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Artigo: O clamor que não quer calar

segunda-feira, 10 de novembro de 2008 às 10h49

Belo Horizonte (MG), 10\11/2008 - O artigo "O clamor que não quer calar" é de autoria do presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto, e foi publicado na edição de hoje (10) do jornal Estado de Minas:

"Não é casual que o tema da punição aos que torturaram presos políticos durante o regime militar de 1964 insista em manter-se em pauta. Por mais que setores ligados à velha ordem empenhem-se em removê-lo, o tema se mantém na agenda política.

E o motivo é simples: trata-se de clamor da sociedade brasileira - justo clamor, que não quer calar. Argumentações de ordem jurídica - ou por outra, pseudojurídicas - buscam tirá-lo de cena, mas, quando supõem tê-lo conseguido, eis que retorna, qual fênix rediviva.

É inútil ignorá-lo ou minimizá-lo: além de imperativo de ordem moral, é demanda histórica incontornável. A Lei 6.683/79 anistiou os crimes políticos e conexos. A tortura, porém, não é crime político em lugar nenhum do mundo - nem na legislação brasileira, nem nos tratados internacionais que o país tem subscrito.

Não há dúvida de que a Lei de Anistia cumpriu seu papel. Propiciou a transição pacífica do regime ditatorial para o democrático. Isso, porém, não impede que a história seja passada a limpo. Não se trata de revanchismo, nem muito menos de revogá-la.

Diversos personagens que serviram à ditadura figuram hoje em posições de destaque, no governo e na oposição. Cumpriram, porém, papel político, nos limites da lei, cabendo apenas ao eleitor e à história o direito de julgá-los. Não é nem de longe o caso dos torturadores, que agiram quando os adversários já não ofereciam resistência e estavam sob a guarda do Estado, violando a legislação, que, antes como agora, garante a integridade física do prisioneiro.

O que se busca, com o seu enquadramento, é demonstrar que a ação abjeta que exerceram não configura ato político, mas crime comum, hediondo, de lesa-humanidade - e, portanto, imprescritível, nos termos da lei. Dessa forma, puni-los não fere a anistia, cuja essência é - só pode ser - política.

Por essa razão, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ajuizou, mês passado, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), uma argüição de descumprimento de preceito fundamental para tirar o tema da mera discussão conceitual e dar-lhe conteúdo jurídico, fazendo com que a nação o discuta objetivamente e lhe dê conseqüência prática.

O Brasil precisa livrar-se do hábito de varrer para debaixo do tapete da história as suas abjeções. Precisa entender que anistia não é amnésia, e que um povo que não conhece o seu passado está condenado a repeti-lo. Não é uma frase de efeito, mas uma realidade objetiva, que faz com que a OAB há muito lute para que o país saiba, em detalhes, o que lhe aconteceu durante a ditadura militar.

Antes dessa ação, já havíamos ajuizado outra para que os arquivos da ditadura não permaneçam secretos, o que nos levou a ajuizar ainda uma outra, para apurar denúncias de que arquivos daquela época estavam sendo queimados e destruídos. A Lei de Anistia, como pensada inicialmente e depois reconhecida na Constituição, não beneficia o torturador. Diz especificamente que os crimes políticos e conexos estão anistiados, o que exclui a tortura, cuja tipicidade, como já disse, é bem outra.

O próprio regime militar jamais admitiu formalmente a prática de tortura. Considerou-a ação marginal, de cuja responsabilidade até hoje seus remanescentes buscam se eximir. Sendo assim, por que a defesa insensata dos torturadores, por que vinculá-los à Lei de Anistia, que é um pacto político - e não criminal?

Se os que torturaram o fizeram por conta própria, à revelia dos comandos institucionais, por que o temor de que sejam responsabilizados moral e penalmente? Tal resistência faz supor o contrário do que sustentam estas lideranças remanescentes: o de que havia algum tipo de vínculo formal.

As instituições militares pertencem ao país e não a um grupo político. Não podem, portanto, assumir como seus argumentos facciosos. Desde a redemocratização, têm sido exemplares no cumprimento de seus deveres, alheias aos embates e ao varejo do jogo político-partidário. Daí a improcedência de apontá-las, em seu conjunto, como obstáculo ao restabelecimento da verdade histórica.

Elas não podem ser confundidas (nem se confundir) com sentimentos e interesses de alguns de seus setores, claramente minoritários e reacionários. E só têm a ganhar com o esclarecimento cabal de todo aquele sórdido período, virando de vez uma das páginas mais negras da história do Brasil.

Enquanto isso não ocorrer, o tema se manterá implacável, a reclamar esclarecimento e reparação judicial, a suscitar dúvidas e suspeitas, que atingem o conjunto das instituições armadas, o que não é justo, nem adequado para o país.

Não podemos continuar a ser a única nação sul-americana vitimada por ditadura militar na segunda metade do século passado a não punir os torturadores. A Argentina chegou a encarcerar ex-presidentes da república, sem que isso abalasse a democracia. O Chile, ao não fazê-lo, viu-se exposto ao vexame de uma providência externa, com a prisão, por crime contra a humanidade, em Londres, do ex-ditador Augusto Pinochet, a pedido do juiz espanhol Baltazar Garzón, aceito pelo juiz inglês Nicholas Evans.

Tem agora o STF oportunidade única de fazer com que a história brasileira seja também passada a limpo, para que o país possa, enfim, conhecer o pesadelo que viveu, de modo a não mais repeti-lo. Confiamos na sensibilidade e senso do dever do Poder Judiciário. E sabemos que esse é o desejo dos homens de bem deste país."

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