria nesse juiz se, além de tudo isso, ele ainda se insurgisse raivosamente contra uma ordem de demitir toda a parentalha?
Pois bem. A Justiça brasileira tem alguns expressivos exemplares dessa estirpe. Eles começaram a aparecer depois que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), um órgão de controle e fiscalização, baixou uma resolução dizendo que até o dia 14 de fevereiro deste ano todos os tribunais, de norte a sul do Brasil, terão de demitir os parentes até terceiro grau que ocupem cargos comissionados, ou seja, aqueles postos para os quais não é preciso fazer concurso público.
A medida contra o nepotismo agitou uma parcela dos nossos ilustres magistrados. No Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em Mato Grosso do Sul há várias liminares suspendendo o efeito da resolução. No Tribunal de Justiça da Bahia, o presidente já disse que não vai demitir a parentalha. Em vez disso, anunciou que vai examinar "caso a caso". Pudera. Dos trinta desembargadores da Bahia, 23 empregam parentes no tribunal – sendo um deles o próprio presidente, Benito Figueiredo, que aninhou ali a filhota.
Agora mesmo, um grupo de trinta desembargadores do Tribunal de Justiça do Paraná, operando em conjunto com um séquito de 52 parentes empregados na corte, conseguiu uma liminar suspendendo a ordem de demitir a parentela. Quem deu a liminar? O próprio Tribunal de Justiça do Paraná... Os 82 reclamantes, os magistrados e suas respectivas linhagens, estão felizes da vida.
O mais divertido é ler os pedidos de liminares. Nessas peças jurídicas, os magistrados e a parentalha fazem um esforço danado para inventar problemas. Falam que o assunto não pode ser tratado por meio de uma resolução do CNJ. Que a resolução afronta o princípio de separação dos poderes. Que invade a competência dos estados. Que subordina os tribunais estaduais a um órgão não estadual. Que restringe direitos de servidores públicos arbitrariamente. Falam até que a resolução do CNJ inventou de legislar sobre direito civil criando a sua própria definição do que é parente... Falam um monte de coisas, mas tudo não passa de legalismo retórico com um único fim: manter a parentalha mamando nas tetas do Estado.
É uma vergonha para o Judiciário brasileiro que uma resolução tão cristalinamente constitucional provoque tamanha rebelião dos nossos ilustres magistrados. É uma vergonha que a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), que reúne cerca de 14.000 associados, entre federais, estaduais, trabalhistas e militares, seja constrangida a fazer o que fez na semana passada: pediu ao Supremo Tribunal Federal que declarasse a constitucionalidade da resolução contra os nepotistas. (Só falta o STF dizer o contrário...!)
Se tantos parentes de magistrados acham tão interessante trabalhar nos tribunais, é simples: façam concurso público, como qualquer brasileiro comum. O que não se pode é manter essa craca impregnada no Erário, perpetuando uma das piores heranças da história: as elites e oligarquias que vivem à custa do dinheiro público”.