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Britto: povo não é burro; não se pode temer a soberania popular

terça-feira, 6 de março de 2007 às 17h42

Brasília, 06/03/2007 - O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Cezar Britto, afirmou hoje (06) que “não há porque temer a soberania popular; ela não pode ser apenas figura de retórica constitucional, precisa tornar-se real”. Ele fez esta afirmação em discurso durante a solenidade de posse da presidente da Seccional OAB do Distrito Federal, Estefânia Viveiros. “O povo é soberano, não é burro como pensam alguns”, sustentou Britto ao defender a ampliação dos instrumentos de soberania popular previstos no artigo 14 da Constituição, como o plebiscito, referendo e projeto de lei de iniciativa popular, no bojo da reforma política proposta pela entidade à Câmara dos Deputados esta semana.

O presidente nacional da OAB afirmou que a entidade é apolítica e não se associa a movimentos ideológicos, “mas não teme o povo e quer vê-lo como agente de seu destino”. Por isso, reivindica a regulamentação dos instrumentos de participação democrática direta previstos na Constituição de 1988. Ele ressaltou, a seu ver, o que representa um exemplo de sabedoria do povo e da importância de ampliação dos instrumentos previstos no artigo 14: “Basta ver que a primeira lei de iniciativa popular no País, aprovada pelo Congresso - e lei 9.840/99, de combate à corrupção eleitoral - tem sido um eficaz instrumento de saneamento moral das instituições políticas”.

Cezar Britto salientou que, se a reforma política for feita em profundidade e sob a supervisão da sociedade civil, levando em conta sua pluralidade, ela conferirá respeitabilidade ao processo político e aos próprios legisladores e governantes. “É essa respeitabilidade, que deriva do fator confiança, que hoje está em falta; sem ela o processo político não se sustenta, e o Estado democrático de Direito corre riscos, sérios riscos”, observou.

Nesse sentido, Britto citou que a discussão sobre a tragédia do menino João Hélio Fernandes - morto no Rio de Janeiro por bandidos que o arrastaram em um carro por diversas ruas -, não deixa de estar associada “ao histórico quadro de debilidade moral da política institucional brasileira”. E acrescentou: "Por isso, achamos ineficaz que se discutam medidas pontuais em relação à legislação penal, como o agravamento de penas, em nome da superação do quadro de violência e criminalidade”. Para ele, as medidas pontuais não podem deixar de ser examinadas, mas “se não as associarmos a mudanças mais abrangentes no panorama institucional do País, a mudanças mais profundas na mentalidade política dos governantes, estaremos mais uma vez enxugando gelo”.

Segue a íntegra do discurso proferido pelo presidente nacional da OAB na sessão de posse:

"Senhoras e senhores

É com grande prazer que compareço a esta solenidade de posse, saudando a advogada Estefânia Viveiros e sua diretoria, desejando pleno êxito na honrosa missão de presidir esta Seccional, uma das mais importantes da OAB.

Padre Antonio Vieira, no sermão da Primeira Dominga do Advento, em 1650, resumia a vasta gama de pecados da humanidade em duas categorias: a dos pecados de omissão e a dos pecados de conseqüência.

A primeira, segundo ele, decorre das ações; a segunda, das inações (“pecado que se faz não fazendo”). E não hesitava em considerar bem mais graves os primeiros: “Os menos maus perdem-se pelo que fazem (...); os piores perdem-se pelo que deixam de fazer.”

Ao longo dos 77 anos de sua história, a OAB jamais se incluiu na segunda categoria de pecadores. Jamais cometeu o delito da omissão. Esteve sempre presente – corajosamente presente - nos momentos fundamentais da história da República, imprimindo sempre, nas lutas de que participou, seu ideário de liberdade e justiça.

Se equívocos cometeu – e a imperfeição humana os torna algumas vezes inevitáveis -, foi por agir, foi por buscar o melhor para o país. Não pecou por inércia ou acomodação.

Não temos dúvida, por isso mesmo, de que o saldo histórico nos é amplamente favorável.

A Ordem é, hoje, uma das instituições mais acreditadas do país. Está longe de ser apenas um órgão corporativo.

Sem deixar de ser a Casa do Advogado e defender os seus mais legítimos direitos corporativos, é também – e sobretudo - tribuna da sociedade civil brasileira, instância de defesa da República e de suas instituições.

Esse status, decorrência natural de nosso comportamento histórico, das causas cívicas em que nos envolvemos, tornou-se, a partir de 1994, imperativo legal, quando o Congresso Nacional aprovou o Estatuto da Advocacia e da OAB, lei 8.906.

Em seu artigo 44, inciso I, antes de deter-se em questões de ordem profissional, essa lei nos compromete, entre outras coisas, com a defesa da Constituição, da ordem jurídica do Estado democrático de Direito e com a boa aplicação das leis.

Temos, pois, o dever legal de estabelecer vigilância ativa e permanente no cenário político-institucional, sem, no entanto, nos envolver com o seu varejo partidário. Nem todos – mesmo entre os profissionalmente vinculados à atividade política – conhecem essa faceta relevante e fundamental do papel institucional da OAB.

Alguns supõem que a Ordem é tão-somente um sindicato – e que, portanto, não deveria se meter em política. Outros que deveria ser uma autarquia estatal, com suas contas submetidas ao Tribunal de Contas da União e obediente ao comando de governos. Mas a Ordem é o que sua história lhe impôs – e a lei ratificou: uma tribuna da cidadania, uma instância independente de defesa do Direito e da Justiça.

Não pertence ao Estado; pertence à advocacia e à sociedade.

Isso não significa que tenha que estar necessariamente em conflito com o Estado. Com a mesma independência com que critica, pode e deve, quando for o caso, elogiar, apoiar.

Mas não pode jamais abrir mão de sua visão crítica e de seu distanciamento dos grupos e facções do cenário político.

Sucedem-se as administrações, alteram-se os estilos e a retórica dos que a dirigem, mas não muda – e não mudará - o objetivo institucional da OAB: o aprimoramento da cidadania, a defesa do primado da justiça.

E já aí temos em síntese as carências máximas da sociedade brasileira contemporânea: cidadania e justiça.

Uma decorre da outra. Sem cidadania, não há justiça – e vice-versa. E é a ausência de ambas que transformou o Brasil contemporâneo num país violento e cético. Um país de muitas vítimas e poucos cidadãos.

O termo cidadania, que adquiriu status político na antiga Grécia, berço da democracia, readquiriu-o, de maneira ainda mais consistente, no curso da revolução Francesa.

Exprime uma condição ativa, participativa do ser humano, vinculando-o à coletividade. Cidadão é quem cumpre deveres e exerce direitos em relação à Polis, referência máxima de sua existência. Daí a importância fundamental da atividade política, indissociável do conceito de civilização.

Se hoje a política não exprime a nobreza de seus propósitos, é porque está enferma – e essa enfermidade contamina como metástase a própria civilização. Urge, pois, saneá-la.

Nesse sentido – e tendo em vista que não compactua com a omissão -, a OAB, na gestão passada, instalou um Fórum da Cidadania para a Reforma Política, sob a coordenação de Fábio Konder Comparato.

O Fórum reuniu cerca de 40 entidades da sociedade civil e produziu um anteprojeto de reforma, que, aprovado pela unanimidade do Conselho Federal, em dezembro do ano passado, foi, neste meu início de gestão, encaminhado ao Congresso Nacional.

Alguns, mal-informados, nos acusaram de intromissão indébita no varejo político. Erraram duas vezes. Primeiro porque não há intromissão alguma. Basta que se leia o já mencionado artigo 44, da lei 8.906. Segundo porque reforma política não é varejo. É questão vital, estrutural.

É a política que organiza, estrutura a sociedade. É o ponto de partida para que os cidadãos resolvam, em ambiente de justiça e de concórdia, suas demandas.

No Brasil, tem sido fator de injustiça e discórdia por uma razão muito simples: nosso sistema político é disfuncional, caótico. Induz a práticas iníquas, de que recentemente tivemos um triste painel.

Como silenciar diante disso? Seria bem mais cômodo para nós simplesmente criticar, cobrar e nada propor. Com certeza, nos pouparíamos de ataques, incompreensões e ressentimentos. Mas optamos por agir - propor, correr riscos.

A reforma política, tema que pontuou a campanha eleitoral do ano passado, foi assumida como compromisso prioritário por todos os candidatos e partidos, o que confirma sua urgência e relevância.

Não há dúvida de que corresponde a uma demanda ética e funcional da sociedade brasileira. Ética porque já não é possível conviver com instituições deterioradas, desacreditadas perante a sociedade que devem representar.

E funcional porque, além do descrédito, há a ineficiência de um sistema que, moldado por casuísmos e interesses nem sempre confessáveis, produz mais impasses que soluções.

A verdade é que a política brasileira não cumpre seu papel de gerente dos interesses da coletividade. É cada vez mais estuário de demandas privadas. E não há nisso nenhuma novidade.

Desde os tempos da monarquia e dos primórdios da República, o diagnóstico das recorrentes crises políticas que assolam o país é sempre o mesmo: disfuncionalidade e descrédito do sistema – falta de transparência, de devoção cívica dos agentes políticos e, sobretudo, ausência de povo.

As dificuldades econômicas que o país tem enfrentado ao longo dos últimos 25 anos relacionam-se com a crise de credibilidade política, que, por sua vez, decorre de três fatores básicos, que fizemos constar da exposição de motivos de nosso proposta encaminhada ao Congresso no início deste ano, a saber:

1) persistente marginalização do povo, impedido de participar diretamente das grandes decisões políticas, não só na esfera nacional, mas também no plano local;
2) representação popular falseada, que acabou criando um pequeno mundo político irresponsável, cada vez mais distanciado da realidade social;
3) incapacidade institucional do Estado brasileiro de elaborar e conduzir programas de ação de longo prazo, com base num projeto de desenvolvimento nacional.

De crise em crise – e sobretudo com o indefectível adiamento das soluções, geração após geração -, chegamos aos dias de hoje, em que os segmentos formadores de opinião se perguntam se há solução para tantos impasses.

Há. Basta determinação política – e, claro, ação. Omissão não transforma, não corrige injustiças. Apenas as consolida.

Com essa certeza, a OAB decidiu arregaçar as mangas e agir. O anteprojeto que remetemos ao Congresso propõe mudanças nos sistemas eleitoral e partidário.

Com relação aos partidos, não se pretende, como é óbvio, torná-los fortes e autênticos por via de lei, o que seria artifício primário. O que se quer é minorar, tanto quanto possível, a predominância do caciquismo interno e de sua instrumentalização pelo poder econômico privado.

Para tanto, propusemos, entre outras providências básicas:

proibir o parlamentar eleito de mudar de partido, a contar da data da eleição e durante toda a legislatura; proibir os partidos de receberem doações, devendo manter-se exclusivamente com as contribuições de seus filiados e os recursos do Fundo Partidário.

São providências saneadoras, que não visam a contemplar essa ou aquela facção, mas tão-somente ao povo, soberano, tornando mais cristalina e autêntica a manifestação de sua vontade.

Dentro desse objetivo, propusemos a revogação popular de mandatos eletivos (recall), já objeto de proposta anterior da OAB e hoje expressa na emenda constitucional nº 0073/2005, em tramitação no Senado Federal.

Há ainda medidas relacionadas a inelegibilidades, coligações, acesso à propaganda gratuita na mídia eletrônica e à prestação de contas de campanha, sempre com o objetivo de dar transparência, conteúdo popular e funcionalidade ao processo político.

Não há porque temer a soberania popular. Ela não pode ser apenas figura de retórica constitucional. Precisa tornar-se real. Por essa razão, há quase três anos, lançamos campanha de defesa da República e da democracia, iniciando-a com a remessa ao Congresso de dois projetos de lei que tornam efetivas as manifestações da soberania popular consagradas no artigo 14 da Constituição Federal, que trata dos instrumentos da democracia direta: plebiscito, referendo e iniciativa popular legislativa.

Fomos por isso criticados, como se estivéssemos a reboque de projeto populista tendente a abolir as instituições representativas da República. Houve mesmo quem quisesse nos vincular ao movimento bolivarista e coisas do gênero.

A OAB não se associa a movimentos ideológicos. É instituição plural e apartidária.

Mas não é apolítica. Nem elitista. Não teme o povo e quer vê-lo como agente de seu destino.

O povo é soberano. Não é burro, como pensam alguns. Basta ver que a primeira lei de iniciativa popular aprovada pelo Congresso – a Lei 9.840 -, de combate à corrupção eleitoral, tem sido um eficaz instrumento de saneamento moral das instituições políticas. Já permitiu, nas três últimas eleições, a cassação de nada menos que 421 políticos – entre os já diplomados ou com candidaturas registradas.

Essa lei inspirou a criação do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, que congrega importantes entidades da sociedade civil, entre as quais a OAB.

O povo definitivamente não é burro, minha cara Estefânia. Burro é quem pensa assim.

Foi a Constituição de 1988 que concebeu os instrumentos de democracia direta que queremos ver regulamentados. E não há nisso novidade.

Bem antes de qualquer movimento bolivarista, o Brasil já exercitava a democracia direta. Foi assim em 1962, quando, por meio de plebiscito, consultou a população a respeito do recém-adotado regime parlamentarista de governo. O povo o revogou, restabelecendo o presidencialismo.

Trinta anos depois, nova consulta direta, agora envolvendo a natureza do regime e do sistema de governo – se parlamentarista ou presidencialista, se republicano ou monárquico –, conforme estabelecido pelo constituinte de 1988.

Ano retrasado, mais uma consulta – esta a respeito da proibição do uso de armas, em que o povo manifestou-se contrariamente. Não há, pois, repito, novidade, nem muito menos tentativa de copiar ninguém ou agregar-se a movimentos políticos.

O que se quer é tornar essas consultas mais freqüentes, como instrumentos de aperfeiçoamento da democracia.

A OAB não se acha dona da verdade. A proposta que remeteu – aprovada, repito, pela unanimidade do Conselho Federal - será submetida ao Congresso Nacional, que é livre para acatá-la, emendá-la e até rejeitá-la. Só não aceitamos que se omita, que a ignore. Queremos que o debate se estabeleça e envolva a sociedade.

Sabemos que a reforma política não é panacéia, nem um fim em si mesma. É ponto de partida para a restauração da confiança popular em nossa República. Se feita em profundidade, sob a supervisão da sociedade civil e levando em conta sua natureza plural, há de conferir respeitabilidade ao processo político e aos próprios legisladores e governantes.

E é essa respeitabilidade, que deriva do fator confiança, que hoje está em falta. Sem ela, o processo político não se sustenta, e o Estado democrático de Direito corre riscos. Sérios riscos.

Não há como dissociar tragédias como a que envolveu o menino João Hélio, no Rio de Janeiro – e que se reproduzem diariamente em todo o país -, do histórico quadro de debilidade moral da política institucional brasileira.

Por isso, achamos ineficaz que se discutam apenas medidas pontuais em relação à legislação penal – como o agravamento de penas -, em nome da superação do quadro de violência e criminalidade. Seria iludir o povo e a nós mesmos.

Não podemos, como é óbvio, deixar de examinar essas questões pontuais. Mas, se não as associarmos a mudanças mais abrangentes no panorama institucional do país, a mudanças profundas na mentalidade política dos governantes, estaremos mais uma vez enxugando gelo.

Quero que esta gestão que tenho a honra de presidir, seja marcada, como disse em meu discurso de posse, pela presença efetiva da OAB junto à sociedade e ao Estado, vocalizando demandas, denunciando o que for preciso e influindo na formulação de políticas públicas.

O Conselho Federal não tem a pretensão de agir isoladamente. Quer estar em sintonia com as seccionais, tirar proveito da capilaridade de nossa instituição, de modo a expressar a diversidade e pluralidade que a caracterizam.

Nesse trabalho, não tenho dúvida de que poderemos mais uma vez contar com o inestimável apoio desta Seccional do Distrito Federal, que até por sua proximidade física – mas não apenas por isso – tem sido colaboradora fiel do Conselho Federal.

Concluo renovando, na pessoa de Estefânia Viveiros, votos de pleno êxito a esta administração.

Muito obrigado.

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