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Artigo: O crime de criminalizar a pobreza

segunda-feira, 3 de março de 2008 às 09h20

Brasília, 03/03/2008 – O artigo “O crime de criminalizar a pobreza” é de autoria do presidente da Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro, Wadih Damous, e foi publicado na edição de hoje (04) do jornal Correio Braziliense:

“A política de segurança pública do estado do Rio foi concebida como estratégia de guerra, em que as favelas são territórios hostis e os criminosos inimigos internos. Embora o Brasil viva em plenitude democrática, a segurança pública ainda é vertente inspirada na truculência dos tempos autoritários.

O modelo remanescente sustenta-se na visão consolidada de que o “inimigo” deve ser eliminado. Disso resulta a instauração, na prática, de Estado de exceção. A pretexto de manter a ordem, perpetram-se violações sucessivas à Constituição e às leis.

As estratégias bélicas se articulam com um olhar seletivo que constrói a noção de inimigos da ordem. Tal papel recai sobre os excluídos, em especial moradores de favelas, alvo preferencial da atividade repressiva. Direitos fundamentais tornam-se obstáculos às políticas de segurança. Legitimam-se, então, torturas, prisões arbitrárias, execuções sumárias, revistas ilegais e violações de domicílios.

As vítimas de balas perdidas já não ocupam as manchetes dos jornais. Banaliza-se a vida dos pobres, geralmente jovens e negros. A morte em larga escala de pessoas inocentes — inclusive de crianças — figura como efeito colateral aceitável no cálculo irracional dos atuais governantes.

Apesar da retórica inflamada de seus defensores, essa política é ineficiente. Segundo dados do próprio governo estadual (Instituto de Segurança Pública), no primeiro semestre de 2007, enquanto a letalidade das polícias subiu 33,5%, as prisões diminuíram 23,6%; a apreensão de armas, 14,3%; e a apreensão de drogas, 7,3%. Os dados relativos ao segundo semestre, embora parciais, demonstram continuidade dessa tendência, que conjuga mais letalidade e menos eficiência nas ações policiais. Como o mesmo padrão de ineficiência persiste há duas décadas, conclui-se que o objetivo das operações de combate militar não é produzir segurança, mas suporte aos interesses eleitorais do governante de ocasião, fixando-lhe imagem de intransigência no combate à criminalidade.

A experiência de outros estados brasileiros e de outros países demonstra que bons resultados dependem de políticas integradas, que abranjam não só ações policiais, mas também sociais e econômicas. A própria experiência de Bogotá e Medellín, que o governador do estado costuma citar, envolve reurbanização de comunidades, adoção de políticas de renda mínima e de microcrédito, investimento em educação, participação da comunidade, além de ampla reforma das instituições policiais. Os bons resultados só foram alcançados naquelas cidades quando superada a orientação belicista predominante no resto do país, em grave crise política e militar.

Aqui, ao contrário, a linha tem sido a criminalização da pobreza. Até festas nas favelas são consideradas reuniões de vagabundos pelo novo comandante da Polícia Militar do Rio, que já anunciou medidas para extingui-las. De acordo com o olhar seletivo, a virtude exemplar está nas festas da juventude da Zona Sul carioca.

Não por outra razão, a parcela esclarecida da sociedade civil festeja o anúncio, pelo governo federal, de investimentos nas áreas mais expostas à violência urbana: as regiões metropolitanas. O PAC da Segurança inclui desde intervenções urbanísticas, até concessão de bolsas para jovens entre 15 e 29 anos e complementação dos salários de policiais.

Com recursos e apoio federal, o estado do Rio terá oportunidade de adotar política séria de segurança pública, compatível com o estado de direito e comprometida com resultados sustentáveis no longo prazo. Espera-se apenas que os investimentos sejam de fato realizados e sirvam ao objetivo de produzir segurança com cidadania.

A solução dos problemas da segurança pública no Rio de Janeiro dispensa megaoperações e pirotecnia. Reclama políticas de primeiro emprego, de horário integral nas escolas públicas, de renda mínima, de saúde, saneamento básico, cultura e lazer; de reforma das instituições policiais, com melhores salários e condições apropriadas de moradia ao efetivo policial.

Quando necessário o uso da força, o governo deve considerar não apenas os objetivos das ações, mas a segurança da população envolvida. O aprimoramento do Estado Democrático de Direito impõe que se universalizem suas garantias e se supere a ilegalidade rotineira das políticas de segurança. É o único caminho digno de ser percorrido pelo governo estadual, se não pretende ser lembrado como o mais letal de toda a história republicana.”

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