Busato fala sobre ordem e justiça à revista Brasília em Dia
Brasília, 12/11/2004 – Íntegra da entrevista concedida pelo presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato, tema de capa da edição da revista “Brasília Em Dia”. Esta nova edição da revista começa a circular no dia de hoje:
Ordem e Justiça
Na história recente do país, a Ordem dos Advogados do Brasil esteve presente em momentos significativos. Quando grupos de extrema-direita se opuseram à abertura do regime militar, no final da década de 70, procurando fechar o caminho para a retomada da normalidade institucional, a sede da OAB foi um dos primeiros alvos dos atentados dos extremistas, lançando dinamites e provocando uma vítima fatal. Também quando começaram as manifestações pelas eleições diretas, a OAB teve uma presença significativa para o movimento que acelerou a volta da democracia. E, em plena democracia, quando um presidente da República sucumbiu ao mar de lama da corrupção, também a OAB desempenhou um papel histórico, tornando possível que a História registrasse o primeiro caso de afastamento de um chefe da nação.
Ao tomar posse como presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato cobrou do governo medidas mais eficazes que gerem emprego e renda, além de permitir que o bem-estar básico dos mais humildes passasse a ser um compromisso efetivo, e não apenas um expediente propagandístico.
Mais do que nunca ele acredita, quase um ano depois da sua posse, que a sociedade brasileira precisa continuar se indignando com a tragédia social. Só desse jeito, acredita, a esperança não se transformará em desengano.
Sempre com uma agenda repleta de pedidos de entrevistas de veículos de todo o país, ele viveu esses dias uma experiência diferente. Como entrevistador, do outro lado da mesa estava o jurista Luiz Carlos Alcoforado, membro do Conselho Editorial de Brasília Em Dia, munido com dois gravadores e 50 minutos de tempo reservado para questioná-lo sobre alguns dos problemas mais emergenciais do país, da própria OAB, o desempenho do presidente Lula, além de temas polêmicos, como, por exemplo, a democratização do acesso ao cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal.
Leiam a entrevista e confiram.
Luis Carlos Alcoforado - Qual a visão que o senhor tem hoje sobre o Brasil?
Roberto Busato - O Brasil é um país que se transforma a todo tempo, é um país moderno, de amplas oportunidades e que apesar disso tem uma dificuldade extrema em vencer a exclusão social, a miséria, apresentar um planejamento mais eficaz, apesar de toda essa riqueza. Então, o país cada vez mais, por si só, acaba evoluindo mais do que os governantes dele próprio.
Luis Carlos Alcoforado - O senhor acha que existe uma proposta de política pública segundo a qual se procura fazer a verdadeira inclusão social ou esse governo na verdade está repetindo os erros do passado?
Roberto Busato - Isso está claro aonde nós vamos no Brasil todo: uma frustração do povo brasileiro que elegeu um metalúrgico para presidente, justamente dando um grande recado de mudanças imediatas e profundas, e essas mudanças não vieram, essas mudanças, ainda, por uma série de fatores, permanecem emperradas, e o Brasil não conseguiu avançar muito nesse campo. Eu acredito que o governo, com esse resultado que teve agora das urnas, deverá se preocupar mais em mudar o perfil do país através de reformas mais prementes, principalmente na área social.
Luis Carlos Alcoforado - Considerando que nós tivemos várias formulações de políticas públicas, principalmente no século passado, e fizemos experiências de toda ordem e grandeza, muitas das quais com flagrante fracasso, e que, agora, hipoteticamente, o partido que se dizia de esquerda chegou ao poder, com política de centro-direita, com escassos na área social, cabe a pergunta: O Brasil tem jeito?
Roberto Busato - O Brasil vem procurando há muito tempo fazer esse jeito através de seus governantes, veja que isso é uma repetição da história política brasileira. O Brasil elegeu, lá atrás, Jânio Quadros com uma proposta de modificação profunda das instituições políticas do país, e esse presidente acabou renunciando praticamente no início de seu mandato. Depois este país viu na revolução de março de 64 uma tentativa de restabelecimento, de moralidade pública, de uma nova política de crescimento, e se frustrou logo em seguida com a quebra dos princípios democráticos do Estado de Direito. Esse país tentou um novo modelo de modernismo, de abertura para o mundo moderno, com o presidente Fernando Collor, e deu no que deu, impeachment constitucional do presidente da República. E depois o Brasil vem, a última proposta que o povo dá à nação, é a eleição de um metalúrgico que até agora não conseguiu modificar. Mas apesar de tudo o Brasil vem crescendo, o Brasil, apesar de todas essas frustrações no campo político, vem apresentando uma mudança de perfil, e é essa mudança de perfil que nos dá certa tranqüilidade de entender que esse país terá futuro e que vai encontrar um caminho realmente de vanguarda dentro do mundo tanto econômico, quanto social. Eu não tenho dúvida nenhuma que, pela potencialidade do Brasil, nós chegaremos a um porto seguro.
Luis Carlos Alcoforado - Se o senhor tivesse um condão de resolver o problema mais grave do Brasil, qual seria eleito, pelo aspecto de grave comprometimento do tecido social?
Roberto Busato - A educação seria o ponto fundamental. A educação está degringolando em todos os níveis, nós temos que nos preocupar com a educação no ensino fundamental, no ensino médio e no ensino superior, a educação parece-me que seria a primeira mola propulsora da mudança de rumo desse país.
Luis Carlos Alcoforado - Como vai a OAB?
Roberto Busato - A Ordem dos Advogados do Brasil passa por um momento difícil, um momento de incompreensão por alguns setores, na parte administrativa há uma tendência de se procurar calar a OAB. Nós temos uma luta histórica pela preservação da independência da instituição como conselho de disciplina da categoria, mas também como órgão institucional da República. E, constantemente, estamos vendo movimentos que visam jungir a Ordem a um controle estatal, e a Ordem resiste a isso. Estamos enfrentando diversas iniciativas do próprio Ministério Público no sentido de colocar um bridão na Ordem, na sua independência administrativa, o que, evidentemente, forçará a Ordem, se acontecer isso, a perder esta força constitucional que ela tem dentro da República. Infelizmente, também, setores da magistratura às vezes não entendem o papel da Ordem, que é de contraponto das instituições civis da República. Ao par disso, a Ordem vem se reciclando a todo instante, ela está tendo, através de seu Conselho Federal, uma preocupação muito grande de uma transparência de sua atividade administrativa, da sua atividade política, e vem defendendo as teses que sempre defendeu em prol da democracia, do estado democrático de direito e das liberdades individuais.
Luis Carlos Alcoforado - Então, já se pode dizer que, para a Ordem, é inadmissível qualquer tipo de controle externo?
Roberto Busato - Eu acredito que não combina uma perda de autonomia da Ordem com o papel histórico que ela desenvolveu e desenvolve a favor da República.
Luis Carlos Alcoforado - Há alguns queixumes em relação à natureza do processo eleitoral da Ordem. A OAB fala muito em democracia, apregoa, tece todo um discurso democrático, mas sabemos que a eleição do presidente não se faz mediante a vontade de todos os advogados, num verdadeiro processo democrático. O senhor acha que isso compromete a perspectiva de uma Ordem realmente mais vinculada ao advogado, mais identificada com todos os advogados, ou esse processo, na verdade, por ser histórico, por ser cultural, não permite uma relação diferente dela?
Roberto Busato - Estamos discutindo atualmente a legislação eleitoral. Eu tinha como meta, uma das metas de gestão, a discussão ampla da política eleitoral dentro da Ordem dos Advogados do Brasil, principalmente da exposição que a Ordem teve nas últimas eleições gerais em todo o Brasil, e isso está sendo desenvolvido no Conselho Federal. A eleição do presidente não é feita diretamente pelo voto do advogado, mas ela já democratizou bastante, porque antigamente nem se elegia um Conselho Federal, se elegia delegados, o Conselho Federal elegia três delegados do Estado, que seriam os Conselheiros Federais, e estes se reuniam e elegiam o Presidente Nacional. Hoje o advogado elege os Conselhos Estaduais e o Conselho Federal, e depois todos os Conselheiros Estaduais, do Brasil todo, elegem o Presidente Nacional, sendo que a diretoria é obrigatoriamente eleita diretamente pelo voto popular, o voto do advogado, porque eles deverão ter a condição de Conselhos Federais. Foi a fórmula encontrada para democratizar quando se votou o Estatuto da Advocacia, democratizar a instituição que era centrada em algumas figuras de destaque do Conselho Federal, que, praticamente definiam quem seria o Presidente Nacional. Agora o processo passa por todos os Conselhos estaduais do Brasil todo.
Luis Carlos Alcoforado - A sociedade colhe, até mesmo às vezes por equívoco, a impressão de que há certo relaxamento no que diz respeito ao exercício do poder disciplinar da Ordem sobre os seus advogados. E nós temos uma realidade, em alguns estados, extremamente preocupante, porque há, verdadeiramente, situação, diria até de desdém, com o exercício do poder disciplinar, que deixa de ser exercido pela interferência da prescrição ou decadência, situações temporais que se encarregam de interditar a punição. E o processo disciplinar da Ordem ainda é muito fechado, é muito adiabático, perde muita publicidade, no reforço de segurança que permite que o advogado tenha seu nome poupado. Há perspectivas de mudança, para a sociedade saber quem está sendo julgado, quem está sendo punido?
Roberto Busato - Cada vez mais a Ordem sente a necessidade da divulgação desses dados e de exigir a ética na advocacia. No mesmo momento que nós fazemos a divulgação, e cada vez mais estamos divulgando as prerrogativas da advocacia como direito do cidadão, prerrogativa da advocacia só pode existir com uma advocacia ética. E essa exteriorização do aspecto ético deve existir permanentemente por parte das secionais. Do lado do Conselho Federal nós, a partir da última sessão, começamos a divulgar, fazendo um balanço das sessões da Segunda Câmara, que é a Câmara que faz o julgamento em última análise dos processos disciplinares na instituição, e na última sessão, divulgamos fartamente, perante toda a opinião pública nacional, os motivos que levaram os advogados que foram submetidos a julgamento às penas, e também, a quantidade de advogados que foram apenados pelo aspecto disciplinar. Ao mesmo tempo em que o congressista constitucional colocou a advocacia ao nível constitucional, que é uma coisa que toda advocacia mundial olha como um avanço da advocacia brasileira, ao mesmo momento ele deu a responsabilidade ao advogado de exercer sua função com ética. E a Ordem, na nossa gestão, terá uma luta implacável com relação a isso. Vamos defender até o fim a liberdade da advocacia, a prerrogativa da advocacia, a valorização da advocacia, mas também estaremos atentos a qualquer transgressão do aspecto ético, porque sem ética não há advocacia. A profissão é estritamente ligada a ética, e se a Ordem deixar de olhar por esse lado, a corporação estará fazendo desserviço à advocacia.
Luis Carlos Alcoforado - É possível traçar um paralelo entre o advogado de ontem e o de hoje, sobre o aspecto de qualificação e sobre o aspecto de ética?
Roberto Busato - O advogado de ontem tinha uma qualificação muito melhor do que o advogado de hoje, e o exemplo está aí, muito nítido, a aprovação do exame da Ordem girava em torno de 80%, esse número, hoje, representa a reprovação do exame da Ordem, então se mudou o pólo. Isso tudo em função do péssimo ensino jurídico que está sendo ministrado hoje, em todo o Brasil, principalmente pelas faculdades privadas. Há um sucateamento do ensino superior público, o que envolve o ensino do Direito, e há um crescimento desenfreado de cursos de Direito com efeitos meramente mercantilistas. E esses cursos deixaram de lado a parte ética que deve nortear a formação do advogado, isso nós estamos notando, e estamos procurando suprir com seminários, cursos, com uma série de atividades, esse aspecto negativo. Agora há essa grande campanha da moralização do Ensino Jurídico no Brasil, e nós acreditamos que, ao poucos, vamos tentar retomar as rédeas dessa situação, que não é nada favorável ao jovem brasileiro.
Luis Carlos Alcoforado - Qual o instrumento institucional mais poderoso para, efetivamente, redesenhar essa qualidade?
Roberto Busato - Precisamos readequar o ensino de Direito. É na formação que nasce o advogado, ele é moldado dentro da sua formação, desde os primeiros anos de sua vida escolar, e por isso eu disse que, se eu fosse Presidente da República começaria pela educação, uma retomada, um resgate da dignidade do Brasil, mas na advocacia começaríamos pelo ensino Jurídico, e estamos fazendo isso, junto com o Ministério da Educação. O ministro Tarso Genro teve uma sensibilidade muito grande com o tema, e, primeiro, partimos com o freio de arrumação dessa baderna que estava o ensino Jurídico, agora vamos começar a normatizar as homologações de novos cursos de Direito. E, para o ano que vem, a grande meta é a fiscalização desses cursos, visando que haja uma formação adequada e compatível com a necessidade que o mundo moderno e globalizado tem hoje. Precisamos preparar, inclusive, a advocacia brasileira para enfrentar o mercado exterior. Estamos vendo escritórios internacionais invadindo o mercado de trabalho do advogado e vemos que a advocacia brasileira às vezes apanha em função da falta de qualificação para um mercado que, hoje, abre as portas para o mundo todo.
Luis Carlos Alcoforado - Não há um replanejamento das regras internas da OAB para justamente facilitar, criar uma fronteira nova, para que o advogado brasileiro possa participar, em condições de igualdade, com as bancas internacionais? As regras que disciplinam a publicidade, a comunicação, não são anacrônicas, por força da realidade do mercado interno e do mercado globalizado?
Roberto Busato - Estamos fazendo isso. Temos discutido com relação a esse mercado de serviço internacional e globalizado. O Brasil tem sua regra, a grande maioria dos países ainda não se preparou para isso, estamos começando a discutir uma mudança na publicidade do advogado. Esse mundo da mídia, da mídia impressa, da mídia tecnológica, principalmente, evolui a cada dia, então a legislação da Ordem, que era tida como uma das mais avançadas, já está necessitando de um ajuste. Estamos no mundo todo, hoje, procurando convênios, associações com entidades congêneras à Ordem dos Advogados do Brasil, no sentido de adequar os profissionais brasileiros, de aperfeiçoamento em matérias internacionais e também em seu aperfeiçoamento como advogado, encontrando, também, alguns convênios de atuação profissional, com certa vantagem ao advogado brasileiro. Isso nos parece que é uma missão que a Ordem tem perante os seus 480 mil advogados, visando abrir cada vez mais um mercado que possa ser compatível com essa massa gigantesca da advocacia brasileira.
Luis Carlos Alcoforado - Considerando as regras existentes, é razoável falar em tratamento de isonomia entre os advogados? Por que é muito comum hoje o cliente pretender contratar um advogado, escolher um escritório de advogado com poder de influência que exerce nos Tribunais brasileiros. Essa é uma realidade que pode ser escondida, porque a sociedade, na verdade, que protagoniza esse quadro, que é muito triste, hoje, porque por mais capacitação que se tenha, o advogado nem sempre é escolhido para patrocinar uma causa importante. Faz-se um tráfico de influência, selecionando filhos de ministros, e os outros escritórios ficam, na verdade, sem esses mesmos instrumentos.
Roberto Busato - Isso é um desvio de conduta que não pode ser admitido pela Ordem, e isso enseja até uma infração disciplinar, esse tipo de advocacia é uma advocacia administrativa que deve ser evitada.
Luis Carlos Alcoforado - Mas ela existe?
Roberto Busato - Existem notícias de que ela existe, e há uma discussão dentro da Ordem, por exemplo, com o aspecto ético desse aspecto referido na pergunta da advocacia...
Luis Carlos Alcoforado - Se ela existe, por que não há um caso histórico, clássico de punição de tráfico de influência? Um caso que seja exemplar? Que possa dizer "a Ordem puniu o advogado no exercício de um flagrante", já que ela existe?
Roberto Busato - Por falta, às vezes, até, de oportunidade, de denúncia, é um delito que tem uma difícil comprovação, até certo ponto. Então, os instrumentos existem, a predisposição existe da Ordem, mas é o tipo de delito que é difícil de caracterizar. Temos casos antológicos, é mais fácil apurar a responsabilidade, como é o caso daquela advogada Jorgina de Freitas, do Rio de Janeiro, que foi afastada da OAB. Temos advogados de renome dentro do cenário brasileiro, de grandes centros, que estão sendo processados pela Ordem, só que o processo corre em segredo. Então, esses processos estão ainda tramitando. Agora, a advocacia de filhos de ministros, isso foi muito discutido dentro da Ordem e constantemente se tem acompanhado esse aspecto.
Luis Carlos Alcoforado - Qual a pior crise da história do Estado? Qual o poder que representa hoje a sua debilidade maior?
Roberto Busato - Todos os três têm uma debilidade muito forte em muitos pontos. O Poder Executivo não resolvendo os problemas sociais desse país, o Poder Legislativo não desenvolvendo a sua atividade, o Poder Judiciário demorando eternamente para julgar um processo, então os poderes da República, todos eles necessitam de uma reforma muito ampla para que respondam aos anseios da população, eu não me arrisco a dizer qual dos três estaria em piores condições. Todos os três têm graves deficiências dentro de seu seio.
Luis Carlos Alcoforado - Um deles, o Poder Judiciário, está se submetendo a um processo de reforma, que pode ser muito mais formal do que cultural. É possível fazer uma reforma cultural? Mudar o protagonismo?
Roberto Busato - Sim, precisamos mudar conceitos, precisamos, além de mudar constitucionalmente a estrutura do judiciário, além de termos que mudar o judiciário pela reforma da legislação infra-constitucional, temos que mudar o judiciário pelo seu conceito. E é, talvez, a reforma mais difícil e a mais eficaz, é mudar o conceito da magistratura dentro desse país. Perdeu-se a noção de que o judiciário existe para o povo, parece que o judiciário existe para o juiz, então, o que precisa, também, é uma grande reforma de conceito dentro desse país.
Luis Carlos Alcoforado - É por isso que quando se faz essa reforma, se pretende fazer essa reforma do poder judiciário, não se fala em reforma da justiça, fala-se da reforma do poder judiciário, é exatamente esse espelho que contamina todo o processo de escolher propostas, que verdadeiramente possam reciclar, reativar, energizar esse poder?
Roberto Busato - Eu acredito que o poder Judiciário ficou muito tempo dentro de uma redoma de vidro e se tornou incapaz de ter a sensibilidade de ver os seus problemas e acabou degringolando de uma forma tal que, realmente necessita uma sacudida por inteiro. É, talvez, o poder, que mais tempo ficou fechado dentro da República brasileira.
Luis Carlos Alcoforado - A desarticulação institucional com comprometimento da qualidade do serviço público cuja execução responde o Estado, acusa a tendência de fortalecimento da sociedade e enfraquecimento do próprio Estado? O Estado está se redesenhando, existe um Estado diferente que se pode prever nos próximos 50 anos, ou esse Estado é cada vez mais débil, cada vez mais sujeito às grandes corporações? Como é esse Estado que você vê?
Roberto Busato - O Estado não está respondendo ao anseio que o povo está dando, e o país funciona pela criatividade e pela pujança do país e da população brasileira. Nós vamos discutir profundamente a República brasileira, quase que em um trabalho didático, de item por item do que a República brasileira está precisando. Estamos defendendo, em função dessa inércia do Poder Público de resolver os problemas do Brasil, como o povo pode participar melhor da administração da República através do fortalecimento do processo da consulta popular, do processo do plebiscito. Estamos lançando uma grande campanha nesse sentido, para mostrar que, através de iniciativas populares, nós possamos dar uma sacudida nos poderes da República para que ela possa enfrentar esse Estado mal resolvido que estamos vivendo até agora.
Luis Carlos Alcoforado - Nós temos uma situação interessante no que concerne a escolha do juiz. O juiz ingressa na magistratura mediante aferição do critério objetivo, técnico, mas se não examina a sua aptidão, sua qualidade de julgador. Quando um juiz se submete a um processo de ascensão na carreira, esse critério técnico é menos utilizado, prestigiando-se o critério político. E se sabe que essas escolhas se submetem a um regime extremamente difícil, porque todas as influências políticas interagem, contaminam a qualidade dessa escolha. Não é hora de mudar esse conceito de escolher o juiz brasileiro?
Roberto Busato - Sem dúvida nenhuma, deve mudar a forma de ascensão. A forma de admissão, o concurso público tem as suas vantagens. Mas a ascensão profissional do magistrado sofre uma série de influências, e influências negativas. Eu acredito que o próprio Conselho Nacional de Justiça vai poder regular melhor esse tipo de situação e criar uma dependência menor do magistrado perante a Cúpula dos Tribunais e perante o poder político que manda no Estado, que manda no país. A Ordem tem criticado bastante o acesso ao cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, achamos que deve ser mais democratizado, para que se evite o que está acontecendo: o Tribunal é formado, geralmente, pelos amigos do mandante que esteja no comando político da nação. Então, nesse ponto é profundamente difícil a manutenção da independência, da serenidade, do equilíbrio do magistrado, porque ele depende, para sua ascensão funcional, de uma série de negociações internas. Isso é injusto, é perigoso, é uma insegurança jurídica para a população brasileira.
Luis Carlos Alcoforado - O senhor é temente, refratário à idéia ou à possibilidade de se utilizar, como escolha de determinadas categorias de juizes, conforme certas competências, mediante o critério de participação popular?
Roberto Busato - Esse critério já existe em alguns países do mundo, não faz parte da nossa tradição, da tradição dos países latinos. Eu acredito que essa forma de ascensão ao cargo público não condiz muito com nossa tradição, eu ainda sou pelo concurso público que afere tecnicamente aquele que ingressa na magistratura. O que nós precisamos ter é uma não ingerência na ascensão funcional daquele magistrado que vem para a carreira através do concurso.
Luis Carlos Alcoforado - Hoje o senhor diria que as decisões dos Tribunais Superiores são mais técnicas, mais políticas ou mais de conveniência?
Roberto Busato - O país todo reclamou das últimas decisões da Suprema Corte brasileira em relação alegando questões políticas. O Tribunal realmente ficou mais político. As decisões têm teses mais avançadas nesse campo, deixando o tecnicismo jurídico um pouco de lado para se atender um pouco mais o sentido social e econômico. Nesse ponto a população sentiu uma diferença de postura do Poder Judiciário e dos Tribunais Superiores.
Luis Carlos Alcoforado - E o precatório? Pode-se acreditar num Estado em cujo texto constitucional comporta a regra de satisfação tardia da dívida, oriunda de decisão judicial? Não é hora da sociedade, da OAB mobilizar todas as forças nacionais e repensar esse instituto, que é extremamente descompassado com a ordem democrática, com um Estado que tem que ser democrático, educativo, tem que demonstrar que sabe cumprir suas obrigações?
Roberto Busato - O precatório é um câncer jurídico, é um absurdo o que fizeram com o precatório, ai de quem, desgraçadamente daquele que tiver uma demanda contra o Poder Público, porque ele vai ver, você fala na pergunta em dez anos, ele que se benza para resolver em dez anos, às vezes não se resolve durante sua própria existência, porque se criou um processo contra a entidade pública e não termina nunca. Temos um processo de reconhecimento, com inúmeros recursos, temos prazos favorecidos para o Poder Público, chegamos depois de uma grande via crucis no final de um processo de reconhecimento, e temos que iniciar toda uma fase de execução. Depois passamos por uma nova via crucis, de anos e anos nessa fase de execução, passamos pela liquidação, encontramos o valor, e se tem um valor definido, e o Estado não se dobra, não paga, e aí começamos a crise do precatório. E, hoje, se discute até a formação do precatório, o Poder Público discute até a formação do precatório, o que é, realmente, um grande absurdo. Isso é muito próprio de países subdesenvolvidos e aonde há esse tipo de procedimento, graça em maior nível a miséria. Onde o povo tem garantidas as decisões judiciais, o acesso à jurisdição e garantida a decisão, através do cumprimento das decisões, temos uma diminuição da exclusão social e da admissão da miséria. E o precatório é exatamente a mão inversa. É a consagração da miséria, da impunidade e da falta de vergonha do Poder Público em pagar aquilo que deve à população.
Luis Carlos Alcoforado - Qual é a solução? Qual o remédio? Se existem Estados que há anos, oito, cinco, seis anos, não pagam precatório algum, em fragrante descumprimento da constituição e com a conivência do Supremo Tribunal Federal.
Roberto Busato - Eu acho que a solução é mudar completamente o modelo, a situação chegou a um descalabro de tal ponto que não há como aproveitar-se o sistema atual vigente. Alguns falam que a solução seria o seqüestro pelo Judiciário do dinheiro público para pagar os particulares que chegam ao final de um processo e tem um crédito a receber do Estado. Toda a nação tem que pensar em um novo modelo, porque esse que está aí já faliu e não pode ser aproveitado em nada. Temos uma comissão, inclusive, especial, que está estudando esse aspecto aqui no Conselho Federal, e pretende-se agora uma visita ao Presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento, no sentido de vermos qual a possibilidade que possa, através do próprio BNDES, ter algum paliativo nessa situação, mas é muito difícil, eu acredito que o modelo tenha que ser totalmente reprocessado e uma nova solução deve haver. O que deve haver mais ainda, que pode resolver a situação, é moralidade pública.
Luis Carlos Alcoforado - Sabe-se do despojamento do senhor em formular opinião sincera. Assim, cabe a pergunta: como o senhor avalia o governo Lula?
Roberto Busato - Pelo que anunciou o partido que apóia o Presidente da República, o partido ao qual ele é afiliado, ele pretendia uma ampliação de sua base muito maior do que ocorreu dentro das urnas, portanto, ele próprio se coloca em uma posição de adversidade perante as urnas, pelos resultados das urnas dessas últimas eleições. Estamos vendo, agora, na mídia, diversos pronunciamentos de adversos ao partido do governo, questionando-se alianças, o que aconteceu, porque perdeu aqui, porque perdeu lá, porque aconteceu isso... isso prova, realmente, que o partido não teve uma boa eleição.
Luis Carlos Alcoforado - Então o governo foi reprovado?
Roberto Busato - Eu entendo que sim.
Luis Carlos Alcoforado - E qual a nota o senhor daria ao governo Lula, de um a dez?
Roberto Busato - Cinco sofrível.
Luis Carlos Alcoforado - E, politicamente, quais foram os vitoriosos e os perdedores dessa eleição? Quem se credencia para a sucessão presidencial?
Roberto Busato - Eu acho que o grande vencedor das eleições foi o povo brasileiro que deu, em minha opinião, três recados muito fortes dentro dessa última eleição. Ele deu um primeiro recado, no primeiro turno, em que mostrou que as elites partidárias são mais frágeis do que a militância partidária, principalmente para o PT. O PT mostrou, na eleição, por exemplo, do Ceará, que a militância do partido é muito mais forte que a elite do partido, nitidamente. Em outros estados, a população deu uma prova de que se pretende eliminar certas elites, certos coronéis da política brasileira. E, depois, no segundo turno, o povo foi sábio ao dizer "não queremos um partido hegemônico, queremos dividir as forças, não queremos que fique o Brasil, como é o mundo hoje, na mão de um único país, de um único rancheiro, queremos um país onde haja uma força democraticamente equilibrada". Eu acho que essa é a grande lição das urnas. Quem ganhou e quem perdeu eu acredito que o tempo vai provar. O brasileiro já não está mais agüentando repetir experiências, está mudando o todo tempo e se os políticos que hoje tem como vitória esta eleição não se preocuparem, eles serão os próximos derrotados. E aqueles que foram derrotados hoje, poderão ser os vitoriosos de amanhã. O povo brasileiro está sendo muito sábio nos últimos tempos.
Luis Carlos Alcoforado - O que os advogados podem esperar da atual gestão? Que mensagem otimista o senhor deixaria?
Roberto Busato - Os advogados podem esperar uma luta sem quartel das posições institucionais da Ordem, que é o papel do Conselho Federal, mas podem ter certeza de que procuraremos também aproximar o Conselho Federal da advocacia brasileira. Às vezes há uma crítica, e o Conselho Federal se afasta do advogado, o advogado fica longe do Conselho Federal. Estamos empreendendo algumas missões, procurando desmistificar o Conselho Federal. Recentemente estivemos visitando todas as subseções do estado do Piauí, estaremos incrementando, no ano que vem, esse tipo de atividade, levantando a auto-estima do advogado como profissional, como ente social, como pessoa diferenciada, que exerce uma profissão diferenciada, isso nós estaremos nos dedicando por esses dois anos e meio, quase, de mandato, que ainda temos à frente da Ordem.