OAB e CFP apresentam balanço nacional da blitz a manicômios
Brasília, 16/08/2004 - Os presidentes da Comissão nacional de Direitos Humanos da OAB, José Edísio Simões Souto, e do Conselho Federal de Psicologia, Marcus Vinícius de Oliveira, apresentaram hoje (16), na sede da OAB, o balanço nacional da blitz realizada em 38 hospitais psiquiátricos de 16 Estados e mais o Distrito Federal. Segue a íntegra da apresentação e prefácio do relatório:
“Temos assistido à progressiva deterioração de um sistema que nunca foi perfeito, sobretudo pelo fato de a sociedade preferir esconder o problema a enfrentá-lo, afinal, a questão dos portadores de transtornos mentais, ignorada na maioria das discussões, mesmo em setores progressistas, vem se tornando uma chaga aberta.
A situação do habitantes dos hospitais de tratamento psiquiátrico ofende os valores humanistas mais comezinhos. Trata-se de uma parcela de nossa população que, muitas vezes, é abandonada à própria sorte por suas famílias. Todavia, esse fato não deveria nos assombrar, afinal vivemos em uma sociedade em cuja base reina a crise nas relações familiares, a privação de educação e a ignorância de noções básicas de cidadania; seria absurdo não reconhecer o pragmatismo duro que rege as relações privadas entre pessoas cuja única preocupação é o próximo prato de comida.
O que devemos repelir abertamente é o fato de o Estado, tutor de nossa organização política e dos nossos valores, mantido pelo trabalho da sociedade, virar as costas para uma parcela da população já tão esquecida. E o faz violando a lei. Nosso sistema jurídico atribui o dever de que determinados agentes públicos acompanhem e zelem pela saúde e bem estar das pessoas portadoras de transtornos mentais, sobretudo, os concentrados em instituições judiciárias. Não apenas os administradores do Sistema de Saúde, mas juízes, membros do Ministério Público e Defensores Públicos, todos são responsáveis pela fiscalização e cobrança quanto à prestação de condições dignas aos internados.
Os dados revelados pelo relatório final sobre a Inspeção Nacional em Unidades Psiquiátricas em prol dos Direitos Humanos, realizada pelo Conselho Federal de Psicologia e pela Ordem dos Advogados do Brasil, são desconcertantes e rechaçam nossas ilusões quanto à eficiência de nosso sistema democrático. Um professor estrangeiro importante, em recente conferência jurídica, disse, a respeito de países como o Brasil, que a democracia é uma forma de estado que, no plano da ética política, não é compatível com a exclusão; legitima-se, em primeiro lugar, a partir do modo pelo qual ela trata as pessoas que vivem no seu território. E devemos aproveitar esse relatório para dizer com todas as letras que não temos feito nosso trabalho. Portanto, esse é o momento do Estado, por meio de seus agentes com poder de decisão, responder à demanda que se apresenta, não porque parcelas significativas do povo a apresentem, afinal estamos falando de pessoas sem voz, mas com o objetivo de concretizar o projeto de nação solidária que a Constituição de 1988 nos oferece.
Prefácio
Este relatório é o resultado de uma ação conjunta entre o Conselho Federal de Psicologia e a Ordem dos Advogados do Brasil, que, com a colaboração das suas sedes regionais e com a presença inestimável de muitas outras entidades e profissionais de outras áreas, realizaram, no mês de julho de 2004, um conjunto de inspeções em visitas a hospitais psiquiátricos, clínicas psiquiátricas e manicômios judiciários em 16 estados da federação e no Distrito Federal.
O texto que apresentamos à consideração pública neste momento é, por certo, bastante desigual. Ele reflete as diferentes sensibilidades das equipes formadas em cada estado, sua maior ou menor intimidade com os procedimentos necessários a uma inspeção meticulosa e atenta aos detalhes mais relevantes, sua maior ou menor adesão aos ideais históricos da Reforma Psiquiátrica, e mesmo a uma concepção radical em favor dos Direitos Humanos. Reflete também esforços diferenciados e as disponibilidades distintas alcançadas por cada equipe de visitação. Tudo isso deveria apontar para a emergência de um retrato muito variado em cada estado. O que poderemos confirmar, neste relatório, não obstante, é a revelação de uma realidade absurdamente semelhante em grande parte dos relatos.
De fato, o que verificamos é que a gravidade das circunstâncias asilares encontradas pelas equipes nos estados, acompanhadas, em regra, pelas práticas de abuso medicamentoso, negligência, abandono e negação dos direitos civis dos pacientes são tão estridentes que terminaram conferindo aos textos enviados pelos estados uma impressionante e perturbadora uniformidade.
Nem todas as unidades visitadas foram descritas como masmorras; nem todas as instituições reproduzem os mesmos métodos de exclusão ou cedem diante das praxes tipicamente manicomiais. Todas elas, não obstante, apresentam carências graves e em todas é possível sentir a forte presença de uma tradição fundada na negação dos Direitos Humanos dos pacientes psiquiátricos.
O que este relatório confirma são as mais pessimistas intuições dos ativistas comprometidos com a efetividade da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Em verdade, nosso país avançou muito nos últimos anos na aprovação de leis garantidoras, inspiradas pelo movimento em favor da humanização das instituições de atenção à saúde mental. Do ponto de vista institucional, temos, então, razões de sobra para comemorar a emergência de novos instrumentos legais comprometidos com os direitos civis dos pacientes psiquiátricos. Eles assinalaram conquistas importantes que não podem ser subestimadas e que refletem, de alguma forma, um amadurecimento alcançado pela própria sociedade civil organizada. Ocorre que tais conquistas não são suficientes.
Se os governos não manifestam a determinação necessária para a efetivação da reforma, se os recursos necessários aos novos investimentos na área escasseiam, se os profissionais que trabalham nas instituições de internação não são permanentemente estimulados, capacitados e tensionados, a tendência alimentada pela inércia é a reprodução bruta e silenciosa do modelo manicomial, pelo que se começa a minar as próprias conquistas já mencionadas.
Que este relatório sirva, então, como um alerta geral capaz de mobilizar as forças da reforma e sensibilizar o Governo Federal e os governos dos estados e municípios para os desafios urgentes que temos pela frente. Não estaremos satisfeitos com compromissos discursivos, nem com a reiteração de noções genéricas ou promessas de solidariedade. Os pacientes, seus familiares e todos aqueles que lutaram e que seguem lutando pela Reforma Psiquiátrica exigem gestos e ações concretas que assegurem a Lei e a plena vigência do Direito. Isto é o mínimo que aceitaremos”.