OAB defende abertura de arquivos para passar história a limpo
Brasília, 26/10/2004 - O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato, defendeu hoje (26) a ampla abertura dos arquivos dos órgãos de investigação dos tempos da ditadura militar (64-84) para possibilitar à população o conhecimento sem restrições da história desse período. “O que se precisa é colocar a história a limpo neste País”, afirmou Busato, observando que para isso a democracia brasileira está suficientemente madura e deu mostras disso na discussão do episódio da divulgação das fotos do jornalista Vladimir Herzog, sendo humilhado antes aparecer morto em 1975 nas dependências do DOI-CODI, em São Paulo.
“O país está maduro para discutir esse acontecimento, que não ilustra a história do País, e maduro porque mostrou realmente a serenidade tanto das autoridades civis quanto militares no tratamento do assunto”, disse Busato, durante entrevista concedida hoje ao Jornal do Terra, do site Terra. Segundo ele, a sociedade demonstrou que pode fazer a abertura dos arquivos dos tempos da ditadura sem revanchismos nem traumas. ”É por isso que eu acho, dentro da linha do meu raciocínio, que nós deveríamos prosseguir nessas investigações e verificar, exatamente, o que existiu e o que existe ainda não revelado para a população brasileira”, afirmou ele.
Veja, a seguir, a íntegra da entrevista do presidente da OAB ao Jornal do Terra:
P- Quais as decisões que precisam ser tomadas nesse caso? A abertura ampla dos arquivos?
R- Não vejo porque não se propiciar uma investigação ampla. Esse recente episódio que ocorreu, como essa nota mal formulada pelo Exército, que depois vindo o a falar novamente através de seu comando, colocando as coisas em ordem, mostrou realmente que o estado democrático brasileiro está maduro. Maduro para discutir esse acontecimento, que não ilustra a história do País, e maduro porque mostrou realmente a serenidade tanto das autoridades civis quanto militares no tratamento do assunto.
P - O sr. acredita que quando o Exército se referiu a revanchismo abrir os arquivos a essa altura da história, pode-se encarar dessa forma?
R -Entendo que não. Tanto é que o próprio Exército desdisse essa posição posteriormente. Não se trata de revanchismo. Trata-se de se ter certeza do que realmente ocorreu nos casos daquela época para que esses fatos não se repitam nunca, jamais no Brasil - um país que não tem essa vocação de País com perseguições políticas e perseguições de toda ordem.
P- Dr. Busato, o sr. crê que exista por trás desse episódio algum tipo de intenção não declarada, já que apenas três fotos foram colocadas no material que aquele cabo do Exército apresentou à comissão de Direitos Humanos?. Segundo a Folha de São Paulo, de uma série de trinta fotos - que identificavam claramente o padre canadense - ou seja, as fotos que foram parar no tal pacote de documentos do cabo, eram fotos que ficam difícil de identificar a pessoa. E depois de tanto tempo essa história ressurge e provoca uma nota, que foi apresentada como uma espécie de resposta automática do Exército. Fico imaginando que máquina foi que criou essa resposta automática tão dura e tão contundente.
R - É verdade, isso chama bastante a atenção e é um pouco estranho o modo como aconteceu. Veja que hoje o Correio Braziliense mostra outras minúcias falando até em participação dos órgãos repressivos e de investigação da ditadura por ocasião de eleições na própria Ordem dos Advogados do Brasil. Acredito que isso mostra mais uma vez, reforça mais uma vez, a necessidade de botar tudo isso às claras. A quem interessa esse vazamento de informações de tempos em tempos. E é evidente que o caso Vladimir Herzog é o caso mais emblemático da quebra dos direitos civis naquela época. É por isso que eu acho, dentro da linha do meu raciocínio, que nós deveríamos prosseguir nessas investigações e verificar, exatamente, o que existiu e o que existe ainda não revelado para a população brasileira.
P - O sr. acredita que haja mais documentos do que aqueles que o Exercito admite?
R - Acredito que sim. Tanto é que houve as primeiras informações, as primeiras fotos, hoje surgem outras. Será que não existem outras (fotos) aguardando a vez de serem divulgadas? Acho que é muito simples: é preciso ter tranqüilidade, serenidade, porque não há tabu nisso, não há revanchismo nisso. O que se precisa é colocar a história a limpo neste País.
P - O sr. acha que só as famílias deveriam ter acesso a esses documentos, ou isso deveria ser analisado por uma comissão mais ampla e com mais setores da sociedade?
R - Acredito que a situação ocorrida no Brasil naquela época atingiu toda a sociedade brasileira, toda a cidadania brasileira, de modo que eu acho que a investigação deveria ser ampla e restrita.
P- A falta da investigação e do repúdio à tortura em qualquer situação, naquela época da história do Brasil, faz com que hoje a tortura ainda seja praticada de uma forma muito aberta no País?
R - Nós temos hoje um clima de exclusão social muito grande, temos muitos problemas nessa ordem, a própria ONU - cujo representante esteve recentemente e com quem a OAB esteve ontem (25) -Ele próprio at estou que existe uma quebra de garantias principalmente com relação aos mais desprotegidos. Onde existem camadas de exclusão existem maiores problema de tortura. Esse problema existe não com fundo político, mas de fundo social. E na falta de melhores condições científicas por parte da polícia, a tortura existe e existe até mesmo em nosocômios hospitalares para deficientes mentais. E é um assunto sobre o qual a OAB vem se debruçando, principalmente a Comissão Nacional de Direitos Humanos, que tem denunciado esse fato à Nação.
P - O caso do jornalista Vladimir Herzog é um dos raros casos de tortura e morte em dependências militares, aonde a questão do ponto-de-vista judicial já foi resolvida. Já houve inclusive responsabilização do Exército. Finalmente, do ponto de vista jurídico, a coisa não se modificaria em função de foto ou de outra. Isso, de alguma maneira, facilita que esse processo siga adiante em busca da verdade, já que não provocará nenhum tipo de efeito prático?
R -Sem dúvida. E continuando na sua própria observação, o caso Vladimir Herzog é um caso emblemático. Talvez o mais emblemático de todos aqueles que foram vitimados por sevícias e torturas dentro de cárceres militares. Lembro até que a OAB, através de seu presidente da época, Raymundo Faoro, a Ordem teve uma posição muito pragmática e muito sábia. Quanto o presidente Ernesto Geisel chamou o presidente da Ordem, dizendo que pretendia redemocratizar o País e disse que talvez fosse a hora de uma nova Constituição. Faoro disse na hora ao general Ernesto Geisel: “basta apenas que o senhor restabeleça o hábeas corpus, porque restabelecendo o hábeas corpus não haverá clima nem haverá coragem daqueles que estão torturando nos cárceres militares, nem terão coragem de segurarem quem quer que seja dentro dos presídios. E aos poucos a redemocratização desse país vai acontecer”. Isto feito, nós vimos que realmente a redemocratização do País acabou ocorrendo e hoje, repito, a sociedade já está madura para discutir seus fatos históricos. Realmente, o caso Vladimir Herzog poderia ser reaberto porque é um caso emblemático, um caso que juridicamente está resolvido e poderia sem traumas dar um aspecto didático, para que não caiamos mais nos erros que foram cometidos naquela ocasião.
P - O sr. acredita que agora, no governo Lula, essa será a decisão tomada?
R - O presidente da República está na nítida posição de não enfrentamento do problema. Ele teve uma participação no meu modo de ver bastante positiva, quando chamou a si a responsabilidade de colocar ordem na casa naquela semana quando se começava um bate-boca entre a sociedade civil e o Exército por ocasião daquela primeira nota (do caso das fotos). O presidente ali foi bastante eficaz nesse sentido. Mas agora colocar panos quentes nessa situação, como se nada tivesse ocorrido. Acho que não faz parte do passado e tradição tanto do presidente da República quanto de seu partido, de não querer enfrentar esse problema do qual vários de seus integrantes foram vítimas.
P - O fato de ninguém ter sido exonerado por conta da primeira nota (do Comanmdo do Exército) e ninguém ter sido demitido também, por falta de consulta ao ministro José Viegas, contribui para esse clima?
R - Não, acho que não nesse aspecto da penalidade. Acho que teria que se prosseguir na busca de uma informação melhor perante a sociedade. Acredito que todos estão querendo demonstrar exatamente a serenidade e a maturidade de entender os fatos como eles ocorreram, mas sem a procura de caças às bruxas. O que se quer é saber o que ainda existe de escondido nos porões dos órgãos de investigação deste País.