Bonavides: Executivo reforça autoritarismo e retarda democracia
Brasília, 13/01/2006 - Só o aprofundamento dos mecanismos de participação popular na vida política brasileira poderá funcionar de contrapeso ao crescente e sufocante papel exercido pelo Poder Executivo no País, fato que contribuiu inclusive para a crise política em que a nação se encontra mergulhada. A opinião é de um dos maiores constitucionalistas da América Latina, o brasileiro Paulo Bonavides, medalha Rui Barbosa do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). "O Executivo é o braço mais forte do autoritarismo que predomina ainda no País, retardando o amadurecimento democrático da sociedade brasileira", afirma o jurista, em entrevista a este site, na qual faz um balanço da situação político-institucional do Brasil.
Para o constitucionalista Paulo Bonavides, o ideal seria fazer valer o que está escrito no artigo 1° da Constituição - todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido - e também o previsto no artigo 14, que trata do referendo, plebiscito e iniciativa popular. Ele entende que deveria haver mecanismos que possibilitassem o povo intervir com mais freqüência, por meio do plebiscito, nos atos mais importantes do Executivo, e através do referendo, os atos do Legislativo de relevância capital para a população. "A presença legítima, direta, imediata, concreta do povo seria a chave da solução da ingovernabilidade, da crise constituinte", sustentou Bonavides.
Na entrevista, o jurista defende também a transformação do Supremo Tribunal Federal (STF) em Corte Constitucional, nos moldes existentes em alguns países da Europa e ataca duramente o instituto da reeleição para presidente da República. "O instituto da reeleição, a meu ver, tem sido um verdadeiro desastre", observou ele, que lembrou também a proposta apresentada na XIX Conferência Nacional dos Advogados, em setembro último, e que fez parte da Carta de Florianópolis, de tornar 2006 o ano de defesa da Amazônia. Bonavides alerta para a necessidade de uma mobilização em defesa da região, "diante dos grandes interesses estrangeiros, que ferem a soberania nacional e estão-se arregimentando", segundo ele, na tentativa de dominar a região.
A seguir, a íntegra da entrevista com o professor e jurista Paulo Bonavides:
P - Professor Paulo Bonavides, estamos terminando o ano de 2005 e qual é sua avaliação do país nessa quadra, em meio a uma das crises políticas mais graves da história do País?
R - O País vive, a meu ver, um dos piores momentos de sua crise institucional, que perdura desde 1988, a despeito da promulgação da Constituição. A Constituição foi a grande esperança de estabilidade política e institucional. A Constituição, do meu ponto de vista, é excelente, mas ela tem sido atraiçoada pelas classes representativas e pelos dois Poderes que respondem maiormente pela governança do país, o Executivo e o Legislativo. O Executivo é o braço mais forte do autoritarismo que predomina ainda no Brasil, retardando o amadurecimento democrático da sociedade brasileira, da Nação. E o Executivo colocou debaixo da tutela o Legislativo, por via das medidas provisórias (MPs). E, também, o Poder Judiciário tem padecido pressões da parte do Executivo. De sorte que o quadro da relação entre os três Poderes é ainda melancólico. Em razão disso, nós vemos o clássico princípio da separação e colaboração dos Poderes afetado nos seus fundamentos pela hegemonia, hipertrofia e excessos do Poder Executivo, que é um Poder difícil de ser colocado debaixo de controle, de freios. Desgraçadamente, esta é a situação que se tem apresentado.
P - A questão passa então pela correção dessa hipertrofia do Executivo sobre os outros poderes?
R - Um dos grandes erros que nós, a esta altura, podemos vislumbrar, na evolução política do país, foi o instituto da reeleição. Este, a meu ver, tem sido um verdadeiro desastre. É anti-republicano, anti-federativo, anti-nacional, em todos os sentidos, porque consentiu que o Executivo alargasse os seus poderes abrindo margem a uma intensificação do caudilhismo, que se tornou agudo. Cada Presidente da República que se elege, neste país, vem com um projeto de poder, de perpetuidade, de permanência indefinida, e denotando uma vocação e um sentimento que fere a Constituição, fere o espírito republicano e fere a lealdade às instituições, concorre para o desvirtuamento da forma democrática de governo. Infelizmente, esse quadro se agravou muito no Brasil em razão portanto da reeleição presidencial. O presidente, no primeiro mandato, se ocupa unicamente de preparar os pressupostos da sua reeleição. Quando ocorre a eleição, vem o declínio da eficácia executiva, pelo volume de compromissos que ele é obrigado a atender, em virtude dos acordos, dos ajustes que fez com as suas bases de apoio. Quer dizer, criou-se para ele uma dependência cada vez maior das exigências clientelistas e caudilhescas, da parte das facções políticas que o sustentaram e que fizeram vingar o projeto da reeleição. A reeleição é nefasta neste país, a meu ver. Nós temos que cogitar em volver ao sistema de um quatriênio presidencial, que permite que essas formulações de projeto de perpetuidade, ou seja, de continuidade de poder não venham mais a ocorrer. Vimos essa ocorrência, gravíssima, no governo Fernando Henrique, vimos no presente governo. E isso prejudica enormemente a permanência e o aperfeiçoamento democrático do sistema.
P - Diante desse quadro crítico que o senhor traçou agora, acha que o Brasil corre risco, a perdurar essa crise, de um rompimento democrático?
R - Não acredito, porque o país já formou uma consciência de defesa das instituições, de aversão às ditaduras, ao arbítrio. Apesar da democracia estar um tanto enfraquecida, fato que nós não podemos negar, o fundo da consciência coletiva, a consciência cívica do país, pelos próprios sofrimentos que nós já atravessamos, já passamos e já vivemos, protege a sociedade brasileira que reagirá a qualquer tentativa de ruptura institucional. O que nós temos - e eu tenho sempre sustentado isso - é dentro da Constituição transitar da hegemonia representativa do Congresso para a hegemonia governante do povo, pelo exercício direto de seu poder, por via dos mecanismos que estão debaixo da proteção do parágrafo único do artigo 1º da Constituição da República Federativa do Brasil, ou seja, aquele artigo que reparte a soberania com os representantes e com o povo. Não quer dizer que essa hegemonia do elemento popular signifique o afastamento da presença participativa dos partidos ou das Casas Representativas. De modo algum. Apenas fortaleceria a legitimidade do sistema, porque a fonte de legitimidade estaria toda calcada, toda fundada na expressão dieta da vontade popular. Isso daria muita consistência, muita solidez, muita força ao princípio democrático, na sua fase de execução. Nós resolveríamos, assim, os problemas de governabilidade que ameaçam conduzir o País à ingovernabilidade. E a ingovernabilidade, infelizmente, tem sido o pretexto do próprio Poder Executivo para fazer proliferar medidas provisórias e outros atos de caráter absolutista, de poder concentrado nas mãos do presidente, afetando a saúde política das instituições.
P - Por falar nas instituições, o senhor é considerado o maior constitucionalista do país. Está satisfeito com as últimas decisões e com o trabalho do Supremo Tribunal Federal?
R - Primeiro, eu tenho que refutar a sua pergunta. Não me considero, absolutamente, o maior constitucionalista deste país. Este país tem grandes constitucionalistas, muitos nomes que honram as letras constitucionais, que ilustram o saber jurídico desta Nação que, aliás, tem, nesse tocante uma grande tradição. Sou de uma região, o Nordeste do Brasil, que produziu grandes juristas. Alguns de projeção internacional e nordestinos, como Tobias Barreto, Pontes de Miranda, Rui Barbosa, Clovis Bevilacqua, Teixeira de Freitas. Quanto ao Supremo Tribunal Federal, eu tenho feito críticas ao Supremo, mas respeito o seu papel constitucional, de guarda das instituições. É claro que o Supremo está no centro de uma polêmica de Poder, em razão dos seus acórdãos e de suas decisões mais recentes, onde o aspecto político se há manifestado. Eu sempre defendi a criação de uma Corte Constitucional contribuiria para resolver esse aspecto do problema no que se refere à legitimidade na guarda da Constituição.
P - Como funcionaria essa Corte, nos moldes dos Estados Unidos?
R - Mais no estilo europeu que americano. A Corte Constitucional, se houvesse uma reforma mais profunda do sistema seria, obviamente, a solução para aquilo que considerável parte da sociedade entende que não está sendo cumprido pelo Supremo, em razão de não ser ele, no seu todo, um tribunal constitucional. As suas competências não se circunscrevem unicamente à defesa da Constituição. De sorte que enquanto nós não fizermos uma reforma que não seja unilateral, quer dizer, que não incida sobre apenas um dos poderes, o problema da crise constituinte no Brasil não se resolverá. Faz-se mister que haja simultaneidade de ação reformista, de revisão nos três poderes. O mais necessitado de uma reforma, a meu ver, é o próprio Poder Executivo, a par do Poder Legislativo. Como nós teríamos um ponto de convergência para chegar à solução da crise dos três Poderes? A meu ver - e tenho sempre repetido isto em declarações sobre como fazer a travessia da crise que vivemos -, cumpre criar e aprofundar o emprego dos mecanismos de participação popular, daqueles que estão no artigo 14 da Constituição.
P - A OAB tem defendido uma mudança para dar efetividade maior ao artigo 14, com maior participação popular na convocação de plebiscitos, referendos e projetos de iniciativa popular.
R - De fato. A Lei Almino Afonso foi uma Lei superficial, foi uma Lei mínima de participação popular. Foi apenas uma satisfação que a classe representativa deu ao Constituinte de 88, quando estabeleceu exatamente a bipartição teórica da soberania entre o poder representativo e o poder popular. Este teria uma presença direta nos termos que a Constituição fixasse. E nós não vamos violentar, não vai haver violação dos limites constitucionais se, por exemplo, por meio de uma emenda constitucional, passarmos a referendar todos os atos do Executivo por via plebiscitária, e, por via do referendo, os atos legislativos ordinários que tivessem importância capital do ponto de vista político, para a estabilidade das instituições do país. Portanto, a presença legitima, direta, imediata, concreta do povo seria a chave da solução da ingovernabilidade, da crise constituinte. Tudo isso que é tormentoso na esfera política terminaria por esvair-se.
P - O senhor tem dito que a maior participação do povo, já prevista na Constituição, resolveria as questões institucionais. Outros acham que seria necessário uma nova Constituinte.
R - Nós não precisaríamos adotar o parlamentarismo, que seria inconstitucional, nem convocar mini-constituintes ou constituintes mais largas, também inconstitucionais, quando nós temos a fórmula de sair da crise dentro da própria Constituição. A meu ver, a Ordem dos Advogados do Brasil precisa intensificar uma cruzada política no sentido de aprofundar e de ampliar essa participação. Vejo que a chave para isso seria uma emenda à Constituição que determinasse que os atos maiores, de significação mais relevante para o regime, fossem submetidos ao plebiscito, no caso dos atos executivos importantes, ou ao referendo, se se tratasse de leis importantíssimas votadas pelo Congresso Nacional. E que se acabasse com o monopólio que tem o Congresso Nacional de só ele autorizar referendo ou convocar plebiscito. Isso deveria passar, também, para a iniciativa popular qualificada.
P - Nesse novo desenho o senhor considera que o Supremo Tribunal Federal deveria então ser extinto e, em seu lugar, criada uma Corte Constitucional exclusiva?
R - Sim, uma Corte Constitucional exclusiva. O problema não é de extinção, m,as de transformação. Eu acho que assim sem nenhum trauma se resolveria o problema do Supremo. A partir daí, também, procuraríamos um caminho para compor essa nova Corte da forma mais democrática possível. Avalio que a magistratura brasileira daria legitimidade profunda a esse Tribunal Constitucional, pois nela os ministros do Supremo passariam a ser eleitos pelos juízes de todo o país, de uma forma democrática. Seria a interiorização da democracia no Poder Judiciário até chegar ali a uma forma de democracia direta, eu diria assim. Dando extrema legitimidade a esses ministros da Corte Constitucional eleitos diretamente pelos magistrados, a partir das instâncias mais baixas.
P - O senhor concorda então com uma opinião entre juristas de que o Supremo não foi feito para julgar hábeas corpus, por exemplo?
R - O Supremo foi feito para garantir a Constituição, é esta a minha opinião. A missão precípua do Supremo é a de garantir a Constituição.
P - Recentemente, durante a XIX Conferência Nacional dos Advogados, em Florianópolis, o senhor Sugeriu que 2006 seja o ano de defesa da Amazônia. Poderia falar mais sobre essa proposta?
R - A Amazônia é a grande reserva da riqueza nacional, um patrimônio do Brasil, nós temos que mantê-la assim. E essa entrevista está sendo realizada próxima a uma data que é muito significativa para a região, a data 7 de dezembro de 2005. Há exatamente 139 anos, em 7 de dezembro de 1866, expediu-se o Decreto nº 3749, que abriu, ainda ao tempo do Império, os rios Amazonas, Tocantins, Tapajós, Madeira, Negro e São Francisco à navegação dos navios mercantes de todas as nações.
P - O que significou essa abertura dos rios à navegação comercial?
R - Foi uma abertura das águas amazônicas às nações amigas, e assim se evitou uma gravíssima crise, que estava já em andamento, depois da crise que sacrificou e martirizou a nação mexicana, amputando-lhe dois terços do território, que passaram às mãos do governo americano, após uma guerra catastrófica para o México, guerra imperialista, guerra que trucidou e pôs abaixo a unidade territorial da nação recém-emancipada. E, veja, José Teixeira de Oliveira, que publicou o Dicionário Brasileiro de Datas Históricas, prefaciado por Taunay, já escrevia que, naquela época - e eu vou transcrever, entre aspas, o que ele dizia: "Terminava, assim, longa questão que vinha do início da década anterior. Quando a idéia fantástica e as ambições de um norte-americano levantaram a idéia da abertura do rio Amazonas ao comércio e à colonização: a altivez e a habilidade da diplomacia imperial enfrentaram o problema, conduzindo, do melhor modo, através de acordos com as nações vizinhas interessadas no rio, adiando sua abertura até outra época, livre de pressões e possíveis perigos. E é o que se verifica no fim de 1866, quando a questão é resolvida soberanamente. Essa questão se renovou na segunda metade do século XX, com o Projeto da Hyléia Amazônica. Novamente, a ambição externa, da mesma potência que invadiu o México e se apoderou das suas riquezas, de parte considerável de seu território, voltou a manifestar-se. Tal ocorreu na segunda metade do século passado, com um projeto que foi combatido e que foi posto abaixo graças ao autor da Carta aos Brasileiros, o professor Goffredo Teles Júnior. Foi ele o grande patriota que denunciou os perigos da quebra da unidade nacional, naquela época. Parece-me que, agora, nós estamos num terceiro momento, numa terceira ameaça, que se configura por uma conspiração internacional, onde há grandes interesses estrangeiros, que ferem a soberania nacional, se arregimentando. Há suspeitas, enfim, de que está se produzindo um clima internacional de tentativa de arrebatar a região onde está o futuro do Brasil. Ali, na Amazônia, nós temos o potencial de riquezas para sermos, amanhã, um país do chamado Primeiro Mundo, em toda a sua extensão. Mas isto só acontecerá se soubermos, primeiro, na ordem externa, defender a soberania e, na ordem interna, democratizar esta Nação.