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Artigo: Pelo conforto dos torturadores

domingo, 2 de maio de 2010 às 07h24

Brasília, 02/05/2010 -O artigo "Pelo conforto dos torturadores" é de autoria de Wálter FanganielloMaierovitch e foi publicado naRevista Carta Capital:

"As cortes supremas de Justiça devem ser técnicas ou políticas? A pergunta já foi formulada milhões de vezes. Um dos parâmetros é a Suprema Corte dos Estados Unidos, que sempre se apresentou como política e, assim, referendou, contra a sua Constituição, leis racistas de estados federados. O nosso Supremo Tribunal Federal, nos últimos anos, passou a decidir ora técnica, ora politicamente, a ponto de invadir a competência exclusiva dos dois outros poderes republicanos, em nome da chamada segurança jurídica. A propósito, uma expressão banalizada pelo ministro Gilmar Mendes, presidente do STF até poucos dias atrás.

Em 2008, quando a Ordem dos Advogados do Brasil aprovou a iniciativa do jurista Fábio Konder Comparato de provocar o STF com uma arguição de descumprimento de preceito fundamental estabelecido na Constituição de 1988 (ADPF-153), falou-se em futura e histórica decisão a mostrar, para o mundo civilizado, um novo Brasil. Este comprometido com o respeito aos direitos naturais da pessoa humana, com as decisões das cortes internacionais de direitos humanos e pronto a não deixar impunes os criminosos agentes da ditadura. Aqueles que, contra os opositores do regime de exceção, consumaram crimes de lesa-humanidade, ou seja, mataram, torturaram, estupraram, abusaram da autoridade, seqüestraram.

Na sustentação oral, que antecedeu ao julgamento realizado na quarta 28 e quinta 29, Comparato destacou as violações, pela Lei da Anistia atacada, de fundamentais princípios como o da prevalência dos direitos humanos e da isonomia. E mais:o de repúdio constitucional a tortura e o estabelecimento de princípios democráticos e republicanos. O professor recordou, a título de precedente, ter o STF decidido pela inconstitucionalidade da Lei de Imprensa, esta, como a da Anistia, anterior à Constituição de 1988.

Com serenidade e gravidade necessárias, Comparato recordou uma das primeiras lições do Direito Constitucional, no sentido de que toda lei só é recebida pela Constituição quando não viola os seus preceitos fundamentais. Não esqueceu também a fundamental decisão da

Corte Interamericana de Direitos Humanos, de que nenhuma lei de autoanistia pode ser válida ao atentar contra o Estado Democrático de Direito. No curto tempo reservado à sustentação, demonstrou que a Lei da Anistia não contemplou, com a extinção da punibilidade e o esquecimento, os crimes comuns, de lesa-humanidade, que não são conexos aos crimes políticos.

O advogado da Associação dos Juizes para a Democracia, parte ativa no processo de arguição, sustentou que a lei não protegeu os agentes da repressão que torturaram, mataram e desapareceram com muitos dos opositores. A Advocacia-Geral da União defendeu a tese de uma anistia ampla e invocou testemunho do ex-ministro Sepúlveda Pertence, que, quando no Conselho da Ordem dos Advogados, ofertou parecer de aceitação do projeto, com anistia ampla e exclusiva ao âmbito criminal.

Muito citado em votos, Pertence passou a ser referência sobre a ampla discussão do projeto de Lei de Anistia e o desejo social, à época, de pacificação, apesar dos crimes hediondos. No particular, o ministro Ricardo Lewandowski demonstrou o contrário: a força das pressões internacionais contra o regime. E lembrou o rompimento, no governo do presidente norte-americano Jimmy Carter, dos acordos militares com a ditadura brasileira.

O relator Eros Grau, em voto de quase três horas, apreciou o mérito da arguição e concluiu pela sua improcedência. No final, e emocionado, chorou copiosamente. Certamente, as lágrimas não verteram em face das famílias dos 144 assassinados durante o regime. Nem dos descendentes e conviventes com os 125 desaparecidos. Talvez tenha se emocionado por ouvir os seus argumentos e a própria voz, por horas.

Dois pontos foram destacados por Grau e convenceram seis dos seus pares: Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marco Aurélio Mello, Celso de Melo e Cezar Peluso. Primeiro ponto: ao fazer uma retrospectiva histórica, o relator afirmou ter a anistia alcançado os crimes de lesa-humanidade num momento em que, no seu entender, a sociedade queria esquecer o passado e reconquistar a democracia. Para reforçar o seu escorço histórico, invocou, dentre tantos, Sepúlveda Pertence, Seabra Fagundes, Barbosa Lima Sobrinho e Raymundo Faoro.

A Lei da Anistia, consoante Grau, era bilateral, de mão dupla, como disse em reforço o ministro Celso de Melo. Em resumo, os crimes políticos e os que atentaram aos direitos humanos dos opositores ao regime estavam cobertos pela anistia, por conexão. Segundo o ministro, a Emenda n° 26, de convocação da Assembleia Nacional Constituinte, havia balizado os futuros constituintes e expressamente admitia a anistia ampla, geral e irrestrita.

Mais ainda, ela "constitucionalizou" a anistia. Assim e levado o dardo muito adiante, Grau acabou por desprezar a Constituição, que destaca que a anistia não pode premiar os autores de crimes de lesa-humanidade.

Lewandowski e Ayres Brito, ao contrário de Grau e Cármen Lúcia, deram pela procedência parcial da arguição. Isto para excluir do alcance da lei os autores e mandantes de crimes de lesa-humanidade. Segundo Lewandowski, a legislação fala em crimes conexos (vinculados) a crimes políticos. E o STF não considera como crimes políticos os de sangue, como a lesão à pessoa humana. Não poderia ser conexo a crime político os perpetrados por agentes que mataram, seqüestraram, estupraram, lesionaram etc.

Coube a Ayres Brito, com a elegância peculiar, relembrar que a Emenda 26, de convocação para a Assembleia Constituinte, não podia, ao estabelecer regras, limitar a atuação parlamentar e nem ser, como frisou Grau, hierarquicamente superior à Constituição de 1988.

Basicamente, as questões principais giraram sobre os temas acima e sobre a inaplicabilidade de decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que teria apenas apreciado os casos de leis não bilaterais. Falou-se em prescrição de crimes, a esquecer que o sequestro se protrai no tempo. Enquanto permanecer a vítima privada de locomoção, o sequestro está em permanente consumação. Muitos corpos continuam desaparecidos e, dessa maneira, não ocorreram prescrições. A certeza do ministro Marco Aurélio de que todos morreram não tem, para fins criminais, visos de juridicidade.

A ministra Cármen Lúcia chegou a afirmar que só ao Legislativo, e não ao STF, por inconstitucionalidade, competia revogar a lei. Esse argumento certamente deve ter feito Prestes de Miranda revirar-se na sepultura. O certo é que o STF tomou uma decisão de natureza politica e técnica, pois convencido, por larga maioria, em garantir a tese de que a anistia era ampla, geral e irrestrita. Algo lamentável, em pleno século de conquistas no campo humanitário. Infelizmente, por 7 a 2, venceram os torturadores. Como Grau, os Ustra devem estar a verter lágrimas. De alegria".

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