OAB homenageia Luiz Gama, precursor do abolicionismo no Brasil
Brasília, 07/05/2007 – O Plenário do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) prestou hoje (07), durante sessão plenária da entidade, homenagem a Luiz Gama, nascido em 1830 e morto em 1882 e considerado o precursor do abolicionismo no Brasil. Sozinho, Luiz Gama libertou nos tribunais mais de 500 escravos. O orador da homenagem foi o jurista e o presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia da OAB Nacional, Fábio Konder Comparato.
Luiz Gama era filho de Luiza Mahin, africana livre da nação nagô, oriunda da Costa do Marfim, e de um pai pertencente a uma família ilustre da Bahia, que arruinou-se no jogo e acabou vendendo-o como escravo em 1840, quando tinha apenas 10 anos de idade. Embarcado para o Rio de Janeiro com dezenas de outros escravos, o menino foi vendido a um traficante paulista. Alfabetizado por um jovem amigo aos 17 anos, Luiz Gama apaixonou-se de imediato pelos livros, paixão que o acompanhou até a morte.
Aos 18 anos fugiu do cativeiro doméstico em São Paulo para se aliar à Marinha de Guerra, mas acabou excluído dos quadros daquela Força Armada. Retornou a São Paulo, onde trabalhou no escritório de um escrivão e, depois, na Secretaria de Governo da província, quando decidiu estudar Direito e defender em juízo a liberdade da população de negros escravos. Repelido pelos estudantes em sua tentativa de matricular-se na já famosa Faculdade de Direito, optou por atuar como rábula – advogado que, não possuindo formação em Direito, obtinha autorização da entidade de classe para exercer, em primeira instância, a postulação em juízo.
A grande questão jurídica que Luiz Gama defendeu nos tribunais foi a vigência da Lei de 7 de novembro de 1831, a qual, em cumprimento a um tratado de repressão do tráfico negreiro celebrado com a Inglaterra em 1818, declarara livres todos os africanos desembarcados no país após aquela data. Ao mesmo tempo, procurou combater a escravidão por meio da militância política. No final da vida, Gama foi o grande inspirador do movimento dos caifazes de Antonio Bento de Souza e Castro, que promoveu a fuga de milhares de escravos, desorganizando irreparavelmente o trabalho nos grandes domínios rurais de São Paulo.
A seguir a íntegra da homenagem da OAB Nacional a Luiz Gama, feita pelo jurista Fábio Konder Comparato:
Para alguns, o sofrimento aniquila a vontade; para outros, ao contrário, aprimora o caráter, habilitando o sofredor, pela compreensão em profundidade da alma humana, a decidir sabiamente entre o bem e o mal. Na tragédia Agamenon de Ésquilo, é este o grande elogio que o coro faz a Zeus, o principal deus do Olimpo: “ele abriu aos homens os caminhos da prudência, dando-lhes por lei: sofrer para compreender”.
Os sofrimentos de Luiz Gama começaram bem cedo e forjaram um caráter indômito e apaixonado.
Quando tinha 7 anos, a mãe, africana livre da nação nagô, oriunda da Costa da Mina, após participar das rebeliões de 1835 e 1837 na capital da província da Bahia, foi deportada para lugar incerto e não sabido. Três anos depois, o pai, de família abastada, havendo dilapidado sua fortuna em jogos de azar, decidiu vender o filho como escravo. Luiz Gama teve a suprema dignidade de jamais revelar o nome do seu indigno progenitor.
Embarcado em navio para o Rio de Janeiro juntamente com dezenas de outros cativos, o menino de 10 anos foi vendido a um traficante paulista. Subiu a pé a Serra do Mar, de Santos até Campinas, para ser oferecido a um fazendeiro ilustre, que o refugou incontinenti ao saber que procedia da Bahia. Desde a sangrenta rebelião dos malês, em 1837, os negros daquela província eram temidos pelo seu caráter indomável. Luiz Gama foi então recambiado à casa do traficante em São Paulo, para servir como escravo doméstico.
Só conseguiu alfabetizar-se aos 17 anos, graças ao auxílio de um jovem amigo que viera hospedar-se na casa do seu dono. Desde então, a paixão pelos livros não mais o deixou.
Com 18 anos, fugiu do cativeiro para sentar praça na Marinha de Guerra. Seis anos depois, já cabo de esquadra, insurgiu-se contra um oficial insolente que o insultara, foi preso e compareceu perante conselho de guerra, que o excluiu dos quadros daquela Força Armada.
De volta a São Paulo, passou a trabalhar no escritório de um escrivão e depois na Secretaria de Governo da província. Nessa ocasião, veio-lhe a inspiração de estudar Direito para defender em juízo a vida e a liberdade da imensa população de negros escravos. Repelido pelos estudantes em sua tentativa de matricular-se na histórica Faculdade de Direito do Largo de São Francisco em razão da sua condição étnica, assumiu a opção definitiva de atuar como rábula até o fim da vida. A ironia da História é que Luiz Gama acabou por partilhar seu escritório de advocacia com dois ilustres catedráticos da Faculdade onde fora repelido: os doutores Januário Pinto Ferraz e Dino Bueno.
A grande questão jurídica que Luiz Gama levantou, na imprensa e nos tribunais, com competência e indignação, foi a vigência da lei promulgada pelo Regente Feijó em 7 de novembro de 1831. Portugal havia celebrado com a Inglaterra, em 1810, um tratado que proibia terminantemente o tráfico negreiro, tratado esse ratificado pelo governo brasileiro em 1826, mas que permanecia letra morta. A lei de 1831 declarou livres todos os africanos desembarcados no país após a data de sua promulgação. Ora, apesar da clareza do texto legal, as suas normas nunca foram aplicadas.
Em 4 de setembro de 1850, cinco anos após a aprovação pelo Parlamento britânico do Bill Aberdeen, pelo qual o tráfico negreiro foi assimilado à pirataria e sujeito à repressão internacional, votou-se a Lei Eusébio de Queiroz, que tipificou como crime o tráfico de africanos para o Brasil. Acontece que tal lei só admitia a apreensão como livres, no interior do país, dos negros ditos boçais, isto é, que não dominavam a língua portuguesa. Com isso, sem declarar revogada a lei de 1831, o novo diploma legal mantinha no cativeiro todos os africanos adquiridos ilegalmente nas décadas anteriores, já transformados em ladinos, e estimados em mais de um milhão de almas.
Por isso mesmo, várias autoridades, nos tribunais e no governo, entre elas o Conselheiro Nabuco de Araújo, sustentavam a tese da revogação tácita da lei de 7 de novembro de 1831.
Foi contra a legitimação dessa impostura perversa que se levantou Luiz Gama. Graças à sua competência profissional e indignação, ele conseguiu sozinho – fato único em nossa História – libertar em juízo mais de 500 escravos. “O mal”, como denunciou em artigo de jornal publicado em 1880, “não estava só na insuficiência das medidas legislativas, senão principalmente na máxima corrupção administrativa e judiciária que lavrava no país. Ministros da Coroa, conselheiros de estado, senadores, deputados, desembargadores, juízes de todas as categorias, autoridades policiais, militares, agentes, professores de institutos científicos, eram associados, auxiliares ou compradores de africanos livres. Os carregamentos eram desembarcados publicamente, em pontos escolhidos das costas do Brasil, diante das fortalezas, à vista da polícia, sem recato nem mistério. Eram os africanos, sem embaraço algum, levados pelas estradas, vendidos nas povoações, nas fazendas, e batizados como escravos pelo reverendos, pelos escrupulosos párocos!...”
Era, portanto, indispensável, como ele logo percebeu, lavrar combate à instituição infame, não apenas como advogado, mas também pela militância política.
Aí, porém, sua decepção foi absoluta. Começou por atuar no partido liberal, abandonando-o quando sentiu a falsidade desse liberalismo, que compactuava com a escravização do ser humano. Ingressou, então, no Clube Radical, em companhia de Rui Barbosa, seu fiel amigo e admirador até o fim da vida. Inscreveu-se, depois, como fundador do partido republicano, mas dele se retirou quando, por ocasião do seu Primeiro Congresso, realizado em São Paulo em 2 de julho de 1873, viu aprovada, contra os seus protestos indignados, a seguinte declaração:
1. Em respeito ao princípio federativo, cada província realizará a reforma [da escravidão] de acordo com seus interesses peculiares, mais ou menos lentamente, conforme a maior ou menor facilidade na substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre;
2. Em respeito aos direitos adquiridos e para conciliar a propriedade de fato com o princípio da liberdade, a reforma se fará tendo por base a indenização e o resgate.
Dessa amarga experiência partidária, Luiz Gama retirou a lição capital de que, sem um amplo movimento de revolta popular, o meio político saberia manter a escravidão até o extremo limite do seu natural esgotamento. Inspirado no seu exemplo de vida, Antonio Bento de Souza e Castro organizou em São Paulo, logo após a morte de Gama, o movimento dos caifazes, que promoveu a fuga de milhares de escravos. Graças a esse movimento, não só desorganizou-se irremediavelmente a lavoura nos grandes domínios rurais paulistas, mas, sobretudo, suscitou-se no seio do povo a consciência do caráter criminoso da servidão. Na Corte e em vários outros municípios do Rio de Janeiro, a multidão saiu às ruas, nos anos seguintes, para exigir, não obstante a violenta repressão das forças policiais e a ação sanguinária dos capangas do latifúndio, a imediata abolição da escravatura.
Foi nesse ambiente de verdadeira insurreição popular que se instalou a sessão legislativa de 1888, no dia 3 de maio. Dez dias depois era sancionada a lei que punha fim à escravidão.
Como se percebe, a opção abolicionista de Luiz Gama foi bem diversa da ação estritamente parlamentar, encarnada por Joaquim Nabuco. A História veio demonstrar que a razão estava com o grande advogado negro.
Que isto nos sirva de modelo, para enfrentarmos a magna questão, que sempre esteve na raiz de todos os nossos crimes históricos, a começar pela própria escravidão: a permanente fraude política, que encobre, sob o roto véu das proclamações retóricas, a nudez crua da dominação oligárquica, seja ela econômica, militar ou burocrática. Tivemos, no Império, um liberalismo escravocrata. Inauguramos, em seguida, uma república privatista e uma democracia sem povo. Procuramos, enfim, legitimar todos esses embustes por meio de um constitucionalismo meramente ornamental.
Afinal, que democracia é essa, na qual o povo soberano é sistematicamente afastado das grandes decisões políticas, a começar pela regulação constitucional dos próprios mecanismos dessa representação? Até hoje, temos logrado escamotear, na prática, a distinção fundamental entre Poder Constituinte e poderes constituídos, que Sieyès formulou pela primeira vez em seu célebre opúsculo de fevereiro de 1789 (Qu’est-ce que le Tiers état?): “Em qualquer de suas partes, a Constituição não é obra do poder constituído, mas do poder constituinte. Nenhuma espécie de poder delegado pode mudar as condições de sua delegação”.
Ora, até a presente data, a Constituição de 1988 já foi emendada 59 vezes pelo Congresso Nacional, e em nenhuma dessas ocasiões o povo, do qual todos os poderes emanam, como proclama enfaticamente o texto constitucional, foi chamado a dizer se concordava ou não com a reforma votada pelos seus autodenominados representantes.
Que democracia é essa, em que o povo não tem o poder de destituir aqueles que elegeu; em que não tem o poder de iniciativa para decidir, em plebiscito ou referendo, questões de interesse vital da nação? Que democracia é essa, em que a iniciativa popular de projetos de lei é desestimulada de todas as maneiras, enquanto o Presidente da República, com uma penada, pode baixar medidas provisórias de imediata vigência, e cuja apreciação legislativa tranca a pauta das deliberações do Congresso Nacional? Que democracia é essa, em que os mandatários do povo fixam unilateralmente os seus próprios subsídios, sem consulta ao mandante; em que o cidadão não tem, como tinha sob o regime da Constituição imperial de 1824, o direito de propor uma ação popular criminal contra os magistrados envolvidos em casos de corrupção, peculato ou concussão?
A conclusão é óbvia, embora francamente estarrecedora. O povo brasileiro vive, sem o saber, em estado de servidão voluntária, aquela situação de ignóbil passividade, já denunciada no século XVI por Etienne de la Boëtie em panfleto famoso.
A mais importante missão da Ordem dos Advogados do Brasil, neste momento histórico, consiste, portanto, em seguir o exemplo luminoso de Luiz Gama, o maior advogado brasileiro do século XIX e um dos nossos mais dignos advogados de todos os tempos: lutar sem tréguas e em todas as frentes de batalha pela libertação política do povo brasileiro.
Que Deus nos ajude!