OAB vai ao STF contra descumprimento de auditoria da dívida
Brasília, 08/11/2004 - O Pleno do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil confirmou há pouco sua decisão de ingressar no Supremo Tribunal Federal com uma argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), que obrigue o Congresso Nacional a realizar a auditoria da dívida externa do País, conforme previsto no artigo 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição. A medida havia sido aprovada por unanimidade em 6 de abril último, mas, frente a dúvidas que surgiram quanto à melhor forma de encaminhamento judicial da questão, voltou ao Conselho da OAB e foi ratificada por maioria. O presidente nacional da OAB, Roberto Busato, assinará nos próximos dias a proposta de ação ao STF.
Além da ação que tenta fazer o Congresso Nacional cumprir o exame pericial dos atos e fatos geradores da dívida externa, o Conselho Federal da OAB decidiu que estenderá sua análise também à dívida interna do País. Roberto Busato, que presidiu a sessão, anunciou hoje (08)que constituirá comissão para examinar também os efeitos da dívida interna no País, conforme propôs recentemente o ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Jayme Magrassi de Sá. Enquanto a dívida externa é atualmente de US$ 200 bilhões (ou R$ 600 bilhões), o endividamento interno do País é calculado em cerca de R$ 1 trilhão.
O artigo 26 do ADCT da Constituição Federal, promulgada em outubro de 1988, estabelece que no prazo de um ano a contar da promulgação, o Congresso Nacional promoveria, “através de comissão mista, exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro”. Passados dezesseis anos, completados no dia 5 do mês passado, aquele dispositivo não foi cumprido e a OAB entende que o Congresso Nacional deve ser acionado judicialmente para efetivá-lo.
A comissão de auditoria da dívida externa, segundo a Constituição, terá força legal de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para fins de requisição e convocação, atuando com auxílio do Tribunal de Contas da União (TCU). Se no curso dos trabalhos, ela apurar irregularidade em qualquer contrato da dívida brasileira, o Congresso deve propor ao Poder Executivo a sua anulação, encaminhando o processo ao Ministério Público Federal para a ação cabível.
Os 81 conselheiros federais da OAB haviam aprovado por unanimidade, dia 6 de abril, a proposta da ação ao STF, na forma de argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Mas, posteriormente, quando da elaboração da ação, surgiram questionamentos sobre se esse tipo de ação constituiria o caminho mais adequado juridicamente. O presidente da OAB, Roberto Busato, consultou então a Comissão de Estudos Constitucionais da entidade e o jurista Fábio Konder Comparato, que preside a Comissão de Defesa da República e da Democracia da entidade.
O professor Comparato opinou que o melhor caminho seria uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) por omissão, em lugar da ADPF.Já a Comissão de Estudos Constitucionais da OAB, com base em parecer do jurista José Afonso da Silva, seu integrante, considerou incabível a ação judicial, indicando que houve o início de uma auditoria da dívida pelo Senado Federal em 1989.
“Mas, como admitiu o próprio jurista José Afonso essa auditoria ficou no início, portanto, não foi cumprido o mandamento do artigo 26 do ADCT”, observou o relator do processo na OAB, conselheiro federal pela Bahia, Arx Tourinho. Ele voltou a defender o instrumento da argüição por descumprimento de preceito fundamental como o mais adequado para o caso. “O Constituinte estabeleceu, no artigo 26 do ADCT que o Congresso deveria constituir uma comissão mista para o exame pericial e analítico do endividamento externo. O Senado Federal iniciou um trabalho em 1989, mas foi parcial, pois faltou a manifestação da Câmara dos Deputados e faltou o exame pericial e analítico”, observou.
Segundo Tourinho, com a proposta ao Supremo de uma ADPF, a entidade dos advogados vai cobrar o cumprimento da auditoria da dívida externa e espera ser bem sucedida no pleito judicial. “É verdade que esse tipo de ação tem muitos aspectos processuais e jurídicos, mas foi exaustivamente debatida neste Conselho e na Comissão de Estudos Constitucionais que decidiu pela sua proposição”, observou.
Tourinho criticou duramente a formação da dívida externa brasileira, que “está prejudicando enormemente a vida deste país e preceitos fundamentais da nossa Constituição, como o artigo 3°, que fixa os objetivos fundamentais para a República Federativa do Brasil”. Para ele, “com essa dívida, jamais alcançaremos o pleno desenvolvimento ou um país que acabe com a pobreza enquanto houver esse endividamento externo, pois todos sabemos que ela é impagável e foi montada em cima de ilícitos de corrupção e irregularidades, as mais diversas possíveis”. E concluiu: “Portanto, a OAB tenta fazer com que o Congresso Nacional cumpra aquilo que a Constituição quer e que, em verdade, é aquilo que todo cidadão quer, ou seja, que a norma constitucional tenha eficácia para toda a sociedade”.
A seguir, o voto do Conselheiro Federal da OAB pela Bahia, Arx Tourinho, aprovado na sessão de hoje:
Processo: PRO-0025/2003
Origem: Conselheiro Federal Paulo Lopo Saraiva
Assunto: Auditoria cidadã da dívida externa
Relator: Conselheiro Federal Arx Tourinho
VOTO
1. Aplicabilidade do artigo 26, do ADCT. Sugestão de propositura da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Reanálise da matéria, diante de argumentos, lançados por juristas.
2. Inexistente exaurimento da norma constitucional. Comissão Mista que não procedeu a exame analítico e pericial do endividamento externo. Cumprimento parcial.
3. O artigo 26, do ADCT, está imbricado com preceitos fundamentais, incluindo aqueles que dizem com o objetivo da República Federal do Brasil (artigo 3º, da Lei Magna).
4. Incabível ação direta de inconstitucionalidade por omissão. A omissão que se quer suprida não é de ato normativo.
5. Incabível ação civil pública. Não se busca responsabilização por danos morais e patrimoniais. Ação que não se destina a exercer controle de constitucionalidade.
6. A argüição de descumprimento de preceito fundamental possui particularidades e se destina ao controle concentrado de constitucionalidade.
7. Ratificação da viabilidade jurídica de propositura da argüição de descumprimento de preceito fundamental, para tornar efetivo o cumprimento integral do artigo 26, do ADCT.
1. Em razão de adequado e apropriado despacho do Presidente Roberto Busato, retornam os autos para deliberação final deste eg. Conselho, referente à sugestão de ajuizamento de argüição de descumprimento de preceito fundamental.
2. Em junho de 2003, o então em. Conselheiro Federal Paulo Lopo Saraiva protocolou, para deliberação deste eg. Conselho, indicação, no sentido de instar o Congresso Nacional a cumprir o artigo 26, do ADCT (f. 02). Designado relator o em. Cons. Marcos Bernardes Mello, emitiu voto pela aprovação do indicativo (f. 29/30). Como a matéria não foi apreciada por col. órgão plenário, e já não mais fazendo parte deste sodalício o em. Conselheiro, recebi a incumbência de relatar este processo, quando, então, em abril do fluente ano, proferi voto, também, pela aprovação da indicação, porém, acrescendo que deveria o Conselho Federal da OAB propor, perante o Supremo Tribunal Federal, argüição de descumprimento de preceito fundamental (f. 31/39). A manifestação aprobatória deste eg. Conselho se deu por unanimidade, em acórdão assim ementado:
3.
“Ementa n.º 03/2004/COP. “1. Impossibilidade do comando do artigo 26, do ADCT. 2. Eficácia plena da norma. 3. Omissão inconstitucional do Congresso Nacional. 4. Incidência do artigo 102, par. 1º, da Lei Maior. Aplicabilidade da Lei 9.882/99. 5. Ajuizamento de ação de descumprimento de preceito fundamental”. (f. 39).
3. Encaminhado o processo para formulação da petição inicial ao il. advogado Marcelo Mello Martins, argüiu dúvida sobre o cabimento da ação, em razão de: a) em tese poderia ser ajuizada ação civil pública, o que afastaria a possibilidade da ADPF; b) ainda que possível a ADPF, o STF não poderia dar “ordem ao Congresso”; c) “a conformação do artigo 26 do ADCT como preceito fundamental mostra-se frágil” (f. 41/42).
4. Diante disso, mediante cautela, o Presidente Roberto Busato solicitou ao Prof. Fábio Comparato apreciação sobre a divergência, assim se manifestando em correspondência: a) o fundamento da petição inicial estaria “no grau de endividamento externo”, afirmando-se que “mesmo antes de realizado o exame analítico e pericial, referido na citada disposição constitucional transitória, alega-se que a dívida externa contraída pelos nossos Poderes Públicos é irregular, pelo fato de ferir um preceito fundamental da Constituição, o qual outro não é senão o próprio art. 26 do ADCT”; b) não se indica “ninguém na posição de réu”, quando o sujeito passivo é o Congresso Nacional; c) não se pode argüir “omissão no cumprimento de preceito fundamental”. Por fim, sugere o em. Professor ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade por omissão (f. 81/83).
5. Por gentileza do Presidente Busato me foi encaminhada a manifestação do Prof. Comparato da qual discordei in totum, afirmando que: a) o fundamento da ação é o descumprimento do artigo 26, do ADCT, e não o endividamento externo; b) o pólo passivo, na argüição, está representado pelo Congresso Nacional; c) argüição de descumprimento de preceito fundamental pode ter por objeto omissão do poder público, não necessitando que seja, apenas, ato comissivo; d) é incabível a ação direta de declaração de inconstitucionalidade, porque não se busca, com a ADPF, a declaração de inconstitucionalidade de ato normativo, busca-se a efetivação de um ato concreto.
6. Após isso, o il. advogado Marcelo Martins apresentou ao em. Presidente três sugestões, posicionando-se o Presidente por encaminhar a matéria à Comissão de Estudos Constitucionais, que aprovou, por unanimidade, parecer do Prof. José Afonso da Silva, que, em síntese, sustenta: a) o artigo 26, do ADCT, “teve, pelo menos, um início de cumprimento com a instituição da Comissão no dia 16.3.1989 com a duração de funcionamento até 4.10.1989” (f.102). O Senado aprovou um relatório parcial, de autoria do Senador Severo Gomes, mas, não se tem informação de que a Câmara dos Deputados se tenha manifestado. Em seu sentir, “o Relatório Parcial produzido pela Comissão era suficiente para dar atendimento ao disposto no art. 26, cuja preocupação é com a regularidade da dívida, não com sua repercussão econômica que seria a matéria da segunda etapa da Comissão”. Afirma, então, o parecer: “O problema está aí, como fazer para reverter essa situação, pois isso investe uma questão política, qual seria a de impor ao Congresso Nacional decisão diferente da que ele tomou. Não é uma questão fácil. Estamos lidando com um Poder de Estado. A primeira observação que se pode fazer a esse respeito é que se trata de questão política, uma questão interna corporis” (f. 104). Adiante assevera o parecer: “Há, sim, uma norma constitucional que impôs ao Congresso Nacional tomar determinadas providências. O Congresso diante dela, como visto, não ficou totalmente inerte. Se sua decisão final não foi satisfatória ao interesse geral da cidadania, e certamente não o foi, não se vislumbra meio de impor-lhe outra conduta, até porque outros valores se antepõem a isso, e um deles, sem dúvida, é o da autonomia do Poder Legislativo, que só deve ceder diante do respeito aos chamados direitos subjetivos públicos, que, como se disse, não é o caso” (ibidem); b) afora esse entendimento, o parecer proclama que norma constitucional transitória não é, nem pode ser, preceito fundamental, em virtude justamente da transitoriedade; c) o objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental é “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público e que o parágrafo único do art. 3.º que a petição inicial deverá “conter cópias do ato questionado”, o art. 10 também fala em “autoridade ou órgão responsável pela prática dos atos questionados”. Isso mostra que essa ação é incabível no caso de inconstitucionalidade por omissão, já que ela visa exatamente a desconstituição de ato do Poder Público que desrespeite preceito fundamental, e não impor a ele prática de ato que lhe cumpria produzir e que, por omissão, não o fez” (f. 106); d) quanto à sugestão do Prof. Comparato de ajuizamento de ação direta de declaração de inconstitucionalidade, entende o parecer que esse tipo de ação é incabível in casu; e) conclui o parecer pela “inviabilidade de qualquer medida judicial com o objetivo de impor ao Congresso Nacional a recomposição da Comissão Mista ou mesmo a Comissão Parlamentar de Inquérito, criadas para os fins do art. 26 do ADCT, e declaradas extintas com o arquivamento do respectivo processo” ( f. 110).
7. Este é o impasse em que nos encontramos. Em síntese: o advogado Marcelo Martins entende que a ação cabível é a civil pública, o Prof. Comparato, ação direta de declaração de inconstitucionalidade por omissão e o Prof. José Afonso da Silva manifesta-se pela inviabilidade de qualquer ação judicial. Permanecemos nós, com todas as vênias de estilo e homenagens ao brilhantismo dos que defendem tese contrária, com o mesmo entendimento: a ação adequada é a argüição de descumprimento de preceito fundamental. Hoje, aliás, após as exposições daqueles que se pronunciaram, mais convencido estou de que a OAB não se deve omitir, mas, sim, levar à Corte Maior do Judiciário seu pleito, para que matéria de significação transcendente para a vida nacional receba tratamento adequado.
8. Em primeiro lugar, devemos analisar a argüição do Prof. José Afonso da Silva de que é incabível qualquer medida judicial, à vista de já ter havido instauração de Comissão Mista, que produziu um relatório parcial. Ao ver, pois, do em. Professor, a norma constitucional já se exauriu.
9. Assim não nos parece, permissa venia.
10. O artigo 26 do ADCT dispõe:
“No prazo de um ano a contar da promulgação da Constituição, o Congresso Nacional promoverá, através de comissão mista, exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro.
§ 1º - A Comissão terá a força legal de Comissão parlamentar de inquérito para os fins de requisição e convocação, e atuará com o auxílio do Tribunal de Contas da União.
§ 2º - Apurada irregularidade, o Congresso Nacional proporá ao Poder Executivo a declaração de nulidade do ato e encaminhará o processo ao Ministério Público Federal, que formalizará, no prazo de sessenta dias, a ação cabível”.
11. Instalada Comissão mista, foi escolhido relator o Senador Severo Gomes, que, em seu relatório parcial, registrou:
“Ao iniciar a fase de trabalhos voltada para os objetivos que determinaram sua formação, a Comissão aprovou, em reunião realizada em 20 de abril, um roteiro preliminar que dividiu as tarefas a seu cargo em duas etapas. Na primeira delas a Comissão examinaria as questões formais ligadas à contratação da dívida, como a constitucionalidade e a jurisdicidade dos acordos e de suas cláusulas.
Na segunda etapa seriam discutidos os aspectos econômicos propriamente ditos, como o crescimento geométrico da dívida e todo o elenco de conseqüências que daí advierem para nosso País.
A natureza desta Comissão, instalada por dispositivo constitucional, a distingue das demais em funcionamento no Congresso Nacional. Esta Comissão dispõe de ampla liberdade de funcionamento, embora procure situar-se dentro dos procedimentos previstos nos Regimentos Internos do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.
A Comissão decidiu, na reunião que aprovou o roteiro preliminar, manifestar-se através de relatórios parciais ao término do exame de cada um dos fatos que são objeto do inquérito. Essa é a razão de ser relatório sobre os aspectos legais da contratação da dívida” (f. 59/60).
12. Ora, está dito que a Comissão mista realizou a primeira fase dos trabalhos, referentes a “questões formais ligadas à contratação da dívida” , mas, não efetivou o “exame pericial do endividamento externo”, como exige o mandamento constitucional.
13. O próprio Prof. José Afonso reconhece que o “mandamento constitucional teve, pelo menos, um início de cumprimento com a instituição da Comissão no dia 16.3.1989 com a duração de funcionamento até 4.10.1989 (fls. 68), véspera de completar um ano da promulgação da Constituição” (f. 102). Adiante, pondera: “Além dessa consideração, é necessário ainda indagar se, no caso, ocorreu mesmo omissão do Congresso Nacional, especialmente tendo em vista que ele não ficou de todo inerte, a ter como corretas as informações dos autos” (f. 108).
14. Duas expressões, utilizadas no parecer do em. Professor, dão a exata medida do descumprimento da disposição constitucional: “início de cumprimento” da norma referida e o Congresso Nacional “não ficou de todo inerte”. Ora, isso significa dizer que a disposição constitucional foi cumprida pela metade e cumprimento desse tipo traduz descumprimento integral da norma. As normas constitucionais existem para serem cumpridas e não para serem aplicadas ao bel prazer do poder público. Uma constituição não é um “pedaço de papel” (ein Stück Papier), como queria Lassalle, ao proferir sua conferência no longínquo ano de 1862. Há de se fazer prevalecer o que Konrad Hess denominava “vontade de Constituição”, em sua Força normativa da constituição.
Se o Congresso Nacional cumpriu pela metade o dispositivo constitucional, é legítimo se afirmar que esse dispositivo não foi respeitado, até porque a imposição constitucional exige “exame analítico e pericial”. Tal não se deu.
15. Em razão disso, somos compelidos a dizer que a disposição constitucional sob enfoque ainda está por se cumprir. Se a norma é simbólica, tendo sido inserida, no Texto constitucional, como assevera o Prof. José Afonso, “para dar satisfação formal a certa corrente de pensamento ou a certo grupo de pressão, sem pretensão real de efetividade, ainda que seu proponente, de boa-fé, acreditasse na sua realização”, a todos nós nada importa. Interessa à sociedade a existência da norma constitucional e norma constitucional existe para ser cumprida e não para satisfazer a devaneios de proponentes, porque a cidadania não existe para ser receptáculo da simbologia alheia. E para isso existem os instrumentos da jurisdição constitucional.
Por essas razões, não podemos, nem devemos, aceitar o argumento respeitável, mas sem consistência jurídica, data venia, de que a norma já produziu seus efeitos jurídicos, estando esvaziada.
16. O outro aspecto que merece análise diz respeito ao argumento de que o artigo 26, do ADCT, não é um preceito fundamental.
17. Entende o Prof. José Afonso que “no art. 26 do ADCT transitória, não se manifesta um preceito fundamental”, até porque se trata de disposição transitória e “repugna à teoria constitucional admitir que uma disposição transitória, concreta, possa ter tal natureza” (f. 106).
18. A argüição de descumprimento de preceito fundamental nasce no parágrafo primeiro, do artigo 102, da Constituição Federal vigente, nesta formulação:
“A argüição de descumprimento de preceito fundamental decorrente desta Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei”.
Onze anos após a promulgação do Texto Magno, surge a Lei 9.882, de 3.12.1999, e não conceitua a expressão preceito fundamental. Tal foi deixado para a doutrina e a jurisprudência do STF, porque só esse órgão do judiciário tem competência para julgar argüição de descumprimento de preceito fundamental.
Andaram bem o constituinte e o legislador ordinário.
19. Doutrina André Ramos Tavares:
“Há de se considerar fundamental o preceito quando o mesmo apresentar-se como imprescindível, basilar ou inafastável. Por seu significado, pois, verifica-se que haverá uma coincidência com ponderável parcela dos princípios constitucionais. Não se esgota, porém, nestes, alcançando também algumas regras.
O postulado da unidade da Constituição em nada impede que se considere certa categoria de normas constitucionais como de especial relevância para todo o sistema jurídico. Assim, não há contradição alguma em elencar um rol de normas que se assume como fundamentais em relação às demais, e concomitantemente admitir a unidade da Constituição” (Argüição de descumprimento de preceito fundamental:análises à luz da lei n.º9.882/99,obra coletiva, p. 52).
Mas, o doutrinador aí não pára, quando analisa a expressão “preceito fundamental decorrente desta Constituição”, que se acha na norma constitucional, dizendo:
“Ademais, acentua-se, com a expressão empregada na norma constitucional, a possibilidade de utilização também de preceitos não explicitamente encontráveis no seio da Constituição. É que a decorrência pode dar-se direta ou indiretamente, explícita ou implicitamente. Assim, pode-se afirmar que a utilização daquela expressão acabou por revelar um dos aspectos que poderia, de outra forma, restar duvidoso, qual seja, a possibilidade de invocar-se preceito fundamental não expressamente desenhado na Constituição. A expressão decorrente espanta qualquer dúvida nesse sentido, embora não se esgote nesse conjunto de preceitos implícitos” ( op. cit., p. 54).
20. Em análise percuciente o Ministro Gilmar Mendes, doutrinariamente, antes da assunção da toga, afirmava:
“Nessa linha de entendimento, a lesão a preceito fundamental não se configurará apenas quando se verificar possível afronta a um princípio fundamental, tal como assente na ordem constitucional, mas também a disposições que confiram densidade normativa ou significado específico a esse princípio” (op. cit., capítulo Argüição de descumprimento de preceito fundamental: parâmetro de controle e objeto, p. 131).
21. Alexandre de Moraes doutrina:
“Os preceitos fundamentais englobam os direitos e garantias fundamentais da Constituição, bem como os fundamentos e objetivos fundamentais da República, de forma a consagrar maior efetividade às previsões constitucionais” (op. cit., capítulo Comentários à lei n.º 9.882/99 – argüição de descumprimento de preceito fundamental, p. 17).
22. A argumentação, por nós desenvolvida, é de que o artigo 26, do ADCT, está imbricado com princípios fundamentais, porque regular ou irregular, lícito ou ilícito, o endividamento externo brasileiro atinge princípios básicos. Está no voto, por nós proferido, condutor do acórdão:
“Essa norma, cuidando da necessidade de se avaliarem fatos e atos que geraram o endividamento externo do país, está intimamente vinculada a princípios fundamentais como soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, que são fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º). Diz respeito, também, aos objetivos fundamentais de nossa República, que almeja a construção de uma sociedade livre, justa e democrática, que busca a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, com redução das desigualdades sociais e regionais e, por fim, que pretende a promoção do bem de todos, sem preconceitos (artigo 3º, da Constituição Federal).
A dívida externa brasileira é um foco constante de empobrecimento da sociedade brasileira, de ofensa à soberania do país. O brasileiro perde a dignidade, quando não se abrem oportunidades de emprego ou quando se dedica a atividades informais, que não atingem o mínimo ético. Com essa dívida, o país jamais trilhará no caminho de seus objetivos fundamentais” ( f. 37).
23. O Prof. José Afonso se utiliza de argumento, asseverando que não aceita que “uma norma temporária possa se revelar como preceito fundamental” (f. 106), olvidando-se da afirmativa do voto, onde se demonstra a aludida imbricação da norma temporária com princípios básicos e fundamentais da nossa República, atingindo, inclusive, seus objetivos.
24. Logo, não se cuida de ler, apenas, o artigo 26, do ADCT, mas, sim, sua íntima vinculação com preceitos fundamentais de nossa República. Mas, não é só. A desqualificação da norma constitucional transitória, efetivada pelo ilustre professor, não se justifica. Não é aceitável que, de forma generalizada, se afirme que uma norma temporária não possa conter preceito fundamental, ou ter íntima relação com esse tipo de preceito.
25. O Ministro Celso de Mello teve oportunidade de afirmar, no RE 161.462-5/SP, pub. no DJU de 10.08.95:
“O ADCT, promulgado em 1988 pelo legislador constituinte, qualifica-se, juridicamente, como um estatuto de índole constitucional. A estrutura normativa que nele se acha consubstanciada ostenta, em conseqüência, a rigidez peculiar às regras inscritas no texto básico da Lei Fundamental da República. Disso decorre o reconhecimento de que inexistem, entre as normas inscritas no ADCT e os preceitos constitucionais da Carta Política, quaisquer desníveis ou desigualdades quanto à intensidade de sua eficácia ou à prevalência de sua autoridade. Situam-se, ambos, no mais elevado grau de positividade jurídica, impondo-se, no plano do ordenamento estatal, enquanto categorias normativas subordinantes, à observância compulsória de todos, especialmente dos órgãos que integram o aparelho do Estado”.
26. Por outro lado, é de se afirmar que a concessão de anistia aos que foram atingidos por atos de motivação exclusivamente política, no período de 18 de setembro de 1946 até à data de promulgação da Carta de regência, resulta de uma norma transitória (artigo 8.º), que, a nosso sentir, é um preceito fundamental, no que pertine com princípios básicos do Estado democrático de direito.
27. A outra argumentação do Prof. José Afonso é de que a argüição de descumprimento de preceito fundamental é incabível “no caso de inconstitucionalidade por omissão, já que ela visa exatamente a desconstituição de ato do Poder Público que desrespeite preceito fundamental, e não impor a ele prática de ato que lhe cumpria produzir e que, por omissão, não o fez” (f. 106).
28. Mais uma vênia.
29. A Lei 9.882/99, que dispôs sobre processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, permite dois tipos de argüição: autônoma e incidental. Esta última cuida de controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição (par. ún., inc. I, do art. 1.º) O tipo autônomo tem por objeto “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público” (artigo 1.º).
30. Com a devida vênia, não faz sentido se afirmar que esse ato do Poder Público seja, apenas, comissivo, excluindo-se o ato omissivo. A interpretação do em. professor não distinguiu os dois tipos de argüição de descumprimento.
31. As omissões do Poder Público ganham ressonância inigualável, no meio social. Não são os atos comissivos os que mais prejudicam a cidadania, mas, seguramente, as omissões. Não teria qualquer sentido que a norma constitucional ou a norma legal fossem excluir do âmbito da argüição de descumprimento as omissões, que, por vezes, são mais lesivas do que os atos comissivos.
32. Em abono da tese, aqui defendida, o magistério dos professores Daniel Sarmento e Roberto Mandelli Júnior, com transcrições de pensamento, às f. 85, quando rebatemos argumento do Prof. Comparato. Também, do Prof. André Tavares, quando diz:
“Sem se retomar a noção já declinada aqui quanto ao conteúdo do descumprimento, vale ressaltar apenas que, ao contrário da inconstitucionalidade em sentido restrito, limitada aos atos normativos, o descumprimento pode referir-se a atos materiais e a omissões, ou seja, a aspectos fáticos, que não honrem o compromisso constitucional. Aliás, este é inclusive o primeiro de seus significados, como visto” (op. cit., capítulo Arguição de descumprimento de preceito constitucional: aspectos essenciais do instituto na constituição e na lei, p. 73).
A doutrina é, pois, pela possibilidade de se ter como objeto da argüição de descumprimento ato omissivo. O mesmo entendimento se pode afirmar, em relação ao STF, porque permite a possibilidade, não havendo, v.g., hipótese de inconstitucionalidade por omissão.
33. Outra argüição a se considerar.
34. Refiro-me à sugestão do Prof. Fábio Comparato de propositura de ação direta de inconstitucionalidade por omissão, a matéria contraria a jurisprudência do STF e a doutrina, porque a omissão não diz respeito a ato normativo.
Contraria o entendimento do em. Professor jurisprudência do STF. Na ADIN 19-5, Rel. Ministro Aldir Passarinho, restou assentada esta ementa:
“Ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º da C.F.).
A ação direta de inconstitucionalidade por omissão, de que trata o § 2º do art. 103 da nova C.F., não é de ser proposta para que seja praticado determinado ato administrativo em caso concreto, mas sim visa a que seja expedido ato normativo que se torne necessário para o cumprimento de preceito constitucional que, sem ele, não poderia ser aplicado”.
No caso vertente, o objetivo não é a expedição de qualquer ato normativo. Ao contrário!
35. Quanto à sugestão do il. advogado Marcelo Martins de propositura de ação civil pública, não há respaldo jurídico.
36. Está na dicção do artigo 1.º, da Lei 7.347, de 24.07.1985:
“Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados”.
Em seguida mencionam-se os diversos objetos de proteção, em seis incisos.
37. Vê-se, pois, que se cuida de se apurar responsabilidade daqueles que causaram danos morais ou patrimoniais. Não é o caso da argüição de descumprimento de preceito fundamental.
38. A argüição de descumprimento é um tipo de controle concentrado de constitucionalidade, o que não ocorre com a ação civil pública, daí a lúcida observação do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, quando assevera: “... para que não se chegue a um resultado que subverta todo o controle de constitucionalidade adotado no Brasil, tem-se de admitir a completa inidoneidade da ação civil pública como instrumento de controle de constitucionalidade, seja porque ela acabaria por instaurar um controle direto e abstrato no plano da jurisdição de primeiro grau, seja porque a decisão haveria de ter, necessariamente, eficácia transcendente das partes formais” (apud Hermenêutica e jurisdição constitucional, cap. Algumas considerações em torno da argüição de descumprimento de preceito fundamental, de Cibele Dias e Clèmerson Clève, Del Rey, Belo Horizonte, 2001, p. 1 e 2).
Por outro lado, a subsidiariedade há de ser eficaz e idônea, como tem entendido o STF.
Tal restou apreciado na ADPF 17-3, sendo Rel. Ministro Celso de Mello:
“O ajuizamento da ação constitucional de argüição de descumprimento de preceito fundamental rege-se pelo princípio da subsidiariedade (Lei nº 9.882/99, art. 4º, § 1º), a significar que não será ela admitida, sempre que houver qualquer outro meio juridicamente idôneo apto a sanar, com efetividade real, o estado de lesividade emergente do ato impugnado. Precedentes: ADPF 3/CE, ADPF 12/DF e ADPF 13/SP.
A mera possibilidade de utilização de outros meios processuais, contudo, não basta, só por si, para justificar a invocação do princípio da subsidiariedade, pois, para que esse postulado possa legitimamente incidir – impedindo, desse modo, o acesso imediato à argüição de descumprimento de preceito fundamental – revela-se essencial que os instrumentos disponíveis mostrem-se capazes de neutralizar, de maneira eficaz, a situação de lesividade que se busca obstar com o ajuizamento desse writ constitucional.”
Ainda que cabível, ad argumentandum tantum, ação civil pública, haveria ineficaz substituição, com real efetividade.
39. Por fim, não podemos deixar de concluir sem afirmar que a argüição de descumprimento de preceito fundamental é instrumento novo, em nossa ordem jurídica, que guarda similitude com o recurso constitucional do direito germânico e o recurso de amparo espanhol. A disciplina legal é de 1999. Cuida-se de controle concentrado de constitucionalidade e possui particularidades. Necessariamente, não há por que existir parte ré. A Lei 9.882/99 não prevê citação, mas, apenas informações que o Ministro relator colherá. A estranheza do Prof. Comparato e do il. advogado Marcelo Martins, quando a argüição se dirige contra o Congresso Nacional, não se justifica. Há quem, como Georghio Tomelin, entenda até não se tratar de ação (Estudos de direito constitucional em homenagem a Jose Afonso da Silva, capítulo Argüição de descumprimento de preceito fundamental: instrumento para uma remodelada “interpretação autêntica” dos direitos fundamentais, Malheiros Ed., p. 670).
E se formos analisar a recente ADPF, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS, na qual o Ministro Marco Aurélio concedeu liminar, a respeito de interrupção de gravidez de fetos anencefálicos, ver-se-á que inexiste réu e, obviamente, não houve pedido de citação.
40. A argüição de descumprimento de preceito fundamental não pode sofrer interpretação restritiva pela OAB. Se a Corte Suprema encontrará obstáculo à edição de um decisum, veiculador de obrigação de fazer, dirigido ao Congresso Nacional, receio do Prof. José Afonso, seguramente não será invocável o princípio de independência e harmonia dos poderes, porque a própria Carta Maior impõe que nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito pode ser subtraída à apreciação do Judiciário, parta de onde partir (artigo 5.º, XXXVI).
41. Bem o disse o Prof. Lenio Streck, quando defendendo o uso do instituto da argüição e propugnando por uma nova hermenêutica jurídica, afirmou:
“...os juristas brasileiros não podem (continuar a) se comportar como o sujeito que está à beira do Vesúvio prestes a entrar em erupção. As lavas (da crise social) cobrirão a tudo e a todos, e, ao invés de construírem barreiras para evitar que as lavas cubram suas casas e a cidade, nossos juristas ficam tranqüilos, tratando de arrumar o quadro de Van Gogh na parede... Ou, nas belas palavras do contista mexicano Eráclio Zepeda – e nada melhor do que a poesia para nos falar das coisas do mundo –, “quando as águas da enchente derrubam as casas, e o rio transborda arrasando tudo, quer dizer que há muitos dias começou a chover na serra, ainda que não nos déssemos conta” (Hermenêutica e jurisdição constitucional, Del Rey, capítulo Os meios e acesso do cidadão à jurisdição constitucional, a argüição de descumprimento de preceito fundamental e a crise de efetividade da constituição brasileira,p. 291).
42. Não podemos olvidar que Rui Barbosa, com persistência do advogado intimorato, foi o artífice maior da denominada teoria brasileira do habeas corpus, na República velha, ao utilizar-se do mencionado remedium juris, em defesa de direitos não estritamente referentes à liberdade física, ou seja, o jus manendi, veniendi, ambulandi, eundi ultra citroque, como direito de publicar, na imprensa brasileira, seus discursos parlamentares, em plena vigência de estado de sítio, em 1914, a preservação da vitaliciedade dos desembargadores do Estado do Amazonas, e tantos outros. E aí vale a asserção do nosso patrono, em discurso pronunciado, em 1903, na tribuna do Senado Federal: "Tenho advogado muitas causas perdidas, boas causas, que se vencem depois, com o tempo, quando não prestam mais para glorificar o seu advogado; mas, ainda assim, servem para beneficiar aos meus semelhantes, e é quanto basta" (apud Rubem Nogueira, O advogado Rui Barbosa, 1996, 4.ª ed., Ed. Ciência Jurídica, p. 95)
43. Juridicamente, pelos ângulos constitucional e processual, viável a proposta de argüição de descumprimento de preceito fundamental. Ninguém, no entanto, pode garantir, por resultado, mas, pode, sim, proclamar que a matéria está analisada, possui juridicidade, e está apta a cumprir sua missão. Com isso a OAB está a dizer que postula pela cidadania, pretendendo respeito às normas constitucionais, para que um dia a história não registre sua omissão, diante da gravidade de um endividamento externo, conspurcador de qualquer objetivo da República Federativa do Brasil.
É o voto.