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Artigo: Um observatório de controle social para a aplicação do Novo CPC

sexta-feira, 30 de setembro de 2016 às 16h52

Brasília – Confira o artigo do diretor tesoureiro da OAB, Antonio Oneildo Ferreira, publicado pelo portal Migalhas, sobre a criação do Observatório do Novo CPC. 

Um observatório de controle social para a aplicação do Novo CPC

Por Antonio Oneildo Ferreira, advogado e diretor tesoureiro do Conselho Federal da OAB

Introdução

Observatório (do francês “observatoire”) é um lugar de onde se observa. Observar, por sua vez, é olhar atentamente para algo; examinar, mediante detida reflexão, algo em seus pormenores; é assumir um olhar potente. Nessa acepção, um Observatório é o espaço dedicado “à observação, acompanhamento ou divulgação de determinados fenômenos ou informação”.  É uma instituição que visa a acompanhar a evolução, no tempo e no espaço, de um fenômeno ou tema estratégico. Para justificar sua instalação, deve existir uma problemática que possa ser decomposta na forma de objetivos, enfrentada por intermédio de uma metodologia, e criticamente apreciada e interpretada com o auxílio de dados, indicadores e resultados. 

A problemática sobre a qual o Observatório de controle social do Novo Código de Processo Civil (NCPC, Lei nº 13.105, de 2015) se debruça é a da obstrução efetuada por uma parte dos agentes judiciários, sobretudo juízes, contra a aplicação da nova legislação processual civil brasileira. Mas reconhecemos, com justiça, que há uma outra parte, felizmente significativa, que se tem engajado no cumprimento do Código. O Judiciário tem-se mostrado, historicamente, opaco e resistente às mudanças políticas e sociais, e mesmo renitente ao cumprimento de algumas leis. Isso fica evidente ao constatarmos o advento tardio de um órgão de controle judiciário, e, mesmo depois desse advento, a dificuldade de controle que esse órgão ostenta. Sustento a hipótese de que tal infortúnio ocorre devido a uma naturalizada prática de resistência diante das mudanças por parte dos juízes. Através dessas práticas, se expressa um conceito que o Judiciário tem de si mesmo: de um órgão insuscetível de responder às demandas populares, ao controle social e à própria lei; de um poder acima das leis e da crítica, que se situa além dos mecanismos republicanos de vigilância.

O NCPC é norma jurídica, portanto dotado da natureza deontológica que exige seu cumprimento incondicionado. Sem embargo, a entrada em vigência do NCPC tem dado oportunidade a uma inesperada turbulência no meio jurídico: centenas de juízes e alguns tribunais têm-se recusado, deliberadamente ou não, a dar cumprimento a suas normas, ou o têm aplicado seletivamente. Tradicionalmente conservadora, grande parte da Magistratura tende a criar um mal-estar acerca de leis que são feitas para que ela mesma cumpra. E, saliente-se, um Código de Processo Civil não se trata de uma lei qualquer, antes de uma matriz de todas as demais normas processuais, de um ponto de referência, supletiva e subsidiariamente aplicada às legislações adjetivas eleitoral, administrativa e trabalhista (art. 15 do NCPC). Um novo Código reestrutura procedimentos, princípios e modos de compreensão, muda paradigmas e instaura uma nova cultura jurídico-processual. 

Não parece natural que, em um Estado democrático de direito trespassado pelo império da lei, os cidadãos devam entrincheirar-se para que uma lei simplesmente seja observada pelos próprios agentes públicos, os quais juraram estar a serviço do direito. Tampouco é compreensível o mal-estar gerado pela novel legislação: ela não remete a regulamentação, nem se traduz em um texto repleto de incoerências, imprecisões ou omissões. Por que, então, cada tribunal tem-se empenhado em regulamentar, mediante portarias, enunciados, resoluções etc., uma norma jurídica que em si mesma é autoaplicável? A impressão da advocacia brasileira tem sido de perplexidade: o que explica essa multiplicidade de olhares sobre algo que a nós, advocacia, parece único? Não bastasse o constrangimento moral pelo qual o Judiciário tem passado nessa seara, as recusas à aplicação do NCPC redundam, quase sempre, em violações das prerrogativas dos profissionais da advocacia e em atentados contra os direitos dos cidadãos jurisdicionados. 

Atenta a esse quadro alarmante, a Ordem dos Advogados do Brasil julgou pertinente instalar, com respaldo nas preocupações de toda a advocacia e da sociedade civil organizada, um Observatório de controle social da aplicação do NCPC em âmbito nacional. Ao participar de um Observatório de controle social – genuína expressão da soberania popular diretamente emergente do seio da sociedade civil organizada –, a advocacia endossa seu protagonismo social na defesa dos direitos da cidadania. O Observatório consiste em um núcleo de defesa contra as arbitrariedades judiciais e, ao mesmo tempo, em uma frente de combate a resoluções que pretendam debilitar o novo sistema jurídico-processual e, assim, enfraquecer o Estado democrático de direito. Em virtude do princípio da legalidade, o cidadão possui direito subjetivo ao respeito da lei por parte do Estado – direito que inclui a expectativa de adequada aplicação da lei por parte do Judiciário. 

Neste artigo, compilarei alguns casos incongruentes de transgressão ao NCPC que justificam a preocupação da advocacia e da sociedade no que concerne aos rumos que tem tomado a recepção da recém-publicada lei processual (parte 1). Em seguida, retomarei os argumentos sobre a indispensabilidade da existência de um Observatório de controle social em âmbito nacional, voltado à advocacia e à sociedade civil organizada, destinado ao monitoramento, ao acompanhamento crítico e à fiscalização do trabalho de aplicação do novo CPC pela Magistratura Nacional, e sensível a denúncias de graves violações a direitos das partes e de seus patronos (parte 2). Com o Observatório de controle social, a OAB espera unir esforços à cidadania em prol do aprimoramento da ordem processual  brasileira, requisito indispensável à promoção e à defesa do Estado democrático de direito.  

1. Resistências à aplicação do NCPC 

Com exceção do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ancorado no art. 103-B, §4º, I, da Constituição Federal,  nenhum órgão possui competência constitucional para editar atos administrativos que vinculem os demais tribunais. A cada tribunal é conferida atípica função legislativa para elaborar seu próprio regimento interno,  que disporá sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos, sempre em conformidade com a lei processual e com as garantias asseguradas às partes, como decorre do art. 96, I, “a”, da Constituição. O Poder Judiciário também exerce, excepcionalmente, atividade administrativa derivada de competência regulamentar, isto é, do dever de disciplinar a discricionariedade administrativa quando uma lei requerer particularizações normativas ulteriores, quando a concreção da lei em casos particulares comportar algum nível de discricionariedade administrativa. Pode haver imprecisões que exijam um regramento procedimental acerca da conduta a ser observada pelos órgãos administrativos na execução normativa ou acerca da mais adequada interpretação da lei entre várias possíveis. Destarte, por força do princípio da igualdade, uma lei deve ser executada de maneira uniforme em situações fáticas iguais, daí a importância da atividade de regulamentação.  

Atos administrativos de caráter regulatório (instruções, portarias, resoluções, regimentos ou afins) jamais podem inovar na ordem jurídica, tampouco lhes cabe afastar a juridicidade de uma lei devidamente aprovada pelo Legislativo. Tal é o princípio basilar do Estado de direito: o princípio da legalidade, que prescreve a completa submissão da Administração à lei. No compasso do princípio da legalidade, a atividade administrativa destina-se tão somente ao cumprimento e à corporificação da lei, motivo pelo qual a Administração há de agir sempre secundum legem, ou seja, quando houver autorização legal. De acordo com a peculiaridade do regime jurídico do Direito Público, ao contrário dos sujeitos particulares, que possuem um âmbito de liberdade apenas constrito pela lei, podendo fazer tudo o que esta não vedar, os sujeitos públicos só podem fazer o que a lei antecipadamente autorize. Em suma, a atividade administrativa é atividade infralegal, dependente de lei e restrita a promover comandos complementares à lei.  Nos dizeres lapidares de Celso Antonio Bandeira de Mello, “não é possível expedir regulamento, instrução, resolução, portaria ou seja lá que ato for para coartar a liberdade dos administrados, salvo se em lei já existir delineada a contenção ou imposição que o ato administrativo venha a minudenciar”.  Como veremos, atos regulamentares recentemente expedidos pelos tribunais superiores e pelo Fórum Nacional de Juizados Especiais exorbitam da modesta competência dos tribunais para elaborar instrumentos administrativos, dado que estes não são meio hábil para recusar aplicação a uma lei regularmente promulgada através da atividade legiferante do Estado. Tal atitude causa deletério desequilíbrio no sistema de freios e contrapesos (checks and balances) do Estado de direito.  

Uma lista exauriente de resistências à aplicação do NCPC ocorridas nesses 5 meses de vigência seria impraticável. Catalogá-las está além do escopo deste artigo, embora tal empreendimento seja precisamente uma das tarefas do Observatório. Para os fins de justificação do Observatório de controle social, concentremo-nos, por ora, em violações, contradições e imprecisões perpetradas por tribunais superiores e órgãos de uniformização, na medida em que suas decisões costumam ser seguidas pelos órgãos de instância inferior. Em certa medida, seu entendimento interpretativo a respeito do Novo CPC lança luzes – para o bem ou para o mal – à interpretação que irá irradiar-se através de todo o ordenamento jurídico. Vejamos algumas recentes e mais relevantes manifestações do Fórum Nacional de Processo do Trabalho (I), do Fórum Nacional de Juizados Especiais (Fonaje) (II), do Tribunal Superior Eleitoral (II), do Superior Tribunal de Justiça (III, IV, V, VI, VII), do Supremo Tribunal Federal (VIII, IX) e de parte significativa dos juízos de primeira instância (X). 

(I) O Fórum Nacional de Processo do Trabalho aprovou o Enunciado nº 17, com a seguinte redação: “NCPC, ART. 10.  ART. 769 DA CLT. PROIBIÇÃO DE FUNDAMENTO ‘SURPRESA’, EM DECISÃO SEM PRÉVIO CONTRADITÓRIO. INAPLICABILIDADE NO PROCESSO DO TRABALHO. PREVALÊNCIA DA SIMPLICIDADE, CELERIDADE E INFORMALISMO. Não se aplica ao processo do trabalho o art. 10 do NCPC, que veda motivação diversa da utilizada pelas partes, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício. Prevalência dos princípios da simplicidade, da celeridade, da informalidade e do jus postulandi, norteadores do processo do trabalho. Resultado: aprovado por unanimidade”.  Tal enunciado denota uma inequívoca afronta ao princípio do contraditório; mais precisamente ao direito das partes, consagrado no referido art. 10, de ter oportunidade de manifestar-se a respeito de fundamento empregado pelo juiz, ainda que em decisão ex officio.

(II) A regra que determina a contagem de prazos processuais somente em dias úteis (art. 219) – conquista histórica da advocacia – tem sido alvo de insensata controvérsia. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) editou a Resolução nº 203, designada a dispor sobre as normas do NCPC aplicáveis ou não aplicáveis ao Processo do Trabalho, de forma não exaustiva.  Em princípio, causa espanto a ADI nº 5516, movida pela Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) contra o disciplinamento realizado pelo TST, na qual os magistrados do trabalho insurgem-se contra diretriz que os obriga a aplicar uma lei cuja obrigatoriedade, por si só, já se lhes estende naturalmente. Além disso, o art. 2º da Resolução nº 203 determina que o art. 219 não seja aplicado aos processos que correm na Justiça Laboral. Os Juizados Especiais de vários Estados (entre eles: Alagoas, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Paraná, Santa Catarina, Sergipe e São Paulo) também se têm mantido insuscetíveis a essa norma. A consequência de tal ato é o vilipêndio do sagrado direito de descanso dos advogados e, por conseguinte, da qualidade da defesa, dos debates forenses e da própria prestação jurisdicional. O art. 15 do NCPC torna obrigatória a aplicação subsidiária do diploma às justiças eleitoral e trabalhista e aos juizados especiais. Esses órgãos não são feudos independentes do organismo judiciário em sua totalidade. O presidente do Conselho Federal da OAB, Claudio Lamachia, remeteu ao presidente do Fonaje ofício em que se pleiteia a revisão do Enunciado Cível nº 165 e do Enunciado da Fazenda Pública nº 13, os quais determinam a contagem contínua de prazos nessas jurisdições. O argumento esposado pelo Fonaje enfatiza que a adoção dos prazos em dias úteis contribuiria para o recrudescimento da morosidade processual. No entanto, há estudos que indicam a atividade interna das varas como a principal responsável pelo atravancamento dos processos. Afirma o Presidente Claudio Lamachia: “Em suma, não há qualquer indicativo de que a morosidade do Judiciário possa ser atribuída ao período que o processo permanece com o advogado ou ao tempo em que se aguarda algum ato do patrono. Ao contrário, depreende-se da pesquisa que a duração desses momentos é muito pequena, quando comparada ao tempo que os autos ficam em cartório”.  Como também a morosidade não se dá em função do fato de a Magistratura não trabalhar em feriados e fins de semana, e de usufruir anualmente de 60 dias de férias e de 20 dias de recesso nos fins de ano.

(III) Poucos dispositivos têm sido tão frequentemente desafiados quanto o art. 85, que trata dos honorários advocatícios. A profusão de decisões que simplesmente o ignoram é um ultraje inaceitável contra toda a advocacia - atividade que possui a dimensão constitucional de ser indispensável à administração da Justiça (art. 133 da Constituição) - e contra a prestação jurisdicional. Em decisão tomada pelo Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.264.358, a Corte decidiu de forma unânime pela penhora de honorários elevados, negando preceito textualmente estabelecido no §14 do art. 85: “Os honorários constituem direito do advogado e têm natureza alimentar, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho, sendo vedada a compensação em caso de sucumbência parcial”. A impenhorabilidade é característica inerente às verbas de natureza alimentar, nas quais se incluem os honorários dos profissionais liberais (art. 833, IV, do NCPC). Demais, a Súmula 306 do STJ (“Os honorários advocatícios devem ser compensados quando houver sucumbência recíproca, assegurando o direito autônomo do advogado à execução do saldo sem excluir a legitimidade da própria parte”) resta prejudicada e deve ser cancelada a fim de que se adeque à nova enunciação processual.  Em tal súmula, transparece uma confusão entre o que pertence à parte e o que pertence à advocacia: o direito autônomo de executar a parte da sentença relativa aos honorários sucumbenciais compete apenas ao advogado, uma vez que consiste em pleito de direito seu. Como é de se esperar, o entendimento do STJ reverbera e influencia, pelo mau exemplo, os tribunais e os juízos de primeiro grau. Juízes de primeira instância continuam fixando valores abaixo dos estipulados pelos parágrafos do art. 85.  O caso mais emblemático, amplamente divulgado pela imprensa jurídica, diz respeito à magistrada do Distrito Federal que fixou em R$ 2 mil o valor dos honorários sucumbenciais referentes a uma ação cujo valor da causa era de R$ 243.709,38, importância muito aquém do montante definido nos §§3º e 4º, a qual deveria ter o piso de 8% e o teto de 10% sobre o valor da condenação, como se tratava de causa em que era parte a Fazenda Pública (art. 85, §3º, II). 

(IV) Quando discutia a adequação de seu regimento interno ao NCPC, o STJ anunciou a insustentável posição de que o art. 940 lhe era inaplicável, alegando que o prazo máximo de 10 dias para pedido de vista seria insuficiente para a discussão de teses jurídicas que serão adotadas pelos demais tribunais.  O art. 940 está incluído no capítulo “Da Ordem do Processo nos Tribunais”, e não traz ressalva alguma à sua própria extensão a nenhum tribunal. O prazo de 10 dias para pedido de vista é peremptório e decorre de lei; uma vez extrapolado, poderá ser prorrogado por no máximo 10 dias ou há de ser designado substituto para proferir julgamento. O que há de implícito nessa afirmação? O que foi dito através do não dito? A posição do STJ denuncia sutilmente a impressão que o Judiciário tem de si mesmo; deixa transparecer o imaginário da Magistratura Nacional, segundo o qual as leis são imperativas, exceto para os juízes.  

(V) Contrariando textualmente o art. 489 do NCPC, o STJ sentenciou em acórdão de sua lavra: “O julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão. A prescrição trazida pelo art. 489 do CPC/2015 veio confirmar a jurisprudência já sedimentada pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, sendo dever do julgador apenas enfrentar as questões capazes de infirmar a conclusão adotada na decisão recorrida (STJ, EDcl no MS 21315 / DF, S1 - DJe 15/6/2016) (grifamos)”. De acordo com o §4º do artigo em questão, não se considera fundamentada uma decisão que “não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”. Para efeitos de “argumentos capazes de, em tese, infirmar a conclusão do julgador”, nenhum argumento que a parte traga pode ser excluído de antemão, pois, potencialmente, qualquer invocação seria virtualmente capaz de alterar a convicção do juiz, partindo-se do pressuposto de que esta não fora formada a partir de prejulgamentos e preconcepções. Essa visão do Tribunal, data venia, contamina-se de autoritarismo na medida em que desconsidera a parte processual como sujeito integrante de um processo dialógico e construtivo, em vez de solipsista, voluntarista e idiossincrático. Os princípios do contraditório e da ampla defesa – premissas medulares do direito processual, por força de dispositivo constitucional (art. 5º, LV) –, por consequência, ficam enfraquecidos. 

(VI) O Código de 2015 fez por bem extirpar do ordenamento jurídico a indefensável, pois antidemocrática e antijurídica, expressão “livre convencimento do juiz”. Ora, a liberdade é atributo dos sujeitos privados, e não dos agentes públicos; estes possuem no máximo discricionariedade, isto é, um leque de opções para tomar decisões condicionado pelo conjunto de interpretações válidas de princípios, regras e atos administrativos que restringem seu poder de escolha sob a égide do direito. Conforme lição de Celso Antonio Bandeira de Mello, a discricionariedade é um “dever-poder”: uma vez que o Poder Público exerce função administrativa pela qual se investe no dever de satisfazer as necessidades alheias do bem comum e do interesse coletivo, o aspecto do dever subordina o do poder.  Não obstante, muitos juízes têm permanecido renitentes quanto à perda de sua “liberdade” (ou seria arbítrio?) de convicção. O fantasma do livre convencimento foi ressuscitado pelo STJ no julgamento do REsp 827.440/MT, bem como pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região: “Ressalte-se, a esse respeito, que o julgador não está vinculado aos preceitos normativos ou fundamentos legais indicados pelas partes, reclamando-se apenas que decida a controvérsia de forma fundamentada, em consonância com o princípio da persuasão racional ou livre convencimento motivado” (grifamos).  O convencimento deve ser motivado e estar em conformidade com o direito vigente, e exatamente por isso não é livre. O princípio invocado nem de longe se coaduna com a democracia. 

(VII) A OAB Nacional requereu ao STJ, mediante ofício, o cancelamento de súmulas de teor contrário ao Novo Código de Processo Civil.  Dentre elas, destaca-se a Súmula 115, redigida em 1994: “na instância especial é inexistente recurso interposto por advogado sem procuração nos autos”. É necessária uma readequação aos arts. 76 e 932, parágrafo único, do NCPC, que dão disciplina distinta ao assunto. Em razão de ambos, cabe ao juiz suspender o processo e designar prazo razoável (prazo de 5 dias para tribunais) para saneamento do vício. A vetusta inépcia do recurso passa a ser descabida nessa hipótese. A nova regra é um passo em direção ao combate à política judiciária restritiva de jurisdição conhecida, neste aspecto, como jurisprudência defensiva, no compasso da primazia do mérito ante a formalidade processual (princípio da instrumentalidade das formas).

(VIII) A OAB Nacional também encaminhou ofício ao STF com pedido de revogação das súmulas contrárias ao NCPC. Segundo inteligência da OAB a respeito do Novo Código, com arrimo no art. 98, §§2º e 3º, os honorários de sucumbência, ao contrário do que dita a defasada Súmula 450, também são devidos pela parte vencida, ainda que ela seja beneficiária de justiça gratuita.  Na dicção do NCPC: “A concessão de gratuidade não afasta a responsabilidade do beneficiário pelas despesas processuais e pelos honorários advocatícios decorrentes de sua sucumbência” (art. 98, §2º). A atualização do entendimento da Suprema Corte é impreterível para que seja de uma vez por todas consolidado o precípuo caráter alimentar dos honorários advocatícios.

(IX) O STF debateu, de forma até o momento inconclusiva, acerca do cabimento de sustentação oral de advogado no agravo interno interposto contra decisão de relator que extingue o processo de competência originária. Embora a posição da Corte ainda não esteja cerrada, a OAB Nacional requereu à Suprema Corte a observância desse direito  consectário da ampla defesa. O art. 937, §3º, não deixa margem de dúvida ao cabimento da sustentação oral nas hipóteses previstas no inciso VI, quais sejam, na ação rescisória, no mandado de segurança e na reclamação. Interpretação contrária seria flagrantemente destoante da literalidade do texto legal; seria um lamentável episódio em que a mais alta Corte do País prestaria um desserviço à cidadania. 

(X) Juízes de primeira instância têm ignorado de modo sistemático as audiências de conciliação,  desde então obrigatórias em virtude do art. 334 do NCPC: “Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação...”. Apenas nas hipóteses de manifestação expressa em contrário de ambas as partes ou de inadmissibilidade de autocomposição por essência da lide, a audiência prévia será dispensada (art. 334, §4º). Os magistrados argumentam que suas respectivas varas não possuem mediadores suficientes e que a realização dessas audiências aumentaria ainda mais a morosidade do órgão judicial. Quanto ao primeiro argumento, há indícios de que em grande parte dos juízos ele seria insustentável porquanto os Cejuscs (Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania) têm sido cada vez mais implementados  e equipados para atender adequadamente às demandas. Quanto ao segundo argumento, cabe frisar que o princípio constitucional da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII) se impõe tão somente quando não causar prejuízo a direitos e prerrogativas das partes, ou quando não afetar o potencial de justeza do mérito da decisão. A conciliação, uma vez efetivada, poderia, inclusive, evitar o prosseguimento da judicialização da causa e os infindáveis ritos formais do processo, acarretando, no fim das contas, mais celeridade. Estatísticas da Justiça do Trabalho, que têm a conciliação como fase processual obrigatória, mostram que quase metade dos litígios pode ser resolvida na fase de conciliação: a média dos últimos dez anos (entre 2006 e 2015) foi de 42,4%, oscilando entre o máximo de 44,1% em 2008 e o mínimo de 38,9% em 2015.  O âmago do problema reside na cultura estatista dos juízes, formados sob um paradigma em que o poder privado de negociação das partes é completamente alienado pelo Estado-juiz, o qual passa a ter o monopólio da pacificação social na esteira da hiperjuridificação dos conflitos sociais. Uma nova cultura de solução de conflitos, que desafogue o Judiciário do congestionamento de demandas e devolva às partes a faculdade de transigir acerca da melhor solução para litígios que envolvam direitos disponíveis, é urgente e deve ser priorizada pela nova educação jurídica. 

2.  O controle social como expressão da soberania popular

Pelos caminhos da Filosofia Política, poderíamos chegar a algumas conjecturas no que concerne a essa estarrecedora atitude conservadora e antirrepublicana dos magistrados. O eminente filósofo inglês Thomas Hobbes nos ensina que os homens agem tendo em vista o princípio do benefício próprio. Em vez de animais políticos, naturalmente comunitários e servidores da polis, inerentemente preparados para a vida em sociedade, cuja virtude se encerra na concorrência para o bem comum – como derivaria da filosofia aristotélica do zoon politikon –, os homens hobbesianos empregam sua razão calculadora como meio para obter aquilo que consideram bom para si mesmos: em todos os casos (instrui Hobbes, nos escritos De cive, I, 2),  para obter vantagem ou glória. A resistência da Magistratura diante das mudanças sociais e jurídicas talvez possa ser desvendada pela óptica da antropologia hobbesiana: embevecidos do medo de perder seus privilégios provenientes do status quo, de sofrer algum abalo em sua quase incontestável autoridade historicamente acumulada, muitos juízes se recusam terminantemente a obedecer a regras que lhes são impostas, mesmo as regras legisladas. Plasmados no subterfúgio da independência da judicatura, insurgem-se contra a própria República, rememorando os tempos monárquicos em que a autoridade estatal, mais do que discricionária, era absoluta, autocrática, arbitrária. Por que não nos surpreendemos completamente com essa atitude de alguns julgadores refratários ao Novo Código de Processo Civil? Talvez porque compartilhamos uma concepção implícita, difundida pelo imaginário social, de que o Judiciário é ainda um resquício de um poder monárquico dentro da República. E, para manter esse poder, é previsível que, agindo orientados pelo interesse próprio e de sua classe, os membros do Judiciário venham a comportar-se de modo insubmisso relativamente a qualquer tentativa de limitação de seu poder de decidir (mesmo que essa limitação não afete drasticamente sua esfera de competência). 

Em apreciação da visão dos juízes, os cientistas políticos Rogério Bastos Arantes e Maria Tereza Sadek, dois dos maiores estudiosos do Judiciário no Brasil, assim se manifestam:

(...) deve-se ainda acrescentar uma série de problemas concernentes à mentalidade dos juízes. Esta questão é certamente mais ampla do que a da estrita formação acadêmica e do processo de socialização interno à instituição, embora tenha aí um ponto de partida. O sinal mais visível desta crise reflete-se num espírito excessivamente corporativo, pouco sensível a mudanças nos valores sociais e avesso a mecanismos de controle externo. 

O ideal republicano reivindica para o povo soberano a detenção de todo poder que venha a ser manejado pelo Estado. Em uma república democrática, “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” – encontra-se estampado, no parágrafo único do art. 1º, o princípio da soberania popular, o preceito democrático basilar. Disso decorre que, no limite, ao povo deve ser dado controlar, pelos meios reconhecidos pela Constituição e pela legislação, todo e qualquer ato público por meio do qual o poder estatal imponha decisões obrigatórias a toda a comunidade política. Em princípio, esse controle se dá pela aquiescência quanto à escolha de seus representantes e quanto à aceitabilidade racional das decisões estatais (“aceito uma decisão legislativa, executiva ou jurisdicional porque ela oferece razões com as quais concordo, ou as quais são plausivelmente respeitáveis, ou mesmo porque seriam minhas próprias razões para agir”). Nisto repousa o princípio da legitimidade do direito,  que deve ser levado a sério por qualquer associação política que se queira democrática. Em termos mais sofisticados, a legitimidade do republicanismo também pede a elaboração de arranjos institucionais especialmente designados para o exercício da função de controle popular. A história humana nos ensinou a lição de que o poder, quando não contido, tende ao arbítrio.

A fim de efetivar a soberania popular, o direito constitucional desenvolveu duas espécies de controle: (a) interno e (b) externo. O controle (a) interno é realizado por órgãos do próprio Estado e inscreve-se na lógica dos freios e contrapesos, cuja mais bem- acabada elaboração está presente na fundação do constitucionalismo estadunidense.  Tal modalidade de controle é uma exigência do art. 74 da Constituição brasileira, no qual se preveem o Tribunal de Contas da União (TCU) e os Tribunais de Contas dos Estados, a ser disciplinados pelas respectivas constituições estaduais, todos eles órgãos consultivos do Poder Legislativo. Também podemos citar, a título de exemplo de controle interno, a Controladoria-Geral da União (CGU), órgão do Governo Federal responsável pela defesa do patrimônio público, da transparência e do combate à corrupção, diretamente vinculado à Presidência da República. No âmbito do Judiciário nacional, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do qual falaremos com mais detalhes logo adiante, ocupa-se da função de controle. Esse mesmo art. 74 obriga aos Poderes Públicos “apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucional” (inciso IV). Controle (b) externo, ao contrário, refere-se àquele realizado por entidades da sociedade civil organizada por meios não estatais, desde que sejam previstos juridicamente. Tal espécie visa a aproximar o manuseio das atividades públicas da fonte de seu fundamento: a soberania popular. A promulgação de certas leis no Brasil, como a Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717, de 1965), a Lei da Transparência (Lei Complementar nº 131, de 2009) e a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527, de 2009) tem facilitado o acesso e controle da sociedade aos assuntos e trâmites internos do Estado. 

(a) No âmbito especificamente do Poder Judiciário, decorre do retromencionado art. 74 da Constituição a criação de órgãos judiciais não jurisdicionais de controle interno. Embora seja necessária a independência para a aplicação justa e correta das normas jurídicas, os juízes não estão imunes ao raio de propagação da soberania do povo. Para o desiderato de disciplinamento da atividade judiciária em níveis penal, cível e disciplinar, foi incluído no texto constitucional o CNJ, mediante Emenda Constitucional nº 45 de 2004, responsável pelo controle administrativo e financeiro do Poder Judiciário, com competências definidas no art. 103-B, §4º, da Constituição (com redação alterada pela Emenda Constitucional nº 61 de 2009). Devemos salientar que sua atividade é meramente administrativa, isto é, sublegal, de modo que não lhe cabe inovar legislativamente na ordem jurídica. Regulamentar é diferente de restringir. A restrição da liberdade, no Estado de direito, eflui unicamente da lei (art. 5º, I, da Constituição). Recordando a lição do nunca demais invocado Celso Antonio Bandeira de Mello, os atos regulamentares não desfrutam da mesma hierarquia das leis (têm caráter infralegal), pois estas emanam do próprio coração do regime democrático: o Poder Legislativo. Assim sendo, seriam inconstitucionais resoluções do CNJ que porventura viessem a contrariar uma lei, daí incluir-se o NCPC. Muito menos assistiria razão às restrições levadas a cabo pelos tribunais superiores ou pelo Fonaje, aos quais sequer compete a função de controle administrativo interno. A despeito do avanço que significou a criação do CNJ na perspectiva do controle do Judiciário, sua composição é pouco plural e pouco representativa da sociedade civil: dos quinze conselheiros, nove são membros do Poder Judiciário (art. 103-B, da CF). Ademais, nenhuma organização não governamental (com exceção da OAB) detém prerrogativa de nomeação. Sua existência, logo, não exclui nem se incompatibiliza com o controle externo; seria providencial a instituição de um órgão de representação popular, preferencialmente eleito, para exercer competências de fiscalização, inquérito e supervisão do Poder Judiciário. 

(b) Atualmente, não há órgão de controle externo não estatal do Poder Judiciário, tampouco o houve ao longo de nossa desafortunada história institucional. O Judiciário brasileiro sempre foi, relativamente aos outros, o Poder mais autocrático da República no sentido de sua impermeabilidade com relação à influência popular, de sua insuscetibilidade no que se refere à capacidade de controle social. Assim como os demais Poderes (que são controlados, primariamente, pelo mecanismo eleitoral), o Judiciário também tem sua atuação limitada pelos termos traçados na Constituição, e, enquanto componente estrutural do Estado, não há razão pertinente para que não esteja igualmente sujeito a uma permanente fiscalização a ser exercida pela sociedade civil organizada. O argumento da independência necessária ao juiz deve ser levado em conta, pois as pressões das massas e da opinião pública não podem prevalecer sobre a interpretação jurídica prudente, mas não a ponto de pô-lo a salvo de toda forma de supervisão emanada da coletividade cidadã. 

O Observatório da aplicação do NCPC orienta-se por essa perspectiva: a OAB, enquanto representante da cidadania e entidade da sociedade civil organizada, independente com relação ao Estado e historicamente combativa das práticas autoritárias, atende ao chamado pela efetividade do Novo Código. A advocacia vem exercer seu papel de sentinela da democracia ao integrar uma organização voltada ao controle popular do sistema de Justiça, do porte de um Observatório de controle social de amplitude nacional. Ao participar de um Observatório de controle social – genuína expressão da soberania popular diretamente emergente do seio da sociedade civil organizada –, a advocacia endossa seu protagonismo social na defesa dos direitos dos cidadãos. Zelar pelas prerrogativas da advocacia é zelar também pelos direitos dos cidadãos, que são os destinatários finais do trabalho dos advogados. Afirmei, em outra oportunidade:

A atividade profissional do advogado está intimamente relacionada com a defesa de pessoas, direitos, bens e interesses. Quando atua, o advogado o faz em nome de alguém que quer fazer valer o seu direito como cidadão e, neste momento, exerce sua função social, concretizando a aplicação do direito em favor dos interesses sociais e coletivos.  

Com o Observatório de controle social, a OAB objetiva elaborar, desenvolver, coordenar e executar ações que contribuam para a democratização do Poder Judiciário no Brasil e, especificamente, para a plena eficácia do Novo Código de Processo Civil. O conhecimento público das violações do NCPC é uma ferramenta de grande valia para o trabalho da Ordem em defesa das prerrogativas da advocacia, dos direitos de todos os cidadãos e, por conseguinte, da integridade do ordenamento jurídico como um todo. Observar a Justiça é uma forma de interferir em sua organização e reprodução, na medida em que o produto da observação pode contribuir para mobilizar a luta da sociedade por um Judiciário mais qualitativo, autor de decisões mais justas e em conformidade com o direito – circunstância em que o Judiciário exerce apropriadamente seu papel constitucional. 

Dentre as atribuições do Observatório, destacam-se: a realização de estudos e pesquisas sobre a aplicação do NCPC em todas as instâncias judiciais de todas as unidades federativas, por meio de uma estrutura racionalizada de levantamento de dados e informações; o desenvolvimento de mecanismos de diálogo, primeiramente entre a advocacia de todo o País, entre as respectivas Seccionais e entre estas e o Conselho Federal da OAB e, em segundo nível, entre a OAB, representante da advocacia e da sociedade civil organizada, e o Poder Judiciário; o mapeamento de práticas do sistema judicial, a disponibilizar dados e informações aos jurisdicionados e à população, que venham a dar-lhes conhecimento de um problema que demanda um incessante trabalho de confronto por parte da advocacia e das entidades de controle social; e o recebimento de manifestações e denúncias acerca da não aplicação do NCPC em casos concretos, na condição de instrumento de defesa contra as arbitrariedades judiciais, que possam subsidiar providências cabíveis a ser tomadas pela OAB junto aos órgãos de controle.

Acima de tudo, é necessário nos engajarmos na defesa da Constituição e do Estado democrático de direito. De acordo com nosso sistema constitucional, um dispositivo legal somente poderá ser desconsiderado caso seja inteiramente declarado inconstitucional no controle difuso ou concentrado; caso seja parcialmente declarado inconstitucional com ou sem redução de texto; caso uma de suas interpretações possíveis seja considerada incompatível com a Constituição; caso seja invalidado por um princípio; ou caso esteja em conflito com outro dispositivo legal e venha a ser derrubado com base nos critérios de resolução de antinomias. Fora desse universo de possibilidades, o desprezo de uma lei significará arbitrariedade, puro decisionismo pelo qual o julgador exorbita de sua legitimidade e trai a decência de seu ofício. Com esse ideal em mente, a advocacia, enquanto expressão da sociedade civil organizada, engaja-se presentemente na tarefa de controle social necessária à defesa do Estado democrático de direito.


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