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PRONUNCIAMENTO DE RUBENS APPROBATO NA CONFERÊNCIA

terça-feira, 12 de novembro de 2002 às 17h09

Salvador, 12/11/2002 - Leia, abaixo, na íntegra, o pronunciamento do presidente nacional da OAB, Rubens Approbato Machado, na abertura da XVIII Conferência Nacional dos Advogados.

MINHAS SENHORAS, MEUS SENHORES

Há, na vida das instituições civis, momentos de alta significação e gravidade.

São os momentos em que, movidas pelas circunstâncias, levadas pela conjuntura a dar efetivas respostas às mais prementes demandas dos grupos que representam na sociedade, elas se obrigam a exprimir o seu ideário e a levantar alto o seu facho de luz.

Estamos vivendo um desses momentos especiais.

Estamos no limiar de um novo ciclo governamental e político, a se inaugurar com a posse dos governantes eleitos no pleito que se findou: Presidente da República, Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e dos novos Parlamentares que irão compor o Congresso Nacional e as Assembléias Legislativas.

A importância desse histórico instante não decorre exclusivamente do ingresso de novos atores na cena institucional, mas da gravidade a que se pode atribuir o estado geral da Nação.

Cabe à OAB, por força legal e dentro de sua missão institucional, bem assim aos advogados, em razão de sua missão social, estar presentes no encaminhamento de propostas e de cobranças, para o Brasil enfrentar e buscar soluções aos seus desafios emergentes. E este é o momento de darmos a nossa face à nação.

O Brasil chegou ao limite de seu maior desafio histórico: ou promove as reformas necessárias para o seu definitivo ingresso no mundo das Nações desenvolvidas ou estará condenado a permanecer estático, vendo se multiplicar as demandas sociais ante uma visível deterioração das estruturas públicas. Sem desprezar as conquistas havidas, precisamos avançar, caminhar firmes para nos livrarmos dos grilhões das disparidades sociais.

A Ordem dos Advogados do Brasil, no melhor entendimento de sua missão institucional, instala a sua XVIIIa. Conferência Nacional dos Advogados, inspirada na idéia de fazer a mais abrangente leitura da realidade social, política, econômica e cultural do país.

Escolheu para tanto o místico território baiano; a sagrada cidade de Salvador.

Sagrada por se integrar ao torrão abençoado, onde se fincaram as primeiras estacas da Pátria descoberta.

Sagrada por representar o sincretismo religioso de um povo devotado às mais profundas tradições da nossa história.

Com orgulho cívico e com o coração tomado pelo desejo de somar as nossas forças à gigantesca tarefa de mudar o Brasil, abro esta Conferência Nacional dos Advogados, na crença de que, daqui sairemos, mais esperançosos, mais fortes e mais solidários às causas do desenvolvimento da Pátria.

E, no intuito de prestar a minha singela colaboração aos debates que aqui se travarão, ao longo dos próximos dias, quero deixar registrada a minha particular leitura sobre alguns eixos temáticos que integram a pauta central de nossa Conferência, dedicada ao tema CIDADANIA, ÉTICA e ESTADO.

Perdoem-me por iniciar a esta oração com uma observação, ainda que possa parecer negativa. Faço-a, porém, consciente do dever de construir, tirando lições e exemplos do passado e do presente.

O Brasil, por mais esforço que possa ser reconhecido, ainda não se libertou dos padrões paternalistas e cartoriais que caracterizam a implantação de nossas instituições sociais, políticas e econômicas. E este fato nos induz a concluir: somos indivíduos, mas ainda não somos cidadãos.

Percebe-se um formidável conjunto de distorções nas estruturas do mercado, do sistema político e do Estado, responsáveis por uma operação inadequada quando não eivada de vícios históricos.

Estes três segmentos institucionais infelizmente ainda operam de acordo com padrões tradicionais, que não nos libertamos, significando a lógica clientelista, que compromete a eficiência do mercado, privatiza o Estado e fragiliza as instituições políticas, sobretudo os partidos.

Vimos no curso das discussões das campanhas eleitorais que se findaram, que todos os candidatos, sem exceção, puseram na mesa das esperanças nacionais a palavra mudança, a revelar a necessidade de analisarmos nossas carências e darmos caminhos às soluções que se fazem urgentes.

Sabemos que, nos países ditos modernos e democráticos, a meta consiste em se maximizar os benefícios e minimizar os custos sociais da operação de cada um dos eixos dos sistemas mercado, Estado e instituição política. No nosso caso, isso não ocorre.

O que vemos é uma extraordinária concentração de capitais, que reduz a competição, criando rigidez e privilégios, enquanto a concentração de renda continua a promover desigualdades e a diminuir a capacidade de combater a pobreza que abriga, hoje, cerca de 50 milhões de brasileiros.

Sabemos que o mercado é o mecanismo mais eficiente para produzir e distribuir bens de uso individual. Não é seu papel produzir bens para uso coletivo. Por isso mesmo, o mercado é o ambiente para os mais fortes, não contendo, em si mesmo, instrumentos para proteger os mais fracos. Nesse caso, sobressai a responsabilidade social do Estado. Cabe a ele proteger os mais fracos e garantir a harmonia social e o interesse coletivo. Mas, de outro lado e simultaneamente, é de seu dever criar condições para maximizar as potencialidades do mercado, estabelecer equilíbrio entre crescimento, acumulação e redistribuição de bens.

Só o Estado poderá regular o mercado para que este se afine à meta de fazer a provisão de bens econômicos para uso individual. E só o Estado é capaz de prover uma redistribuição justa de bens de uso coletivo.

Não é, contudo, o que percebemos nas estruturas do mercado e do Estado brasileiro.

Os estrangulamentos começam com a extrema dependência do país, que precisa captar vultosos recursos no exterior para equilibrar a sua política econômica e estabilizar a balança de pagamentos. E isso implica e faz decorrer a garantia à alta rentabilidade ao capital especulativo, oferecendo-se juros superiores aos vigentes no mercado internacional. Essa necessidade provoca uma desproporção entre o tamanho da acumulação de capitais e o tamanho da base produtiva real. Os grupos financeiros que fazem a intermediação dos capitais especulativos ganham montanhas de dinheiro, sem que a economia brasileira receba capital estrangeiro de investimento em grande quantidade, impedindo a absorção de capitais produtivos.

E assim, o Estado fica cada vez mais à mercê dos capitais especulativos, enquanto as empresas se submetem a um intenso grau de incertezas, por estarem sujeitas às tendências do mercado, além de sofrerem as conseqüências da política de juros altos. Não é de se admirar quando se observa o resultado: o desmonte das cadeias produtivas, a falta de previsão, a irracionalidade social e macroeconômica, o desemprego em massa, o desequilíbrio na balança de pagamentos.

A estratégia consensual de se incentivar a base de exportação é infelizmente comprometida por uma política que não contempla o peso das pequenas e médias empresas nacionais. Não mais de 200 empresas respondem por mais de 50% das exportações brasileiras, enquanto a maior parte se sente marginalizada, acumulando sua capacidade ociosa.

Se colocarmos essa moldura em uma escala de referências históricas, podemos aduzir que a condição brasileira, em vários aspectos, ainda relembra a situação colonial, em função da subordinação às diretrizes externas, ou seja, estamos presenciando a existência de um mercado internacional agindo como centro de propulsão de nosso sistema econômico. Por outro lado, ainda dentro do mesmo raciocínio, constatamos que a base produtiva do nosso país se fragiliza todas as vezes que se vê diante de vulnerabilidades externas.

Não por acaso, os núcleos modernos do sistema produtivo deixam de absorver mão de obra. Não por acaso, vemos multiplicar os compartimentos que dividem os brasileiros em indivíduos de primeira, segunda e terceira classes. Não por acaso, o território se vê fragmentado, estiolado, dividido, na esteira das guerras fiscais que separam as unidades federativas. Não por acaso, a nossa identidade cultural se degrada.

O pano de fundo dessa moldura é a natureza cartorial do Estado e a política de clientelas caracterizadoras de um arcaico sistema político.

Fatores geradores das seqüelas e distorções podem, ainda, ser apontados nas permanentes dificuldades de relacionamento entre os Poderes. A precária governabilidade tem como fonte a inadequação do sistema de Governo, onde um presidencialismo forte tem de se relacionar com um Legislativo, onde parte dele se inspira no pragmatismo do interesse imediatista. Disso resultam tensões entre esses Poderes, o que, de pronto, nos remete para a meta de se avaliar o perfil de um sistema de Governo mais compatível às demandas da sociedade emergente.

Não podemos, também, deixar de apontar a extensividade da Constituição Federal, que, ao invés de se contentar em abrigar princípios e diretrizes genéricas, desce ao detalhismo regulamentador, cuja aplicação não se sustenta na prática, sendo certas normas inviáveis e incompatíveis com as condições econômico-sociais. Lembramos que as Constituições Democráticas das Nações do chamado primeiro mundo restringem seus dispositivos a comandos dirigidos às coisas essenciais.

Uma inadequada repartição de recursos e encargos deflagra conflitos e guerras fiscais entre as unidades federativas, comprometendo o ideal da harmonia federativa. Ademais, a autonomia dos Poderes e a autonomia da União, dos Estados e Municípios não se amparam em parâmetros reguladores, capazes de evitar o nepotismo, o empreguismo, o grupismo, mazelas que assolam e corroem o tecido institucional, dando, mais uma vez, vazão às práticas colonialistas das capitanias hereditárias.

A conclusão não poderia ser outra: povoam-se feudos políticos, herança das sesmarias coloniais, que se utilizam das mais variadas formas de dominação. Disputam-se fatias de poder usando-se de todos os meios possíveis. Infelizmente, o homem simples tem a impressão de que a política se transforma em um formidável empreendimento negocial. A conquista do poder, sem obediência aos preceitos éticos, desvirtua e corrompe as normas, as práticas e os métodos da política.

A verdade é que o Estado brasileiro, sob a idéia central de preservação da ordem pública, contribui e muito para a degradação da vida de muitos grupos. Temos de reconhecer que ele não está preparado para educar, para resgatar a dignidade de pessoas que cometem delitos, para lhes oferecer um tratamento decente nos cárceres.

Infelizmente, a tão batida expressão “soberania da lei” pode ser entendida também como antidemocrática. Um Governo de leis e não de homens, todos o sabem, acaba resvalando pela tirania. Estar subordinado a leis cujos dispositivos não são democráticos, no espírito, na intenção e nos resultados, não gera democracia.

A lei, como instrumento de Governo, bem o sabemos, pode ser usada para a tirania ou para a justiça, para a liberdade ou para a opressão, para a eqüidade ou para a iniqüidade, para consolidar a democracia ou para enfraquecê-la, como bem lembra Leslie Lipson, em A Civilização Democrática. Sabemos que os nossos valores democráticos são precários. Por acaso, podemos dizer que praticamos igualdade de direitos para todos? A sociedade está provida de todos os recursos e meios para seu bem estar? Praticamos uma verdadeira justiça social?

Essas perturbadoras indagações merecem dos homens públicos, de todos nós aqui reunidos nesta Conferência, enfim, de toda a sociedade, profunda reflexão.

É nosso dever, é dever do Estado, preservar os direitos sociais, as normas positivas, a ordem pública, mas não podemos afastar de nossa responsabilidade a meta de promover, a toda hora, o cotejo entre os direitos da coletividade, do Estado e os direitos fundamentais dos indivíduos.

A propósito, John Stuart Mill, em seu famoso ensaio On Liberty, escreveu: “se toda a humanidade, com exceção de uma pessoa, tivesse opinião contrária, a humanidade não teria mais razão em silenciá-la do que ela à humanidade”.

Por quê? Porque se silenciamos uma opinião, estamos silenciando parte da verdade. Mesmo uma opinião errada pode conter parcela de verdade. Se a verdade for a opinião geral, essa opinião não poderá ser sustentada em bases racionais antes de testada e defendida. E, ainda, quando uma opinião de domínio geral não é criticada de tempos em tempos, perde a sua vitalidade e efeito.

Este é um princípio basilar da democracia. Os cidadãos não podem ser sufocados pelo poder do Estado. Só mesmo em um regime ditatorial, o Estado supera o homem na escala de valores. Por isso mesmo, a administração da Justiça em nosso país não pode deixar de considerar, nessa quadra de tão agudos problemas sociais, os pilares que sustentam o edifício da dignidade humana.

Sob esse prisma, emerge, de maneira clara a constatação: a nossa democracia carece de conteúdo social. A democracia não deve se limitar à observância de regras formais. Deve prover as necessidades essenciais do povo, pois, afinal de contas, ele é o agente, o meio e o fim do desenvolvimento. Para se sentir essa ausência de conteúdo social, basta vermos o terrível quadro das desigualdades sociais, que colocam o Brasil num patamar pouco lisonjeiro:

os 10% mais ricos concentram 50% da riqueza nacional

os 50% mais pobres detêm apenas 10% dessa riqueza

40% da população brasileira vivem abaixo da linha de pobreza

50 milhões de brasileiros não conseguem ter uma alimentação suficiente

o Brasil está, no Índice de Desenvolvimento Humano, aferido pela ONU, no 69o lugar, muito atrás de países como Argentina, Chile, Uruguai, entre outros.

Senhoras e Senhores:

Coloquem os conceitos e os cenários traçados até o momento em sua consciência. Não tomem, por enquanto, nenhuma decisão. Só peço que façam à consciência uma pergunta: será possível se falar, neste momento, em cidadania em um Estado com as proporções desenhadas?

A minha consciência responde que NÃO!.

Por conseguinte, aduzo: estamos muito distantes de atingir a plena Cidadania. Querem mais exemplos?

Confrontemos o plano teórico com a realidade prática. Vamos ler a Constituição. Diz ela, em seu artigo 3º:

Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Está aí plenamente descrito o escopo fundamental da cidadania, base sobre a qual se assentam os Direitos Humanos. A cidadania se ampara na igualdade de cada um, na promoção do bem comum, no acesso de todos aos bens, aos serviços e às riquezas nacionais.

O artigo 5º da CF, que trata dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, assegura as condições básicas para o direito a uma vida condigna, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Para não ficarmos apenas no terreno das constatações e descrição dos dispositivos normativos constitucionais, tomemos como parâmetro de nossa reflexão e a título exemplificativo, a questão do direito à terra, do direito à moradia. Trata-se de um direito inalienável para a construção da identidade dos cidadãos. Sem respeito a um direito como esse, não há como se garantir a dignidade, valor-central dos cidadãos.

Um país de dimensão continental como o nosso não pode passar pela vergonha de excluir milhares de brasileiros do direito à terra. E por que isso ocorre? Primeiro, porque a forma de apropriação do território resultou em uma estrutura de propriedade de terra extremamente discriminatória, comandada pelas elites, a partir das sesmarias, que pertenciam aos grandes senhores. As terras devolutas ficavam com a Coroa e seus amigos, que passaram a receber glebas imensas, impedindo-se aos pobres ter acesso legal à propriedade. Nosso direito agrário surgiu para defender o monopólio da terra, agindo no sentido de legitimar a desocupação, não servindo para organizar o uso do território de acordo com as necessidades sociais.

A terrível herança histórica apresenta o seu preço: falta de terra num país de muita terra para milhares de cidadãos. A esse trágico quadro se acrescenta que, em várias regiões, especialmente na área rural, como levantado pela Comissão Pastoral da Terra, impera o regime do trabalho escravo.

A fisionomia das ruas, a proliferação das favelas e palafitas, está a exibir uma outra face, desta feita, na esfera da miséria urbana: a carência de habitações. Sem terra e sem casa, parcelas ponderáveis da população ficam condenadas a perpetuar sua condição sub-humana.

“Sem respeito aos direitos, não existem grandes povos; quase poder-se-ia dizer que não há sociedade; pois o que vem a ser uma reunião de seres racionais e inteligentes, cujo único laço é a força?”. Esse conceito lapidar de Alexis de Tocqueville nos remete para uma questão que está na ordem do dia dos problemas brasileiros:

- Que valores são mais importantes no julgamento de causas envolvendo os direitos sociais e os direitos individuais? o que deve prevalecer, por exemplo, a relevante e necessária defesa do meio ambiente em face da também relevante e necessária defesa da dignidade de cidadãos lesados que ocupam terrenos de preservação de mananciais, decorrentes de explorações muitas vezes sob as vistas grossas da administração pública, ou que ocupam terras para poder construir a sua casa e gerar condições de subsistência?

A resposta a estas polêmicas questões resvala pelo cotejo de valores que fundamentam a cidadania. Temos de nos valer, preliminarmente, do conceito de que a democracia exprime isonomia, liberdade. O mencionado artigo quinto de nossa Constituição se inicia afirmando: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade…” E no inciso III: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Aí estão consignados preceitos morais que fundamentam os alicerces dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Esse raciocínio preambular nos leva à afirmação de que, no exemplo suscitado, o direito à moradia é um daqueles direitos fundamentais da pessoa humana, na letra fria da lei maior. Mas, a realidade é feita de injustiça e indiferença. A carência habitacional nos centros urbanos é um problema gravíssimo, fruto de distorções sociais e econômicas. Só em São Paulo ultrapassa essa deficiência a um milhão de moradias. O Brasil vem se transformando no que se chama de uma “sociedade darwiniana”, na qual os menos favorecidos não têm condições de sobreviverem e são deixados para trás, esquecidos, pelo Poder Público.

Uma das alternativas encontradas pelas famílias de pouca renda é a aquisição de lotes, a baixo custo, quase sempre levados, por erro, a loteamentos irregulares. No entanto, o que parece ser o início de uma solução, menos paliativa, acaba se transformando para esses excluídos na somatória da violação de mais um de seus direitos constitucionais – a dignidade. A ação estatal, na defesa das regras postas, obriga a desocupação das áreas irregulares, muitas vezes com o uso da força. Convém, todavia, afirmar que é indigno ser despejado com humilhação, ser privado de um teto para abrigar a família, sendo exposto à intolerância e à inadequação de soluções por parte do Poder Público. O fundamento da Justiça se solidifica no reconhecimento da dignidade como sendo inerente a todos os seres humanos.

É dever do Estado assegurar a todos os cidadãos condições de acesso à moradia digna, mas o Poder Público não vem conseguindo nem fazer cumprir a lei, que estabelece ser crime a comercialização de loteamento irregular. Grandes capitais e cidades possuem, hoje, milhões de pessoas vivendo em terrenos clandestinos e favelas, em loteamentos clandestinos frutos de atos criminosos de exploradores das carências sociais, até porque não há financiamento habitacional para renda de salário mínimo, ou do desprovido de recursos em geral.

Já se pode divisar o futuro desses despossuídos, ausentes de qualquer rede de proteção social: serão alijados de suas casas e despojados de sua dignidade, constitucionalmente garantida.

Que soluções apontar? É preciso desconcentrar as grandes cidades. As grandes massas concentradas exacerbam os problemas, contribuindo para o recrudescimento de endemias que voltam a se espalhar, dificuldades crescentes na área de escolarização, desestruturações familiares, formas múltiplas de marginalização. É preciso criar condições dignas que permitam a volta à terra das populações maltratadas nas cidades. É preciso fazer uma Reforma Agrária acompanhada da reorganização da agroindústria, das cadeias de comercialização, para que os ganhos não fiquem retidos por intermediários inescrupulosos.

É preciso deter o êxodo rural decorrente da ausência de uma política de respeito ao ser humano. É preciso combater, com energia e eficiência, o trabalho escravo. É preciso, se não eliminar, pelo menos atenuar a expansão da pobreza absoluta, principalmente em áreas de desemprego estrutural no interior das grandes cidades, onde predominam atividades marginais ou um terciário informal de baixíssima produtividade.

Como as senhoras e os senhores percebem, a questão da Cidadania está fincada nas raízes mais profundas da árvore conjuntural brasileira.

A batalha da Cidadania, dentre os movimentos liderados pela Casa dos Advogados, é a batalha-síntese de todas as lutas que se travam, em nosso país, sendo, assim, a somatória das pugnas pela administração da justiça; pelo princípio da igualdade de classes, de raças e de gêneros; pelo combate à perversa equação da distribuição de renda; pelo combate à extrema violência que tem colocado o nosso o país no rol dos mais violentos do mundo; pelo resgate do humanismo e os valores da promoção do Homem; pela eliminação da corrupção, esse cancro que ameaça transformar-se em metástase do tecido institucional e político; enfim, pela cristalização dos ideais democráticos.

A batalha da Cidadania é a batalha pela mudança do sistema político, particularmente no sentido de se implantar as bases de uma democracia ampliada, que coloque a idéia de povo no lugar central da Nação. Urge recriar e multiplicar os espaços do cidadão, de modo que a população possa mobilizar-se para orientar a ação do Estado. A democracia ganha sempre quando uma poderosa esfera pública, nem puramente privada, nem puramente estatal, opera entre a multidão dispersa e o poder concentrado do Estado, ampliando os espaços da participação social. A isto chamamos de democracia ampliada.

Quero frisar que o modelo ideal da sociedade democrática deve se inspirar em uma força centrípeta, considerando o conceito da soberania popular. O que vemos, porém, é uma sociedade centrífuga, com muitos centros de poder e intermediação, uma espécie de sociedade policêntrica, plena de interesses de grupos, particularmente de grupos com grande força econômica, os quais, por deterem sólidos vetores de força, acabam dominando a política e a administração. E, assim, a representação política nem sempre corresponde aos interesses das bases mais desprovidas de poder.

Nesse tipo de sistema, as oligarquias ainda têm grande poder de mando. O empenho das bases sociais no processo político não se efetiva por meio de uma participação maciça, ensejando a indiferença de densos contingentes populacionais e o fortalecimento conseqüente de elites. Os espaços democráticos se estreitam, aumentando as forças de um poder descendente sobre as forças ascendentes.

É triste a constatação: de todas as paixões que agitam a sociedade, a mais funesta, a mais aética, a mais sanguinária é a ambição do poder.

O poder invisível, por outro lado, tem os seus espaços geometricamente expandidos, e vai corroendo as esferas da administração pública.

Nesse sentido, a Ordem dos Advogados do Brasil não pode deixar de denunciar a extrema gravidade do cenário de violência que toma conta do Brasil. O país está prisioneiro do terror e do crime organizado. De norte a sul, de leste a oeste, a criminalidade se espalha como metástase. Fatos mais recentes, mas não isolados, revelam as facetas pérfidas da violência: o toque de recolher imposto por traficantes; o crime de mando; o assassinato, a sangue frio, de advogados e jornalistas se juntam às páginas da barbárie.

No caso do toque de recolher, trata-se da mais evidente demonstração de falência do Estado, quando o poder paralelo deixa de ser paralelo para se transformar no poder de fato. Lamentável é ver que chegamos a um estado geral de anomia, em que a voz da autoridade não é ouvida, a determinação não é levada a cabo, as leis não são cumpridas e o aparato policial se desmancha, por desorganização e desintegração dos corpos policiais, dentre os quais alguns se ligam ao próprio aparelho do crime.

Não podemos mais admitir que as autoridades sejam afetadas em sua sensibilidade apenas quando ocorrem crimes de alto impacto. A palavra de ordem, agora, é coragem para mudar. Uma mudança que contemple os valores do respeito à ordem e à lei, à ética e à honestidade de propósitos, no combate às práticas ilícitas, sejam quais forem as suas dimensões.

Temos, também de dar um basta a outra forma de poder invisível, que corrói o tecido institucional brasileiro. Refiro-me à corrupção, ativa ou passiva, que se expande, envolvendo agentes públicos, representantes do setor político e de setores privados, que se mancomunam com as fontes de poder, para proveito próprio.

A árvore da Cidadania só cresce e dá frutos quando a floresta dos Direitos dos Cidadãos é cultivada de maneira harmônica, sem vazios e interrupções. Quando se podam os galhos podres da violência e da corrupção. Quando se extirpam as forças negativas que se irradiam e assolam os corpos institucionais e administrativos do Estado.

A árvore da Cidadania só floresce e dá frutos quando seus galhos forem banhados pela fonte da ética, esse primado tão necessário ao fortalecimento e vitalização das instituições democráticas.

Sobre ética, peço uma atenção toda especial. Em uma época em que grassa a genérica idéia de uma sociedade corrompida pelo comportamento de alguns de seus dirigentes, o que podemos constatar é a supremacia do utilitarismo oportunista sobre o primado da ética. Não podemos, contudo, nos deixar engolfar pelo desânimo. Faz-se necessária a repetição, a cada dia, de que os atos humanos hão de ser, permanentemente, regrados pelo comportamento moral.

Moral, como se sabe, é a ciência do bem. A parte da moral que cuida da “moralidade dos atos humanos” é a definição da ÉTICA. Por tal conceito nos é mostrado que a ética nos põe em contato com a ação. Significa que, para agirmos, sob o manto da ética, temos de ser livres. Essa definição nos leva, desde logo, à conclusão de que a liberdade é necessária, em uma sociedade democrática, obrigando-nos à prática permanente da ética em nossos comportamentos.

DIETRICH VON HILDEBRAND, na sua obra “Atitudes éticas fundamentais”, afirma:

“Só o homem pode ser livre, no uso de sua responsabilidade; pode ser moralmente bom ou mau na sua ação e nos seus negócios, no seu querer e no seu esforço, no seu amor e ódio, na sua alegria ou tristeza e nas suas atitudes fundamentais e duradouras”.

Resta clara, por esse conceito, a noção de que a origem dos valores éticos se encontra nas atitudes livres e conscientes.

Nesse ponto, cabe aduzir que a batalha da Cidadania é também a batalha da Ética.

Advogadas e Advogados:

Cidadania, Ética e Estado formam um tripé que espelha a identidade do mundo contemporâneo.

Traduzem, na diversidade das Nações, o sentido das mudanças e os horizontes que se abrem, a partir de um dos mais poderosos fenômenos da contemporaneidade. Refiro-me ao fenômeno da globalização, cujas conseqüências já começam a ser percebidas nos planos da fragmentação do mundo do trabalho, da exclusão de grupos humanos, do abandono de continentes e regiões, da concentração da riqueza em certas empresas e países, da fragilização dos Estados, da precarização dos serviços públicos, entre outras.

Por isso mesmo, cabe-nos ponderar sobre a questão a fim de que, das nossas discussões, possa surgir uma luz.

A globalização, bem se sabe, é um dos mais instigantes desafios políticos contemporâneos. Há quem a considere um imperativo dos novos tempos, decorrência natural do avanço tecnológico alcançado pela humanidade. Quanto a isso, não há o que opor. De fato, a tecnologia estabeleceu a instantaneidade das comunicações, suprimindo barreiras e tornando o planeta a aldeia global de que falava Marshall McLuhan nos anos 60.

Não há como recuar daí e nem é disso que se trata. Trata-se de avaliar se a globalização, nos moldes em que presentemente se dá, representa um avanço efetivo, um ganho real para a humanidade. Ou se, inversamente, agravou problemas crônicos do capitalismo, como a má distribuição de renda, os bolsões de pobreza, as disparidades sócio-econômicas.

Não há dúvidas de que, nesta sua primeira fase, de implantação, a globalização tem sido fator de desarranjo econômico no planeta, enriquecendo os mais ricos e empobrecendo os mais pobres. E aumentando o cortejo de mazelas sociais: desemprego, violência, analfabetismo ¾ numa palavra, exclusão social.

O problema, a nosso ver, não é a globalização em si, que pode ser altamente benéfica, mas o modo como é conduzida e os interesses a que tem servido. Estabelecida a partir de uma perspectiva voltada ao atendimento dos interesses dos países do Primeiro Mundo, tornou-se nociva às economias mais frágeis, deteriorando inclusive as relações entre capital e trabalho.

Os países periféricos, entre os quais o Brasil, são os mais atingidos.

De um lado, tiveram seus mercados invadidos pelos países mais ricos, o que resultou em sucateamento de seu parque industrial ¾ e, por extensão, em desemprego.

De outro lado, as novas tecnologias expulsaram do mercado de trabalho numerosas levas de trabalhadores não-especializados, agravando o drama social e aprofundando o quadro de violência e criminalidade, sobretudo nas grandes cidades.

A expansão tecnológica, se de um lado trouxe benefícios e progresso, de outro gerou novo e numeroso contingente de excluídos: os sem-tecnologia. A tendência é que esse contingente se isole cada vez mais do processo produtivo, o que, no caso brasileiro, aprofunda ainda mais o caráter segregacionista de sua sociedade.

É dentro desta realidade traumática que temos de nos mover e buscar soluções ¾ rápidas e eficazes. Do ponto de vista político, o que se constata ¾ e isso desde que a globalização começou a se impor entre nós, já no início dos anos 90 ¾ é a preocupação de atender mais às demandas do capital externo do que aos interesses sociais de nosso povo.

O capital apátrida e despojado de ideologias sociais não teve e nem tem qualquer preocupação em preservar interesses essenciais da nação emergente.

Países europeus, perfeitamente integrados à globalização, estabeleceram critérios gradualísticos para aderir, buscando evitar traumas para a população e o sistema produtivo.

Entre nós, em face de nossas fragilidades sociais e econômicas, tal caminhada gradual é ainda mais imperativa. Mas, até o momento, ela inexiste. Fomos inseridos sem qualquer critério ou cuidado no processo de globalização. A rigor, não nos globalizamos: estamos sendo globalizados.

Nos meus pronunciamentos, inclusive por ocasião do 45o Congresso da União Internacional dos Advogados, realizado em Turim, na Itália, tenho alertado que países periféricos, estão sendo vítimas e não agentes do processo de globalização, sujeitos que estão ao jogo de interesses e conveniências das grandes potências, que ditam as regras do mundo, nos aspectos políticos, econômicos e até culturais. Não podemos nos deixar levar pelos enganadores conceitos de modernização e atualidade, que se procura extrair da matriz conceitual imposta pelo fenômeno da globalização.

Se a tecnologia estabeleceu a instantaneidade das comunicações, suprimindo barreiras entre os povos, trouxe com ela a inoculação de valores exógenos às culturas nacionais, estiolando sistemas culturais, fragmentando as identidades de Nações que, por séculos, construíram suas bases de civismo, patriotismo e nacionalidade. Começa-se a perceber que parte do mundo está empobrecendo com a globalização. Observa-se um desarranjo geral em quase todas as regiões mundiais, a partir da concentração de renda nas mãos dos mais ricos. Enquanto nesses países ricos se exibe ao mundo o triunfo de uma nova tecnologia alicerçada nas empresas de alta capacitação, a bancada dos países periféricos engrossa o cordão dos miseráveis, ampliando os espaços da fome e das tragédias sociais, a partir do crescimento do desemprego, da violência, da expansão do analfabetismo, significando tudo isso, exclusão social.

Não podemos, sob qualquer hipótese, aceitar a globalização assimétrica, cujos efeitos podem ser verificados em muitos exemplos, assimetria denunciada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, que ora finda seu mandato. Enquanto se comemorava o boom da nova economia assentada na tecnologia da informação, os países em desenvolvimento viam aumentar a brecha entre ricos e pobres.

Temos, portanto, de analisar de maneira mais cautelosa a globalização.

Não adianta atrelarmos o país aos passos da globalização, se, antes, não fizermos a lição de casa, se não promovermos as reformas necessárias e indispensáveis à efetiva modernização do país.

Em suma, a globalização, a interpenetração e a interdependência das economias contemporâneas só terão sentido quando se puserem a serviço da valorização do homem, influenciando a globalização dos processos decisórios, da co-participação das Nações nas estratégias mundiais de desenvolvimento.

Globalizar problemas, sem globalizar soluções, parece-nos uma equação perversa.

Sintonizados com esse ideário, entendemos que a globalização das economias impõe a integração de pessoas buscando um objetivo comum. Desse modo, ainda que com visões diferentes, todos devem participar da construção de países mais fortes, mais solidários e internacionalmente competitivos.

Impõe-se a criação, em âmbito internacional, de uma cultura de abertura dos mercados, voltada para o objetivo de melhorar a qualidade dos produtos e serviços oferecidos aos cidadãos, respeitada a soberania de cada país. Não se pode, contudo, sob a proteção do estatuto da soberania, aceitar, passivamente, a constatação de que os países desenvolvidos, líderes do processo de globalização econômica, não pratiquem as chamadas virtudes do livre comércio, criando, para si, ferramentas protecionistas, que acabam se tornando práticas abusivas, incapacitando a efetiva participação dos países periféricos e menos desenvolvidos nos benefícios globais.

Para o Brasil, em sua planificação de busca de competitividade global e para a sua adequada inserção na economia internacional, o fomento às exportações se torna vital. A legislação brasileira, nesse setor, deve se adequar aos modelos e técnicas do livre comércio, aprimorando-se um estatuto de direito privado internacional e a elaboração de um regimento básico aplicável ao comércio exterior, matérias essas que se inserem, naturalmente, na atividade do operador do direito, campo em que a OAB, pela capilaridade de sua atuação no âmbito nacional, em todas as suas esferas, pode colaborar com a ação governamental.

Além disso, outros instrumentos deverão adensar a pauta das discussões, como a modernização da legislação em geral, com a necessária reforma tributária, bem como o aprimoramento urgente do aparelho judiciário, os quais, certamente, deverão colaborar para a justiça social, o desenvolvimento econômico do Brasil e a captação de recursos externos de investimento. Impõe-se uma urgente discussão sobre a reformas essenciais, destacando-se, dentre elas, as reformas política, tributária e do Judiciário.

Senhoras e senhores, advogadas e advogados:

A radiografia traçada permite-nos fazer a premente indagação: quais os caminhos a seguir, qual o rumo a ser trilhado?

Tentemos algumas respostas para a pletora de questões expostas.

Primeiro, garantir uma base para o exercício dos direitos fundamentais. Isso requer dar substância à nossa democracia, cuja meta só se poderá alcançar se estudarmos, com objetividade e desprendimento, a idéia de refundação do Estado brasileiro.

A sociologia política ensina que uma Nação, para ganhar o rótulo de moderna, há de combinar, harmoniosamente, alguns vetores, entre os quais podemos destacar:

- um território reconhecido, um grau efetivo de autonomia decisória, valores e princípios que expressem o conceito de Cidadania, um sistema normativo-jurídico capaz de gerar eficácia, um sistema político amparado em partidos políticos fortes e instituições sólidas.

Esse escopo se assenta na refundação do Estado.

Refundar o Estado constitui, portanto, a estratégia mais consistente para que o país reencontre os caminhos da justiça social e da cidadania.

Refundar o Estado significa, por exemplo, refazer as normas do sistema político. O nosso sistema político, em função da cultura paternalista, originada do mandonismo colonial que ainda se faz presente em várias unidades federativas, se ressente de conteúdo social e de disciplinas coletivas, servindo, freqüentemente, a interesses de elites econômicas. Estas, por sua vez, determinam as condições da política, modelando os sistemas decisórios e assumindo, quase sempre, os lugares destinados às representações populares.

A máquina do Estado, da mesma forma, é um conjunto desarmonioso de estruturas, normas, processos e quadros, que aleija o desenho institucional. Muitos serviços oferecidos pelas estruturas públicas são ruins. A burocracia emperra os processos. Há falta de recursos para investimentos públicos. Não é de admirar que Estados e Municípios se declarem quebrados. Nossa esperança é a de que a Lei de Responsabilidade Fiscal mude a face das administrações públicas, que, muitas vezes, são, ao final dos mandatos, deixadas como uma terra arrasada.

A segunda vertente é a mudança do modelo econômico de modo a contemplar seriamente a questão da inclusão social. Fomos capazes de preservar o legado territorial, promovendo a unidade e a integração lingüística, abrimos as fronteiras e constituímos um país multi-racial, mas, infelizmente, padrões anacrônicos na política, as deficiências do sistema de governo, a floresta normativa, povoada por leis e normas que se conflitam, são, entre outros, os fatores responsáveis pelo imenso distanciamento que se observa entre o Estado e a Nação.

A disparidade na distribuição de renda é problema emblemático do País. A desigualdade social é um golpe na cidadania. Apesar do quadro de estabilidade econômica conseguido pelo Plano Real, e da adequada condução na sua execução, os índices de pobreza se mantiveram altos. É preciso mudar a equação de concentração exagerada de renda nas mãos de poucos.

A terceira grande estratégia a se implantar deve estar direcionada ao reforço das estruturas de atendimento social. A costura do colchão social se faz urgente.

Melhorar a estrutura social é a condição básica para se garantam os direitos fundamentais. Uma sociedade que respeita os direitos humanos básicos caminha no sentido de alicerçar o Estado Democrático de Direito, aplicando a lei sem privilégios e exceções. Assegurar os direitos humanos, como já frisamos, é garantir acesso à educação, à moradia, ao emprego, à saúde, à segurança, à dignidade, garantida constitucionalmente e, tantas vezes, violada. Como afirma a Resolução 32/130 da ONU, é impossível a realização dos direitos plenos, sem o usufruto dos direitos econômicos, sociais e culturais.

O quarto grande eixo das mudanças, que, sob certo aspecto, integra o capítulo da estrutura social, é a remodelação do sistema de segurança pública. O Brasil carece de uma nova sistemática de combate à violência, que contemple os sistemas de prevenção ao crime, investimentos na inteligência, integração e parcerias entre as Polícias.

Não é multiplicando leis que diminuiremos a quantidade de crimes. Pela Lei de Execução Penal, de 1984, cada preso deve estar em cela individual. A realidade é outra: as cadeias contam com 30, 40, 50 presos em um mesmo cubículo, alguns se amarrando às grades para dormirem em pé. Eis aí mais uma das razões para as constantes fugas.

Não vemos, também, no endurecimento da pena medida miraculosa para atenuar a violência. Não é a exacerbação da pena que diminui o crime, mas a certeza da punição. Sendo assim, a instituição da pena de morte, em alguns Estados norte-americanos, teria atenuado a violência, o que não ocorreu. Dispomos, entre nós, de penas ampliadas para os crimes hediondos e seqüestros. Eles, ao contrário, tiveram aumentada sua incidência, com índices alarmantes. O que precisamos fazer é um combate efetivo ao crime organizado, especialmente o combate ao tráfico de drogas, ao comércio ilegal de armas. É necessário buscar não apenas os que praticam diretamente o crime, mas todos aqueles que se beneficiam com a criminalidade. A violência há de ser tratada de maneira sistêmica.

Que pode ser feito nesse movediço terreno?

Há soluções consensuais. Considere-se, por exemplo, a descentralização do combate à violência. Está mais do que provado que os programas de combate ao crime devem levar em consideração as realidades espaciais e locais, as diferenças regionais, as peculiaridades de cada distrito. As grandes cidades devem ser repartidas em setores, e para cada um nomear-se um responsável. A idéia de um policiamento mais próximo à comunidade é benéfica. A polícia comunitária angaria mais simpatia da população, fator importante para uma eficaz política de combate à criminalidade.

A assepsia das polícias é medida de absoluta prioridade. É, também, necessária uma política unificada de operacionalidade policial, principalmente nas regiões metropolitanas, que concentram os maiores índices de produção econômica, educacional e cultural. Essas áreas podem dispor de um policiamento uniformizado ostensivo e um investigatório, trabalhando em conjunto, sem rivalidades, sem ambições e disputas, sem duplicação de funções.

A seguir, aponta-se a necessidade de um criterioso e bem montado serviço de inteligência, capaz de trabalhar com agilidade na identificação dos criminosos. Não se pode descurar do ajuste urgente dos Códigos Penal, Processual Penal e da Lei de Execução Penal, além do Estatuto da Criança e do Adolescente, necessário para assegurar a rápida e justa imposição de penas aos condenados, respeitado o preceito constitucional do devido processo legal.

Senhoras e Senhores:

Não posso deixar de mencionar o papel da mídia na construção do edifício da Cidadania.

Os meios de comunicação, atendendo a critérios de interesse e significação social dos fatos, haverão de distinguir entre a banalização do denuncismo exacerbado e a denúncia bem fundamentada, amparada em provas concretas e críveis. Haverá a imprensa de eleger temáticas de alta prioridade, sempre contemplando o ideal social, o bem estar das coletividades e o progresso material e espiritual dos cidadãos. É essencial a liberdade de imprensa, na construção democrática de um País, liberdade essa que precisa ser permanentemente preservada, ao amparo de uma condenação definitiva a qualquer tipo de censura prévia.

É claro que, nessa luta institucional, a ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL tem papel de relevo no universo das organizações sociais. Esse papel da Ordem é o de tentar repor a normalidade constitucional, pela conscientização cívica dos cidadãos, pela pressão sobre a representação política, pela mobilização social, pela ação de cada conselheiro e cada advogado onde atuam.

Essa é razão pela qual devemos fortalecer o papel de nossa instituição. A vida de uma instituição é o pulsar de sua comunidade, é a energia vital que flui da criatividade de seus participantes. Fortalecer a instituição é trabalhar pela grandeza do próprio advogado.

Convoco as advogadas e os advogados brasileiros a integrar o mutirão que a Ordem, já algum tempo, procura levar a bom termo; o mutirão pela ética e decência na política; o mutirão pela efetividade da cidadania.

Nunca foi tão importante quanto no ciclo em que estamos atravessando desfraldar bandeiras tão dignas como a bandeira da ética para o saneamento público do nosso país.

Vamos iniciar, a partir do próximo ano que se avizinha, um novo ciclo político, com um novo mandatário da Nação, 27 novos governadores e 54 novos senadores, nova Câmara de Deputado, novas Assembléias Legislativas, tudo sob o signo da esperança.

A OAB, nesse novo contexto, continuará mantendo seus compromissos com o Estado Democrático de Direito, na preservação dos direitos fundamentais e na luta contra os crônicos males que corroem os pilares da democracia. Para isso temos que permanecer unidos em torno da OAB, tornando cada vez mais forte a voz da Advocacia.

Por último, quero me referir ao papel especial do Advogado como profissional de perfil postado na vanguarda de defesa da sociedade. Aos profissionais do Direito cabe papel fundamental na estratégia de mobilização social de um país e, por óbvio, especificamente do Brasil, que está a exigir tal mobilização.

Esse papel é decorrência não apenas da imprescindibilidade do advogado à administração da justiça, nos termos do artigo 133 da Constituição, mas em função do próprio fim humanístico inerente à Advocacia, escopo que foi responsável pelas mais memoráveis páginas de grandeza da História do Brasil, a começar pelas campanhas da Independência, da Abolição da Escravatura, da produção de nossas Constituições, chegando, mais recentemente, às lutas pelo restabelecimento do Estado Democrático de Direito.

Ao advogado cabe a missão de:

liderança nas batalhas sociais;

resgatar os valores mais sagrados da moldura cívica de nosso país;

defender a bandeira da ética e da moralidade.

Defender a bandeira da ética é defender a moralidade dos atos humanos, é lutar contra os abusos e as práticas ilícitas em todas as esferas da vida institucional. E ao defender a ética e a moralidade, o advogado estará se posicionando na vanguarda das lutas cívicas.

É inquestionável que sem Direito, não há Justiça; sem Justiça não há Democracia; sem Democracia, não há Liberdade. E uma Nação sem liberdade está condenada à barbárie, afastada dos horizontes da Ética e da Cidadania. Será uma Nação sem esperança, será uma Nação de olhos fechados ao futuro.

É hora de encerrar esta extensa fala.

Não o faço antes de agradecer a esta Bahia de Todos os Santos, que se transforma na Bahia de todos os advogados.

Deixo, em meu nome e dos advogados brasileiros, os agradecimentos ao Governo do Estado da Bahia, na pessoa de seu digno e ilustre Governador, doutor OTTO ROBERTO MENDONÇA DE ALENCAR, baiano lá de Santo Antônio dos Viajantes de Orobó da Serra Grande, que não só nos abriu o seu coração, mas de toda a administração estadual para dar imenso suporte à efetivação deste evento.

Agradeço e homenageio o dinâmico Prefeito desta sedutora cidade de Salvador, doutor ANTÔNIO JOSÉ IMBASSAHY DA SILVA que, de seu lado, também, abriu seu coração e toda a administração municipal, permitindo a mais larga integração da comunidade local à nossa XVIIIa. Conferência Nacional.

Agradeço a todos aqueles que nos apoiaram e, em especial, à Secional da OAB-BAHIA e a seu digno e operoso presidente, o advogado THOMAS BACELLAR, bem assim ao Coordenador Geral deste evento, o ilustre advogado baiano e operoso Secretário-Geral da OAB, GILBERTO GOMES.

Agradeço, “in memoriam”, aos nossos PATRONOS: o NACIONAL, PROFESSOR e ADVOGADO JOSAPHAT RAMOS MARINHO, um “socialista democrático” e o LOCAL, doutor PEDRO MILTON DE BRITO, defensor intransigente das causas relacionados aos direitos humanos, ambos advogados exemplares, bravos e notáveis defensores da ética e da cidadania.

Agora sim: em palavras finais, deixo, aqui, a minha palavra de fé nos destinos do Brasil:

temos de acreditar na força do destino de nossa Pátria e nas suas imensas potencialidades;

temos de acreditar nos valores do nosso povo;

temos de lutar para encontrar a nossa verdade, e, assim, resgatar a nossa identidade;

temos de acreditar na força dos brasileiros e em sua capacidade de levar adiante as grandes causas cívicas, levantando as bandeiras mais nobres da sociedade.

CIDADANIA, ÉTICA e ESTADO, trinômio que se entrelaça e que a ele se acresce, de forma indissolúvel e necessária, a figura indispensável do ADVOGADO.

MUITO OBRIGADO.

RUBENS APPROBATO MACHADO
Presidente Nacional da OAB

Salvador, Ba, 11 de novembro de 2002

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