Íntegra do discurso de Busato no lançamento da Campanha
Rio de Janeiro (RJ, 15/11/2004 - Segue a íntegra do discurso do presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato, proferido hoje (15) no lançamento da Campanha Nacional de Defesa da República e da Democracia:
“Senhoras e Senhores,
O lançamento da Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, que tenho a honra de hoje anunciar, em nome do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, não poderia ocorrer em data e local mais propícios.
Há exatamente 115 anos, nesta mesma ilustre e tão querida cidade do Rio de Janeiro, foi proclamada a transformação do nosso regime político, de monarquia em república.
Teríamos nós, porém, entendido desde então o sentido profundo daquele ato político?
Creio que a evolução da vida nacional no decurso de mais de um século, desde o celebrado dia 15 de novembro de 1889, responde claramente pela negativa. Se considerarmos o sentido da expressão res publica coisa pública como bem comum, é imperativo reconhecer que, não apenas nos últimos cento e quinze anos, porém, mais amplamente, desde o primeiro século da colonização, o nosso povo permaneceu e permanece à margem da vida política nacional.
Mesmo em tempo de democracia formal, como agora, a cena política brasileira nos dá muitas vezes a impressão de um grande teatro, no qual os atores, em vez de representarem democraticamente o povo, representam perante o povo, iludindo-o.
A triste realidade é que o povo tem sido, no decorrer de nossa história, mero expectador. Admite-se, como hoje, que escolha de tempos em tempos os atores do teatro político, mas nunca as peças dramáticas a serem encenadas.
Como se não bastasse, é um expectador sui generis, porque é sempre ele, e não os atores, que paga a conta do mau desempenho cênico das peças em cartaz.
Na verdade, a preocupação com o bem comum do povo sempre esteve ausente da nossa vida política, quer na Colônia, quer no Império, quer na República. O conhecido juízo de Frei Vicente do Salvador, o primeiro historiador do Brasil, foi, como se sabe, categórico a esse respeito:
“Nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada qual do bem particular”.
Ousaríamos, porventura, sustentar que a situação geral mudou radicalmente entre nós nos dias de hoje? Encontra-se aí, da resposta a essa indagação fundamental, a razão precípua da Campanha que ora se abre.
O seu objetivo é bem claro: cuidar, antes de tudo, de estabelecer o povo brasileiro no lugar que de direito e justiça lhe cabe, como princípio e razão de ser de toda ação política.
A Constituição Federal de 1988 declara, solenemente, que um dos objetivos fundamentais da nossa República consiste em “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, inciso III). Mas como é possível eliminar o estado de marginalização social de grande parte dos brasileiros, se o próprio povo, no seu conjunto, permanece à margem da vida política?
Já é tempo de nos darmos conta de que uma república não é, simplesmente, o regime político oposto à monarquia, como aliás constou, simplificadamente, do plebiscito de 1993, determinado pelo art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Não é minimamente republicana a prática política em que o bem comum do povo, ou seja, a autêntica res publica, na sua lídima acepção etimológica, sujeita-se ao interesse particular de classes, grupos sociais, empresas ou corporações de qualquer natureza. Tampouco se coaduna com o autêntico espírito republicano aceitar que a nação brasileira se submeta às injunções de potências estrangeiras, ou à pressão de empresas e instituições financeiras, internacionais ou privadas, como tem ocorrido com freqüência nos últimos tempos.
Ora, se há algo que mais propriamente constitui o bem comum do povo, é, incontestavelmente, o conjunto dos direitos inerentes à condição de pessoa humana, sejam tais direitos de natureza civil e política, ou econômica, social e cultural.
Dentre esses direitos essenciais do homem, os quais não podem sofrer limitações de nenhuma sorte, há de ser enfatizado, aqui e agora, o direito à segurança. Ele figurou em lugar de destaque nas primeiras Declarações de Direitos da História moderna, e a sua importância e o seu âmbito de aplicação não cessam de crescer até os dias de hoje.
Tal direito corresponde, antes de mais nada, ao dever fundamental do Estado de garantir a incolumidade de cada indivíduo, em sua pessoa e bens, contra os ataques perpetrados pelos delinqüentes ou os próprios agentes públicos; inclusive - triste paradoxo - por aqueles agentes precipuamente encarregados de zelar pela segurança do povo.
Nesta cidade do Rio de Janeiro, como em todas as grandes aglomerações urbanas do país, acham-se hoje os moradores à mercê das forças organizadas da criminalidade, cuja ação deletéria as autoridades constituídas, malgrado todo o seu empenho, revelam-se impotentes para coibir.
Mas o direito fundamental à segurança não se limita apenas à preservação da incolumidade pessoal. Hoje, não só o povo brasileiro, mas praticamente toda a humanidade padece de crescente insegurança econômica e social. Por força da globalização capitalista, instalada vitoriosamente desde o último quartel do século passado, os princípios fundamentais do Estado Social de Direito vão sendo abandonados, com o enfraquecimento das garantias de seguridade social e a revogação de direitos básicos dos trabalhadores.
Ora, a História nos tem ensinado, ao longo de tantas lutas e na sucessão de tantos desastres, que a melhor defesa dos direitos do povo é aquela que ele mesmo organiza. Nesse sentido, a democracia aparece como complemento indispensável do regime republicano. Se a finalidade última do Estado é prover a realização do bem comum do povo, nada mais justo e necessário do que garantir ao próprio povo a plena titularidade dessa soberania.
Aí está, portanto, o segundo elemento essencial da Campanha que ora se inaugura.
A nossa Constituição abre-se com a afirmação solene de que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. E enfatiza, de modo lapidar: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente” (art. 1º, parágrafo único).
Ambas essas maneiras, pelas quais o povo pode e deve exercer a sua soberania, são entre nós - é doloroso dizê-lo - largamente falseadas.
Sem dúvida, o povo elege livremente seus representantes, o que já é um apreciável progresso em relação ao regime político autoritário, que precedeu imediatamente a Constituição em vigor. Mas esses representantes do povo gozam de plena autonomia para desempenhar o seu mandato como bem entendem. Eles se acham plenamente autorizados a decidir sobre os destinos do país e a alienar o patrimônio nacional, sem se considerarem minimamente obrigados a atender as exigências populares, ou a cumprir o programa de atuação com que se comprometeram e com o qual foram eleitos.
Já no tocante aos instrumentos de democracia direta o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular , inscritos no art. 14 da Constituição, nós os negligenciamos. Tornaram-se peças inúteis de um mecanismo meramente ornamental, ao contrário do que ocorre em diversos outros países, inclusive vizinhos nossos na América Latina, que os utilizam largamente como meios de expressão e de formação ético-política da vontade popular.
Entendamos bem o sentido nuclear do regime democrático. A democracia não é, como se costuma dizer, repetindo a definição famosa de Lincoln, o governo do povo por si mesmo.
As atividades de governo, pela sua notória intensidade e complexidade no mundo moderno, não podem ser desempenhadas pelo povo, como, aliás, jamais o foram, nem mesmo na experiência original vivida pelo mundo grego, na antiguidade clássica. A essência da democracia não está, manifestamente, no autogoverno popular, mas sim na prerrogativa indelegável do povo de controlar diretamente a ação de todos os titulares de funções públicas, sejam eles dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, ou do Ministério Público.
Num autêntico regime democrático, todos esses agentes públicos são, como a sua denominação claramente indica, delegados do povo. Como tais, perpetuamente submetidos, não só às decisões do soberano sobre as grandes metas da ação dos Poderes Públicos, mas também sujeitos à permanente censura popular no desempenho de suas atividades.
É por essa razão que o primeiro ato desta Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia consiste na abertura, que ora faço, pela minha assinatura, do processo de iniciativa popular de uma nova lei reguladora do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular legislativa.
Esse projeto de lei, de iniciativa popular, que temos a honra de encaminhar, em conjunto com a CNBB e o apoio de expressivas instituições civis da República, tem o objetivo de substituir a Lei nº 9.709, de 18 de novembro de 1998, que, por suas notórias deficiências, não logrou superar o bloqueio institucional a que me referi.
O presente projeto de lei dá uma precisa definição do objeto dessas consultas populares, com a previsão de plebiscitos e referendos obrigatórios em certas matérias, ao mesmo tempo em que cria um regime especialmente reforçado para as leis provenientes da iniciativa popular.
Trata-se, pois, de fortalecer a cidadania e de resgatar na sua essência o compromisso republicano, além de ajudar nosso povo a se pôr de pé para que afirme a defesa de sua dignidade, a fim de, todos juntos, possamos proclamar....Viva a República! Viva o Povo Brasileiro!