OAB: o Brasil vive um Estado de bisbliliotice
Salvador, 26/08/2008 - A quase banalização dos grampos de escutas telefônicas, autorizadas ou não, está transformando o Brasil num verdadeiro Estado de Bisbilhotice, que é uma etapa para o Estado Policial. A opinião é do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Cezar Britto, que no próximo sábado (30) fará uma palestra no encerramento da III Conferência Estadual dos Advogados do Estado da Bahia, no Fiesta Convention Center.É preciso dar um basta e regulamentar a prática de escuta transformada em bisbilhotagem geral, observa o presidente da OAB, destacando que nesses casos acaba sendo priorizado o texto obtido por uma escuta, ao contrário do contexto da ação. Preocupa Cezar Britto que o Estado Policial atinge forte aceitação, inclusive de autoridades públicas.
Nesta entrevista concedidaao repórter José Fonseca Filho do siteNossaBahia o presidente nacional da OAB elogia a decisão do Supremo Tribunal Federal de acabar com o nepotismo nos três Poderes, inclusive o nepotismo cruzado, quando há favores na contratação de parentes entre colegas.
P- O que achou da regulamentação do uso de algemas, estabelecida pelo Supremo?
R- A decisão é um claro aceno de que é necessário respeitar os princípios fundamentais estabelecidos na Constituição de 1988. Ao reconhecer que o uso de algemas deve ser aplicado apenas em caráter excepcional, entendeu o STF que é necessário fazer valer os princípios constitucionais consagrados, como o princípio da presunção de inocência, o da proporcionalidade e o princípio da dignidade da pessoa humana. Entendo que combate ao crime não é show de televisão. Por essa razão, as algemas só devem ser usadas em casos de risco de fuga ou de perigo de morte dos agentes e cidadãos. Normatizar o seu uso foi uma decisão histórica. O argumento de que, em relação aos presos pobres, não se age da mesma forma não pode justificar a prevalência de uma indignidade, de uma ilegalidade. Se assim é, algo precisa ser feito. Se, em relação aos pobres há truculências e ilegalidades, e nós sabemos que há, a oportunidade histórica dessa decisão impõe que tal anomalia seja corrigida, de cima para baixo. O contrário é que é impensável: a ilegalidade praticada em baixo ser estendida a todos os casos. Seria a generalização da ilegalidade.
P- E sobre a decisão do STF, de vetar a prática do nepotismo nos três Poderes?
R- O nepotismo, essa chaga que fere o direito de igualdade e de aceso ao serviço público, já era proibido pelo artigo 37 da Constituição, até porque ali está expresso que os atos administrativos, todos eles, têm que observar os princípios da moralidade e da impessoalidade. Apesar de estar ali, expressamente, o Supremo acabou tendo que examinar essa matéria, ratificando uma resolução anteriormente editada pelo Conselho Nacional de Justiça para o Judiciário. O maior mérito da súmula do STF foi ter previsto em seu texto também a proibição do nepotismo cruzado, que chamamos de "transnepotismo". É a prática que propicia contratações cruzadas, com um agente público contratando um parente de um colega desde que este concorde em empregar um parente seu. A nova súmula oficializa o fim das diversas formas do nepotismo que existem nos três Poderes, uma luta que constitui bandeira histórica da OAB e da sociedade brasileira.
P- Recentemente a OAB nacional ajuizou no STF um pedido de revogação de uma Súmula da Corte (de número 5), que dispensa a presença do advogado em caso de processos administrativos. Por que razão?
R- Essa súmula prevê que a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição. Em nossa opinião, que foi, inclusive, aprovada à unanimidade no Pleno do Conselho Federal, o enunciado contraria sim o direito fundamental que todo cidadão tem, ao contraditório e à ampla defesa. A aplicação de qualquer penalidade a servidor público, sendo ele efetivo ou não, deve ser antecedida de processo administrativo disciplinar. A demissão do servidor estável só pode ocorrer em virtude de sentença judicial transitada em julgado ou de processo administrativo em que lhe sejam possibilitadas as garantias constitucionais. Aí é que entra o advogado. É aí onde ele deve estar, pois o funcionário público tem direito ao contraditório e tem direito de ser bem defendido por um profissional da advocacia.
P- O Sr. tem dito que o Brasil está próximo de enfrentar problemas já vividos por ocasião da ditadura. Recentemente a CPI dos Grampos descobriu que mais de 400 mil escutas telefônicas foram autorizadas em 2007. É um abuso?
R- Os dados da CPI confirmam o que a OAB está falando há muito tempo: que estamos vivendo num Estado de Bisbilhotice, que é um subitem do Estado Policial. É preciso compreender que devemos regulamentar e dar um basta nessa prática de bisbilhotagem geral, em que se prioriza o texto obtido numa escuta ao invés do contexto de toda uma ação. A reação do Estado a essa constatação de número exagerado de grampos não é de coibição, ao contrário, é de ampliar o número de escutas no país, tanto é que a Polícia Federal tem grampo, as polícias estaduais adquiriram mecanismos de grampo, o Ministério Público tem grampo, a Abin quer grampo, a Justiça do Trabalho quer grampo. Então está todo mundo agora querendo bisbilhotar a vida alheia. Imagine num sistema de cultura autoritária, que volta cada vez mais forte no Brasil, o que é o poder de um policial sobre a vida de uma pessoa ao conhecer toda sua vida privada. É um instrumento de chantagem política muito grande.
P- Quais outros sinais indicam que estamos vivendo um Estado Policial?
R- Primeiro, a cultura de que bandido bom é bandido morto e que para combater o crime tudo é possível. Com isso, relativizam-se direitos históricos das pessoas, como o direito à defesa, e marginalizam-se os advogados o tempo todo, impedindo que eles tenham acesso aos autos. Um exemplo atual mais simbólico disso é a aceitar a idéia que a polícia pode estar nos corredores do Parlamento. É o exemplo claro que o Estado Policial atinge uma aceitação muito forte, inclusive de autoridades públicas. A idéia de que o Parlamento tem corredor livre para investigação é a idéia de que não há mais soberania do Poder Legislativo, que tem exatamente a função de controlar o Executivo.
P- Como avalia a atual situação do sistema carcerário no Brasil?
R- É um sistema caótico. Um verdadeiro depósito de pessoas humanas que serve para estimular a prática de crime porque em escola do crime se transformou. O grande problema do sistema carcerário não é constatar o que já está lá. É perceber que isso é de conhecimento da sociedade há vários anos e ninguém faz nada. Isso acontece por causa de uma lógica perversa e preconceituosa, de quem está ali não é ser humano, mas um bandido, que deve ser punido e execrado, até porque em geral são pessoas excluídas da sociedade: o pobre, o negro, a prostituta. Esse é que o grande absurdo: a passividade preconceituosa.
P- Em três décadas houve três CPIs sobre o assunto e a situação não melhorou. Falta vontade política para resolver o problema?
R- Quando se começa a estabelecer a compreensão de que preso é bandido e que bandido tem que ser punido e não vale a pena para os políticos tratá-los com humanidade, porque não dá voto, então eles preferem deixar como está. Há uma incompreensão muito forte da sociedade. E alguns até exageram quando comparam o valor gasto com o preso com o valor gasto com o trabalhador, dando a entender que os presos vivem em mordomia, comendo e bebendo de graça, como se a perda da liberdade não fosse um prejuízo irreversível. É preciso mudar esse valor social e compreender que são seres humanos e precisam ser tratados com dignidade até para sobrevivência da própria sociedade. A sociedade estará melhor no futuro se tratar melhor no presente seus detidos, porque senão quando eles voltarem à sociedade vão voltar com uma vontade maior de cometer crimes.