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Entrevista com Ophir Cavalcante: Tudo em ordem

segunda-feira, 3 de setembro de 2012 às 11h22

Brasília – O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante, concedeu entrevista à Revista Brasília em Dia, na qual examinou temas atuais do panorama jurídico nacional, entre eles o julgamento do "Mensalão", o novo Código Penal e a Lei Complementar 135/10, mais conhecida como Lei da Ficha Limpa. A entrevista é assinada pela repórter Rebeca Oliveira. Segue a sua íntegra:

Que se faça justiça, sem olhar quem está sendo julgado. É dessa maneira que pensa e atua o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil nacional, Ophir Cavalcante Filgueiras Junior. No cargo, desde 2010, Ophir já demonstrou que seu interesse é lutar pela democracia, independentemente de bandeiras partidárias ou ideológicas.
 

De prontidão desde que foi estabelecida, com a Carta de 1934, coube a OAB trazer uma dinâmica a tudo que envolve a jurisprudência brasileira. Na entrevista a seguir, ele examina temas atuais do panorama jurídico nacional, entre eles o julgamento do "Mensalão", o novo Código Penal e a Lei da Ficha Limpa. "Quando o sinal de trânsito fica vermelho, por exemplo, não importa o modelo do automóvel nem quem está nele dirigindo; a mensagem é clara: deve parar. Da mesma forma, temos de acreditar - e defender - num sistema de leis que não comportem privilégios", declara o advogado, que ficará no cargo até o próximo ano.
 

Em um país com mais de cinco séculos de história, alguns pontos ainda comprometem a igualdade no acesso à educação, informação, serviços básicos e Justiça. Esta é uma das lutas de Ophir Cavalcante, mestre e bacharel em Direito, que carrega no sangue a arte de advogar. Filho de Ophir Filgueiras Cavalcante, que presidiu a OAB nacional entre 1989 e 1991, o atual presidente defende, ainda, o fim da impunidade, um prejuízo ao Brasil, que estimula a atividade de criminosos e dá ao cidadão a sensação de desamparo.
 

P - Atualmente, são mais de 350 mil servidores em greve no país. Seria um problema de gestão ou as reivindicações estão fora de contexto?
R - A situação é delicada, principalmente se levarmos em conta que o país é administrado por um partido que tem no movimento sindical seu principal esteio. Logo, dá para perceber, de um lado, interesses contrariados, e, de outro, um governo que procura esticar a corda ao seu ponto máximo. No meio disso tudo está o cidadão. Em determinado momento, a greve atingiu um ponto preocupante, com contornos de intolerância e radicalização, principalmente depois que vimos - e vivenciamos - situações de constrangimentos nos aeroportos e nas estradas, com bloqueios e outras práticas de intimidação. Isto, não podemos tolerar. A greve é uma forma de pressão legítima e um direito constitucional dos trabalhadores, mas devem ser observados os limites da lei. Por tudo isso, torna-se urgente estabelecer um canal de negociação entre governo e os servidores para pôr um fim a esse tipo de movimento.
 

P - Já era hora de criminalizar o bullying, um dos maiores problemas sociais do país?
R - Antes de pensarmos em criminalizar, devíamos fazer um esforço maior no sentido de educar. O grande criminalista Evandro Lins e Silva, já falecido, aconselhava o governo a redirecionar as verbas destinadas a construir presídios para levantar mais escolas. Só que não tem sido assim. O bullying é um termo novo, mas o problema é antigo e já devia ter sido alvo de políticas efetivas de educação, ao invés de se transformar em matéria penal apenas porque está na moda. Na verdade, diante de um quadro de violência que só cresce, nossos legisladores procuram satisfazer o anseio social aprovando novas formas de punir, mas pouco fazem para atingir a raiz do problema da criminalidade, que é a falta de oportunidade, de um lado, e a educação, do outro. Além disso, outra forma efetiva de reprimir a criminalidade é acabar com a impunidade. É a impunidade que estimula a atividade do criminoso e dá ao cidadão honesto a sensação de desamparo.
 

P - O que o senhor espera do julgamento da Ação Penal 470, o mensalão?
R - Espero o que todo cidadão espera da mais alta Corte de Justiça do país: que se faça justiça, sem olhar quem está sendo julgado. O princípio segundo o qual todos são iguais perante a lei nunca esteve tão vivo como agora.
 

P - Os advogados dos 37 réus estão agindo bem?
R - Os advogados constituídos para esse caso, a nosso ver, estão atuando como se espera de profissionais do Direito, de acordo com os postulados éticos e na estrita observância de suas funções. Importante lembrar que o advogado é indispensável à administração da Justiça, e que no exercício de sua missão deve atuar com independência e autonomia, de modo a assegurar a efetivação de um julgamento justo. Não há reparos a fazer.
 

P - O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso declarou que a tendência é que todos sejam condenados. Essa pressão da opinião pública ajuda ou atrapalha os ministros do Suprem Tribunal Federal (STF)?
R - Não há dúvida que este julgamento é paradigmático para o Supremo, até mesmo pelo volume de processos examinados de uma única vez, e da forte expectativa que se formou na opinião pública. Mas daí dizer que os ministros serão influenciados pela pressão popular seria reduzir o julgamento a uma partida de futebol. Há maturidade suficiente nos ministros do STF para me levar a crer que as decisões serão tomadas respeitando-se o contraditório, e, portanto, serão de natureza técnica, não política.
 

P - Acredita que a sobrecarga de trabalho no Judiciário compromete este e outros processos?
R - Na verdade, bem antes de ser fixado o calendário dessa ação penal, mais precisamente em junho, enviamos um ofício ao presidente do Supremo, ministro Carlos Ayres Britto, manifestando preocupação com o andamento de outros processos que, literalmente, encalharam no tribunal. Apesar de reconhecermos a elevada carga de trabalho atribuída a cada ministro, o julgamento do chamado "mensalão" atropelou temas importantes. O preceito fundamental da razoável duração do processo, convenhamos, não vem sendo observado há muito tempo. Só da Ordem dos Advogados do Brasil eu poderia citar mais de uma dezena de Ações Diretas de Inconstitucionalidades que estão na fila, sem data para julgamento. E todas de grande importância para a sociedade, tratando de matérias como precatórios não pagos pelo Estado, da Lei da Anistia, sobre quebra de sigilo bancário, do controle externo da atividade policial, de pensão a ex-governador, dentre outras, só para citar alguns exemplos.
 

P - Podemos dizer que existe um Brasil antes e outro depois do mensalão?
R - Para a OAB, o julgamento da Ação Penal 470, conhecida como mensalão, é um momento de reafirmação do Supremo Tribunal Federal como salvaguarda do Estado democrático de Direito. Prefiro acreditar que será uma página a mais na história de um tribunal que já tem mais de 200 anos de história e que passou por momentos importantes de nossa história. No entanto, reconheço que para a geração contemporânea, este é um momento importante, como foi também o impeachment do presidente da República em 1992.
 

P - O ex-presidente Lula afirmou que não iria acompanhar o julgamento do mensalão. Não é um péssimo exemplo em um país onde falta educação cívica?
R - O ex-presidente, nesse caso, está exercendo um direito que é próprio a qualquer cidadão.
 

P - O que pensa sobre uma nova composição do STF, com 15 ministros em vez de 11, como alguns juristas propõem e como já foi no século passado?
R - O modelo de composição do Supremo Tribunal não é obra do acaso, é resultado de mais de dois séculos de experiência, discussões e análises de constituições de outras nações democráticas, avaliando as vantagens e desvantagens de cada modelo. Então, quando se fala em mudar, é preciso levar tudo isso em conta, em especial que é imprescindível, em um Estado democrático de Direito, a existência de um controle garantidor dos direitos fundamentais dos cidadãos. Nos Estados Unidos, a composição da Suprema Corte é de nove juízes. Aqui mesmo no Brasil, já chegou a ter 16, curiosamente um número par, durante o regime militar. A composição atual, de 11, me parece razoável.
 

P - Outros também defendem a fixação de mandatos para cada ministro. O senhor concorda com essa mudança estrutural?
R - Aí é outra história. Embora o sistema tenha freios e contrapesos (o presidente da República nomeia e o Senado referenda), isso se mostra pró-forma, apenas para cumprir requisito constitucional. Os escolhidos, em última análise, são aqueles que contam com a simpatia do chefe do Executivo. Não estou dizendo que não sejam renomados. Mas fica muito poder para uma pessoa só, sobretudo para nomear alguém que depois vai ter que rever seus atos. Acho, realmente, que apesar de ser esta uma discussão difícil, pois ninguém quer perder poder, devemos enfrentá-la.
Há várias propostas nesse sentido, inclusive a criação de um mandato para os ministros e elaboração de listas, como ocorre hoje no Superior Tribunal de Justiça.
 

P - Recentemente, houve um curto-circuito entre a OAB e o ministro Joaquim Barbosa. O que aconteceu?
R - De nossa parte, não houve curto-circuito nenhum. O ministro Joaquim Barbosa se sentiu ofendido com alguns advogados que atuam no caso e pretendia denunciá-los à OAB. Nós achamos que não houve ofensa nenhuma. Os advogados atuaram conforme determina sua consciência, no exercício de suas prerrogativas. Se o advogado for calado, é a cidadania que será calada, foi o que dissemos e que continua a valer. Assunto encerrado.
 

P - Além do mensalão, muito se discute a reforma no Código Penal, a qual o senhor fez críticas. Por quê?
R - São críticas construtivas. Como já disse antes, ocorre no Brasil uma tendência a buscar, por meio de leis, a solução para todos os problemas que afligem a sociedade. Talvez por isso tenhamos uma Constituição tão extensa, tratando com mínimos detalhes até de matéria financeira, e mesmo assim constantemente alterada. É cultural. Por isso, sempre que a imprensa destaca um crime, alguém propõe modificar o Código Penal neste ou naquele ponto. Não se trata de uma posição conservadora, mas de simplesmente acompanhar uma cultura jurídica consagrada no mundo inteiro. O Código Civil alemão é de 1896, e o francês, de 1804, mas nem por isso eles foram abandonados. Muito de nossa legislação precisa, ocasionalmente, ser revista, e por esta razão a OAB designa seus especialistas para analisar a matéria. O que chamo a atenção é para não nos deixarmos levar pela emoção, sem nos determos nos problemas conjunturais em torno da violência.
 

P - A votação está sendo precipitada?
R - Tive a oportunidade de levar essa preocupação durante audiência pública no próprio Senado. Não gostaríamos de ver as 500 mudanças propostas até agora para o novo Código Penal sendo votadas a toque de caixa, sem a análise detida de sua repercussão na vida dos cidadãos. Tememos que o clamor popular leve a uma precipitação que gere mais problemas do que soluções.
 

P - O sistema carcerário brasileiro terá compatibilidade com as mudanças no Código Penal, como o aumento de pena para alguns crimes?
R - O sistema carcerário brasileiro é a outra face perversa do problema da criminalidade no país. E ainda está longe uma solução. A todo instante vemos denúncias de maus-tratos, de presos cumprindo pena em delegacias por falta de lugar em presídios, bem como de presídios onde os condenados são submetidos a tratamento desumano, celas superlotadas, sem falar de presos trancafiados até em containers. Na verdade, a se manter o rigor das propostas do novo Código Penal, com endurecimento das penas, o governo terá de pensar num programa do tipo "minha cela, minha vida".
 

P - O aborto, por exemplo, continua sendo uma questão polêmica, quase um tabu. Como uma questão de saúde pública, o que o senhor acredita que deveria ser feito?
R - Consta que se estuda no projeto um modo de ampliar as possibilidades do aborto legal. O assunto, assim como ocorreu com o caso da anencefalia, desperta inclusive dogmas religiosos, mas deve ser levada em conta a realidade de muitas mulheres que arriscam suas vidas se submetendo a clínicas que atuam na clandestinidade para fazer abortos. Isto vale mais do que uma convicção, moral ou religiosa, que você possa ter a respeito do aborto. É o direito da mulher que está em discussão e creio já termos maturidade suficiente para dar um passo adiante nesta questão.
 

P - A Lei da Ficha Limpa é suficiente para conter os desmandos da política nacional? Se não for, o que fazer, então?
R - Nenhuma lei é suficiente para coibir um crime. Se fosse, ninguém iria atentar contra a sua vida, a sua liberdade ou o seu patrimônio. Ela é inibidora e para ser efetivada precisa que haja engajamento da própria sociedade, no sentido de fiscalizar, e do Judiciário, de aplicar. Senão, vira aquilo popularmente conhecido como "letra morta". Não é o que queremos. A Lei da Ficha Limpa foi resultado de uma mobilização gigantesca, mais de dois milhões de assinaturas foram recolhidas, para dar conteúdo ético às eleições. Por isso, estamos em permanente campanha. Não podemos deixar que os oportunistas, e não políticos de verdade, usem a democracia para afinal destruí-la.
 

P - O excesso de burocracia é um dos maiores problemas brasileiros?
R - A cultura burocrática está fortemente arraigada, mas não é um fenômeno exclusivo do Brasil. É um legado da época da colônia e também fonte de renda para uma casta que não quer perder poder. Nossos passos para mudar ainda são tímidos, mas o avanço tecnológico nos permite vislumbrar alguma esperança no futuro próximo. Muitos serviços do Estado estão disponíveis na internet, o que já é um avanço. Mas pode ter certeza que por trás de cada mudança tem alguém insatisfeito. Afinal, para o burocrata bitolado, não faz sentido facilitar se é mais fácil complicar.
 

P - Dilma Rousseff superou a ditadura e hoje tem recorde de aprovação de seu governo, com 77% do eleitorado satisfeito. Como o senhor analisa esses dois primeiros anos de atuação da presidente?
R - A trajetória da presidente demonstra a vitalidade de nossa democracia, o que deve ser sempre enaltecido, independentemente do debate ideológico. Ela assumiu o governo num momento em que o Brasil se firma como potência emergente e exibindo desempenhos notáveis. Ao contrário de seu antecessor, porém, está tendo de conviver com um clima de instabilidade externa, cujos efeitos, inevitavelmente, chegarão até nós. É, portanto, um momento de expectativa, considerando que, apesar dos avanços alcançados, muitos dos nossos problemas estruturais ainda estão longe de ser resolvidos. O Brasil continua sendo um país de muitas desigualdades.
 

P - Sabe-se que não existe democracia sem liberdade. Mas, é comum ver restrições à liberdade de imprensa e de expressão. Isso não é um total retrocesso?
R - Para a OAB, a liberdade de expressão é a primeira das liberdades a serem preservadas. Que nos sirva de exemplo a primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos, redigida por Thomas Jefferson, que proíbe o Congresso de fazer leis diminuindo a liberdade de expressão ou da imprensa.
 

P - "Todos os rostos podem ser delinquentes", afirma a teoria sociológica norte-americana do labelling approach. Mas, porque ainda é tão difícil ver ricos nas cadeias brasileiras?
R - Na verdade, o labelling approach surge para tentar entender por que algumas pessoas são rotuladas pela sociedade e outras não, e daí deriva uma profunda discussão, dentro da criminologia crítica, sobre o papel dos controles sociais a que somos submetidos diariamente. Controles que valem para qualquer pessoa, independentemente de classe social. Quando o sinal de trânsito fica vermelho, por exemplo, não importa o modelo do automóvel nem quem está nele dirigindo; a mensagem é clara: deve parar. Da mesma forma, temos de acreditar - e defender - num sistema de leis que não comportem privilégios. As leis são iguais para todos, mas se levarmos em conta a carência de informações e a dificuldade de acesso dos mais carentes à Justiça, veremos o enorme fosso que separa ricos de pobres no Brasil. O resultado é que quem comete um delito de menor valor é mais perseguido e mais rapidamente punido do que aqueles que fazem assaltos ao Erário público. Isso é algo que precisamos, definitivamente, acabar neste País. Principalmente através do ato de indignação do cidadão.

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