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Mais povo na política

domingo, 16 de outubro de 2005 às 07h50

Brasília, 16/10/2005 - Enquanto o Brasil se prepara para a realização do primeiro referendo da sua história, movimentos pela "radicalização" da democracia por meio da efetivação da soberania popular, afirmada na Constituição, ganham impulso. Uma das principais iniciativas em curso é promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que, em sua Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, enviou ao Congresso e às casas legislativas estaduais e municipais País afora anteprojetos de lei que visam aprimorar e facilitar a prática de plebiscitos e referendos, reforçando seu caráter efetivamente direto e popular.

Segundo a cientista política da USP Maria Vitória Benevides, não é possível estabelecer uma democracia de massas totalmente direta, mas também não devem ser impostas excessivas barreiras aos meios diretos de consulta e decisão popular. O equilíbrio entre os sistemas representativo e direto, que marca grande parte das mais maduras democracias do planeta, sobretudo na Europa, ainda é precário no Brasil. Basta lembrar que, 115 anos passados desde a Proclamação da República, o País só teve a experiência de dois plebiscitos para definição do sistema de governo, em 1963 e 1993, ambos vencidos pela república presidencialista.

Na opinião do jurista Fábio Konder Comparato, responsável pela redação do projeto da OAB, o que incomoda a oligarquia nacional no atual referendo não é a possibilidade de vitória do "sim" ou do "não", mas o exercício dessa forma de expressão e afirmação direta da vontade popular.

A proposta da OAB contém várias inovações importantes. Talvez a principal seja a possibilidade de que referendos e plebiscitos sejam convocados pelos cidadãos sem a necessidade de aprovação pelo Parlamento ou por qualquer outro poder, mediante o apoio, na forma de abaixo-assinado, de um porcentual do eleitorado.

Além disso, estabelece regras de obrigatoriedade de consulta popular, como no caso de alterações da legislação eleitoral (matéria em relação à qual "os parlamentares vêem-se, incontornavelmente, obrigados a decidir, não apenas no interesse geral, mas em causa própria", diz a "justificativa" que acompanha o texto-projeto enviado pela OAB à Câmara dos Deputados). Há também uma nova proteção às leis de iniciativa popular que, uma vez em vigor, só poderiam ser revogadas ou alteradas com chancela popular expressa por referendo.

Entre os temas que deveriam passar a ser objeto de apreciação direta pelo eleitorado, aqueles que "dizem respeito essencialmente ao bem público e ao interesse nacional", o projeto da OAB cita acordos, pactos, convenções, tratados e protocolos internacionais. Se na época da entrada do País no Mercosul a regra estivesse em vigor, os brasileiros decidiriam a questão nas urnas, a exemplo do que têm feito os eleitores dos países da União Européia.

Mas, diante da legislação atual, para que essas ou outras ampliações do poder dos cidadãos sejam conquistadas, terão de ser aprovadas por seus representantes eleitos: políticos que hoje, por legítima atribuição legal, concentram o poder decisório que os defensores do avanço da democracia direta querem repartir entre os brasileiros.

Na Câmara Federal, o assunto está na pauta da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Há cerca de dois meses, o deputado Roberto Freire (PPS-PE), no cargo de relator, apresentou um parecer favorável a um projeto que amplia e modifica a legislação sobre plebiscitos e referendos. Mas a proposta de Freire, com base no projeto da deputada Vanessa Grazziotin (PCdoB do Amazonas) e que cita, entre seus apensos, o projeto da OAB, não contempla os pontos centrais do texto da entidade.

Freire se diz favorável à utilização de instrumentos de democracia direta. Menciona, entre os principais avanços da sua proposta, uma regulamentação que, se aprovada, fará com que os referendos convocados realizem-se sempre em conjunto com a votação mais próxima do calendário eleitoral. O relator diz que outro aperfeiçoamento seria uma regulamentação mais clara para os casos de emancipações municipais ou estaduais, que hoje seria "muito confusa". O deputado admite que não há nada de "bombástico" em sua proposta e justifica a rejeição do que há de mais substantivo no texto da OAB por uma defesa da ordem democrática.Segundo ele, "não se pode prescindir da aprovação do Congresso para a convocação de plebiscitos e referendos" sem correr riscos graves.

"Em que mãos cairá esse poder? Algum general? A Igreja?", questiona Freire, que também critica o estabelecimento de temas que exigiriam aprovação por referendo. "Temos de regulamentar a forma de aplicar o instrumento, se cairmos na discussão de conteúdos específicos, criaremos uma polêmica tamanha que retardaremos o processo e provavelmente nada será feito."

Outro membro da CCJ, o deputado José Eduardo Cardozo (PT-SP), discorda de Freire: "Considero que o projeto da OAB está plenamente de acordo com o espírito da Constituição e sua aprovação representaria um importante passo adiante para a democracia brasileira". Segundo Comparato, diante dos obstáculos encontrados na comissão da Câmara, os participantes da campanha já planejam um plano "B", no front federal: uma nova versão do projeto seria enviada ao Senado.

A Câmara de Vereadores de São Paulo aprovou a versão do projeto, adaptado ao âmbito municipal, que a OAB lhe enviou. A lei só não entrou em vigor por veto do prefeito José Serra. O texto do veto justifica a decisão do Executivo por razões jurídicas e de custos, mas, segundo Comparato e a vereadora Soninha (PT), a razão fundamental, expressa pelo próprio Serra e por sua assessoria, seria o risco de um excesso de consultas populares, que interferiria demasiadamente na administração municipal e travaria a gestão do Executivo. Os que apóiam o projeto da OAB para a capital paulista dividem-se na busca de dois caminhos para a superação do veto. Sopinha compõe um grupo que adaptou o projeto de forma a torná-lo mais palatável ao Executivo, mas mantendo parte substancial de seu poder de facilitar e ampliar a democracia direta na cidade.

"Como o Executivo assegura que em tese não é contra a ampliação da democracia direta e nos incentivou a fazer essa revisão, espero que a sua resposta ao novo texto não demore e que resulte na retirada do veto", declara a vereadora.

Já o coordenador do comitê da campanha Democracia Direta Já, da OAB paulista, Eduardo Di Pietro, prefere apostar na derrubada do veto pela própria Câmara e a conseqüente entrada em vigor da lei em sua integralidade. Um embate direto com o Executivo que, seguido o trâmite normal, só acontecerá após o esgotamento de uma fila de 500 outras matérias legislativas que aguardam para ir a Plenário. Di Pietro crê que a força da pressão popular poderá fazer com que a votação do tema torne-se prioritária e conta, para isso, com um abaixo-assinado, disponível no cite da OAB-SP, que já reúne 6 mil nomes.

Outro tema importante para a democracia brasileira, a obrigatoriedade do voto, ganha evidência em razão do atual referendo. Criticada por sua natureza tutelar, paternalista e, segundo alguns, autoritária, a instituição é defendida por Maria Vitória Benevides, que integra da Campanha em Defesa da República e da Democracia.

Segundo a estudiosa, o voto obrigatório ainda se justifica no atual estágio de desenvolvimento político do País, já que a sua abolição resultaria numa queda da participação dos que menos usufruem dos direitos da cidadania e que, portanto, são os que mais precisam ser chamados à participação. "Os que vivem em lugares mais pobres e distantes e que já têm mais dificuldade de acompanhar os processos políticos teriam ainda menos incentivo para tentar se informar e se fazer ouvir. Isso ameaçaria a legitimidade do sistema representativo", analisa a socióloga.

Maria Vitória discorda do argumento de que a obrigatoriedade é uma excrescência conceituai por travestir um direito em dever. Segundo ela, a cidadania inclui direitos e deveres que podem variar conforme as condições sociais e políticas. Mas reconhece que a obrigatoriedade deve ser transitória, algo que a sociedade brasileira deve superar mediante a conquista de um Estado democrático mais efetivo e maduro. ( A matéria é de autoria do repórter Flávio Lobo e foi publicada na revista Carta Capital ).

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