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Ex-militares confirmam na OAB torturas no Araguaia

domingo, 14 de setembro de 2008 às 07h10

Brasília, 14/09/2008 - Em matéria publicada hoje (14) no jornal O Estado de São Paulo, de autoria do repórter Marcelo Auler, dez ex-recrutas do Exército que participaram da Guerrilha do Araguaia entre 1972 e 1975 confirmaram, em depoimentos à Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a execução de guerrilheiros pelos militares, assim como a prática de tortura não apenas contra os inimigos, mas também de civis. Nos depoimentos, esses ex-soldados denunciaram ter sofrido maus-tratos e sevícias nos treinamentos recebidos.

Falaram ainda da cooptação de índios pelas Forças Armadas para localizar membros do PC do B na selva. Mas não esclareceram o maior mistério do caso: a localização dos corpos dos guerrilheiros mortos. "Trata-se de um fato diferenciado, que é a confissão de agentes do próprio Estado", diz o presidente nacional da OAB, Cezar Britto, sobre os documentos que a Ordem encaminhou, em março passado, ao Superior Tribunal Militar (STM). "Não são depoimentos de vítimas do ato, mas de quem confessa ter praticado, ainda que sob ordens, fatos graves. É uma diferença substancial. Daí porque a OAB reivindica que se apure a veracidade das declarações que, se verdadeiras, dão certo cunho de oficialidade ao que era negado."

Os depoimentos são de alguns dos 315 ex-soldados que ingressaram com 116 ações solicitando a reintegração às Forças Armadas no quadro da reserva remunerada. Alegam ter sofrido danos físicos e morais no combate à guerrilha, na região conhecida como Bico do Papagaio, no sul do Pará e, na época, norte de Goiás (hoje Tocantins). Das ações já protocoladas na Justiça Federal de Brasília, ao menos 275 são de sócios da Associação Brasileira dos Ex-combatentes da Guerrilha do Araguaia, segundo seu presidente, Dorimar Gomes Soares.

Ex-soldado, o hoje taxista Gomes Soares licenciou-se do cargo na associação para concorrer à Câmara Municipal de Marabá (PA) pelo PT. Ele explica a dificuldade para a localização dos corpos: "É uma questão que as Forças Armadas guardam a sete chaves. Fizeram muitas ações na região, que era uma mata selvagem e hoje a mata já não existe mais. Realizaram a operação limpeza, recolhendo cadáveres e ossadas."

Alguns dos ex-recrutas apontaram a Serra das Andorinhas, nas margens do Rio Araguaia, no sul do Pará, como local para onde os militares levaram os inimigos. A conselheira da OAB Herilda Balduíno, da Comissão de Direitos Humanos que ouviu os ex-soldados em 2006, lembra que essa versão da Serra das Andorinhas já circulava antes dos depoimentos.

"O local onde foram jogados vários guerrilheiros ainda vivos era chamado de buraco grande da Serra das Andorinhas, de difícil acesso", afirma o ex-enfermeiro Adailton Vieira Bezerra. Ele fala em "pelo menos oito pessoas, incluindo uma guerrilheira grávida", atiradas nesse buraco. Alega ter sido informado disso "pelos mateiros, entre eles Arlindo da Silva, e também por sargentos e oficiais daquela base".

No alto escalão do governo há reservas sobre as informações dos ex-soldados, como explicou um ministro ao Estado: "Nos contatos deles conosco, de vez em quando, logo transparece um certo componente de troca: se ajudarmos nas indenizações, eles ajudam a localizar. Assim fica muito difícil. Uma autoridade pública tem de manter longa distância de qualquer coisa que cheire a chantagem", comenta, pedindo para não ser identificado.

O ex-secretário de Direitos Humanos Nilmário Miranda esteve no Araguaia com um desses ex-soldados e garante: "Não deixamos nada sem verificar, mas as informações deles eram imprecisas."

A conselheira Herilda alerta ser preciso encarar os depoimentos com precaução, por serem de quem reivindica compensação por seqüelas supostamente geradas na guerrilha. Mas, admite, as declarações "devem ter algum grau de sinceridade, pois eles estavam no palco das operações e presenciaram os fatos".

O ex-soldado Eduardo Xavier dos Santos Oliveira revelou, por exemplo, que as Forças Armadas cooptaram indígenas para ajudar a localizar os guerrilheiros. Oliveira afirma que várias vezes conduziu para os helicópteros caixas que continham munições que eram distribuídas para os índios suruís. "Eles eram os melhores mateiros e recebiam por cada pessoa capturada entre 10 mil e 14 mil cruzeiros", conta. O livro Operação Araguaia, de Taís Morais e Eumano Silva, relata que, na busca pelos cadáveres, a Comissão de Desaparecidos Políticos, em 2005, encontrou na Reserva Indígena Suruí restos de pernas de duas pessoas, nove dentes e projéteis.

O conselheiro da OAB Nélio Machado, que estudou o caso, também defende cautela com as revelações. "Os depoimentos devem ser considerados por terem sido prestados de forma solene. O assunto nunca foi devidamente apurado, quer em relação à violência que provocou, quer em relação àqueles que de alguma forma foram vítimas de uma subordinação que praticamente inviabilizou a divergência, até mesmo no plano ético. Eles se achavam praticamente em estado de coação e sofreram seqüelas que não devem ser desconsideradas. Há muita dor dos dois lados."

Notícia-crime foi proposta em 2007, mas continua sem desfecho

Os depoimentos tomados pela Comissão de Direitos Humanos foram juntados à representação que o advogado Fábio Konder Comparato apresentou, em maio de 2007, ao presidente da OAB, Cezar Britto. Ele propôs uma notícia-crime contra as Forças Armadas por causa da destruição dos documentos secretos dos serviços de informação sobre o período da repressão política, notadamente da Guerrilha do Araguaia.

Segundo Comparato, a destruição de documentos oficiais é crime previsto no Código Penal, com pena de 1 a 4 anos de reclusão. Àquela época, permaneciam guardados nos cofres da OAB os depoimentos dos ex-combatentes. Foi Britto quem decidiu juntá-los à representação e encaminhá-los ao conselheiro Nelio Seidl Machado.

Por sugestão de Machado, o Conselho Federal da Ordem, em fevereiro de 2007, decidiu representar no Superior Tribunal Militar (STM) pela destruição dos documentos, crime que o Código Penal Militar pune com pena ainda maior: "De 2 a 6 anos, se o fato não constitui crime mais grave."

A representação foi entregue ao presidente do STM, que a encaminhou à Procuradoria-Geral da Justiça Militar. A então procuradora-chefe, Maria Ester Henrique Tavares, às vésperas de deixar o cargo, em abril de 2007, encaminhou pedido de esclarecimento sobre o desaparecimento dos documentos aos Ministérios da Defesa, da Justiça e da Casa Civil. Até agora, o ministro Tarso Genro (Justiça) foi o único a responder à procuradoria, mas o conteúdo não foi revelado.

Execução de Valquíria

"Ela continuou a ser torturada até as 15 horas do dia 25 de outubro de 1974. O comandante liberou os soldados e recrutas para a cidade, para retornarem às oito horas do dia seguinte. Quando retornaram à base, tiveram a notícia de que ela havia sido submetida, às 17 horas do dia anterior, na presença de todos os comandantes de outras bases, à morte. Foi executada. Os comandantes e oficiais de outras bases, no ato da execução, formaram um semicírculo de frente para o carrasco. Valquíria ficara de costa para o semicírculo. Ela foi atingida com três tiros, caindo de frente contra o chão." Adaílton Vieira Bezerra, funcionário público, residente em Marabá (PA), que serviu ao Exército de janeiro a novembro de 1974

Morte de civis

"Que em muitas dessas operações ocorreu a eliminação, inclusive de crianças. Que ao final das operações os corpos eram recolhidos em sacos de lona verde com zíper e levados de helicópteros. Que os corpos não eram transportados no interior dos helicópteros, mas em rede na sua parte externa. Que não sabe dizer o que era feito com os corpos quando chegavam à base." Dorimar Gomes Soares, taxista, candidato a vereador em Marabá (PA), prestou serviço militar entre janeiro e novembro de 1972

Civil desaparecida

"Que em certa ocasião vigiou uma presa de nome Adelina, que era do Projeto Rondon, e Belim; que nunca mais ouviu falar de Adelina. Que sabe que ela esteve no 52.º Batalhão durante uns 15 dias e que não sabe o destino dela. Que foi a própria presa que lhe disse que participava do projeto Rondon e que Belim está vivo e que de vez em quanto o vê em Marabá." Dorimar Gomes Soares

Sessões na prisão

"Depois de terminados o banho de sol e a faxina, os presos eram conduzidos para uma sala superior do pavilhão e o depoente ouvia os gritos, o choro e as lamurias, o que certamente eram sessões de torturas. Os colegas militares comentavam que ''aquelas pessoas estavam sofrendo''. Não era possível reconhecer algum torturador, pois os mesmos usavam capuzes pretos, e até aqueles que traziam os presos da selva vinham encapuzados." Valdim Pereira de Souza, residente em Macapá (AP), serviu entre 1975 e 1983

Armas para índios

"Por duas vezes viu o helicóptero descendo e retirando dois corpos. Que um dos corpos havia sido capturado pelos índios. Que o depoente várias vezes conduziu para os helicópteros caixas que continham munições que eram distribuídas para os índios , índios suruís, pois os índios eram os melhores mateiros e recebiam por cada pessoa capturada entre 10 mil e 14 mil cruzeiros." Eduardo Xavier dos Santos Oliveira, motorista, mora em Parauapebas (PA), ingressou no Exército em janeiro de 1975

Títulos de terra

"O soldado Ernandes pertencia ao grupo e foi designado para esta operação em Tucuruí para prender o próprio pai. O soldado Ernandes era chamado para assistir às sessões de torturas de seu próprio pai. Cerca de 20 dias depois essas pessoas foram soltas e cada uma tomou seu destino. Pelo que ficou sabendo, o motivo da prisão foi a acusação a essas pessoas por terem falsificado os títulos de terra, o que nada tinha com a guerrilha." Eduardo Xavier dos Santos Oliveira

Castigo para militares

"O soldado Ferreira disse que iria até a cidade comprar cigarros. Nesse intervalo chegou um dos indivíduos reconhecidos como ''carrasco'', em uma camionete do Incra, que começou a especular sobre o paradeiro do encarregado. Quando Ferreira regressava à Base, o ''carrasco'' pediu a um dos soldados que lhe interceptasse e pedisse a senha. Ferreira, não percebendo que o ''carrasco'' ali se encontrava, não forneceu a contra-senha, apenas indagou se o soldado não o estava reconhecendo. O ''carrasco'' ordenou então ao soldado que atirasse em Ferreira. O soldado atirou a esmo. O ''carrasco'' então conduziu Ferreira até a Base. O depoente presenciou quando, por volta de 21h30, Ferreira foi pendurado de cabeça para baixo, sobre uma privada. Como Ferreira começou a gritar e ninguém podia socorrê-lo, o ''carrasco'' então abaixou ainda mais a corda até que a sua cabeça tocasse as fezes na privada. Ferreira permaneceu nessa posição até que o dia amanhecesse." Rosimar Nunes da Silva, motorista, morador em Parauapebas, serviu ao Exército entre janeiro e novembro de 1975

Tortura de civis

"Participou de uma operação em Tucuruí onde foram presas mais de 20 pessoas, entre elas o prefeito, vereadores e um juiz, cujo nome é Armando Moraes, todos conduzidos para o Quartel de Marabá. De noite, depois da meia-noite, eram retirados da cela para as sessões de torturas, feitas por oficiais superiores. As torturas constavam de colocar a pessoa para dançar como marionetes, ao som de uma radiola, em cima de latas de alumínio, tipo de cerveja, que eram furadas e passadas em umas cordas e, quando eles estavam dançando, o torturador vinha com o pau, batia na latinha e eles caíam no chão, eram pisoteados, jogavam água gelada e recebiam choques nos órgãos genitais e nas orelhas. Isso durava mais ou menos duas horas. Várias pessoas eram submetidas a essas sessões de torturas noturnas por mais de 15 dias" Eduardo Xavier dos Santos Oliveira

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