Fórum: País navega sem rumo e sem projeto, afirma Comparato
Brasília, 11/09/2006 - “Há pelo menos um quarto de século o nosso país navega sem rumo, vale dizer, sem projeto”. A afirmação fez parte do discurso feito hoje (11) pelo professor e jurista Fábio Konder Comparato, medalha Ruy Barbosa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), na sessão de instalação do Fórum da Cidadania para a Reforma Política, na sede da OAB nacional. Para Comparato, que coordenará o Fórum, é preciso instituir uma democracia autêntica, fundada na soberania popular ativa, para que haja a regeneração da vida política brasileira. “À medida que se agravam os problemas sócio-econômicos, ligados ao desenvolvimento nacional, as respostas dadas pelo Estado tornam-se ridicularmente desconexas, como se estivéssemos todos embarcados numa nau carente de pilotagem”.
Ao defender um amplo e efetivo projeto de reforma política para o país - objetivo do Fórum lançado hoje na OAB -, Comparato não criticou um governo especificamente, mas as políticas assistencialistas das duas últimas gestões que, em sua opinião, abusaram de uma política “insensatamente recessiva”. Ele apontou como exemplos o programa Comunidade Solidária (do governo de Fernando Henrique Cardoso) e o Bolsa-Família (do presidente Luiz Inácio Lula da Silva).
“Obviamente, é muito mais fácil e produz melhores dividendos eleitorais pagar R$ 60,00 por mês a cada família pobre ou miserável, do que criar postos de trabalho para os dois milhões e trezentos mil jovens que, todo ano, ingressam no mercado de trabalho”, comparou Fábio Comparato. “Ora, até mesmo essa apregoada generosidade é falsa. É preciso saber que o total dos dispêndios do governo geral com o programa Bolsa-Família, em todo o exercício financeiro de 2005, equivaleu a menos da metade do que foi pago mensalmente com o serviço da dívida pública”.
O medalha Ruy Barbosa da OAB criticou, ainda, a radical incapacidade dos governos brasileiros de cumprir os artigos que a Constituição Federal considera fundamentais. “Trata-se de propor a recriação ou refundação, sobre novas bases, não apenas das instituições, mas também dos costumes políticos vigentes em nosso país”, afirmou Comparato. “Cabe, portanto, a este Fórum de reforma política propor soluções para o magno problema do desajuste estrutural do Estado brasileiro, no cumprimento de sua função constitucional de realizar os objetivos fundamentais, fixados no artigo terceiro da nossa Constituição”. Comparato é, ainda, presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia da OAB.
A seguir, a íntegra do discurso proferido pelo jurista e coordenador do Fórum da Cidadania para a Reforma Política, Fábio Konder Comparato:
“Principiemos advertindo que a palavra reforma deve ser aqui entendida na sua acepção mais literal e profunda. O que se pretende, com o presente Fórum, não é simplesmente propor a revisão desta ou daquela norma eleitoral. O objetivo é muito mais ambicioso; ele tem a magnitude do problema que resolvemos enfrentar. Trata-se de propor a recriação ou refundação, sobre novas bases, não apenas das instituições, mas também dos costumes políticos vigentes em nosso país.
Na visão dos pensadores da antiguidade clássica, os costumes moldam toda a vida social e chegam mesmo a sobrepor-se às leis. Leges sine moribus vanae, advertiu Horácio. Eles são o fundamento da sociedade política, sentenciou Políbio (História, livro 6º, VII, 47). O “direito por si só”, afirmou Aristóteles, “não tem poder para impor obediência às suas normas, se não for sustentado pela força dos costumes” (Política, II, 5, 1269 a, 20). Os pensadores europeus do “Século das Luzes” manifestaram a mesma convicção. Para Montesquieu, os costumes formam o espírito das leis (Do Espírito das Leis, livro XIX). Rousseau neles enxergava “a verdadeira Constituição do Estado” (Do Contrato Social, livro 2º, capítulo 12).
Ora, ninguém pode ignorar que neste país os costumes políticos nunca foram autenticamente republicanos nem democráticos.
Passados quase quatro séculos da primeira edição da História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, se já não podemos afirmar categoricamente, como ele o fez, que “nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, senão cada um do bem particular”, não ousaremos, contudo, negar que esse espírito de hegemonia do interesse privado e do benefício individual ainda predomina em todas as classes sociais, e que ele se acha agora singularmente reforçado pelos valores e práticas do capitalismo globalizado.
Da mesma sorte, profundamente deformados que fomos por quatro séculos de escravidão legal, e conformados, desde as raízes ibéricas, com o exercício do poder sem controles em todos os domínios, jamais chegamos a prezar os princípios de igualdade social e de liberdade política, fundamentos do regime democrático.
Convenhamos, portanto, que nenhuma reforma política digna desse nome será feita neste país, se não lograrmos emendar os nossos costumes políticos.
Mas como fazê-lo?
Montesquieu sustentou que os costumes de um povo não se mudam por leis, mas unicamente pela educação. Sem discordar da importância capital do esforço pedagógico nessa matéria - e é bem por isso que este Fórum deve contar com a indispensável colaboração de entidades que sempre se distinguiram na ação educacional, como a Igreja Católica; não podemos, porém, ignorar que as instituições jurídicas exercem também uma influência, boa ou má, sobre os costumes.
Tomemos, por exemplo, as campanhas eleitorais para a chefia do Executivo, no âmbito nacional ou estadual, ou nos grandes municípios. Elas são feitas através dos meios de comunicação de massa, e reduzem-se à escolha de candidatos em função de sua aparência pessoal, totalmente fabricada pelos técnicos em propaganda mercadológica. O eleitor pouco se importa com programas de governo, pois quando eles são efetivamente apresentados; o que se torna hoje cada vez mais raro, jamais são cumpridos. O mesmo se diga das promessas pessoais feitas pelos candidatos, como, por exemplo, a de, uma vez eleitos, não se afastarem do cargo no curso do mandato, para disputar postos políticos mais elevados. O seu descumprimento é tão reiterado, que já não impressiona ninguém.
Todas essas práticas, convalidadas pela ausência de sanções legais, só fazem reforçar o velho costume de resignação e passividade do nosso povo diante dos poderosos, bem como a tradicional irresponsabilidade dos governantes perante aquele de quem, como declara retoricamente a Constituição, todo poder emana. O povo acostumou-se, afinal, à sua condição de absolutamente incapaz para o exercício do proclamado poder soberano, e recolheu-se à discreta posição de espectador do teatro político, com direito de eleger periodicamente os atores de sua preferência, mas não de escolher a peça a ser encenada.
Platão e Aristóteles sustentaram, enfaticamente, que uma sociedade dividida entre uma minoria de nababos e uma maioria de pobres ou miseráveis, não teria estabilidade política. Neste país, que ostenta há muitos anos um dos graus mais elevados de desigualdade social entre todas as nações do globo, encontramos, ao que parece, uma solução para o delicado problema. Atualizamos a fórmula romana panem et circenses, pela combinação do assistencialismo com o sufrágio universal: distribuímos a bolsa-família e oferecemos a cada biênio, a todos os cidadãos, o direito de participar do espetáculo das eleições.
É verdade que, na presente campanha eleitoral, de acordo com as últimas pesquisas de opinião pública, cresceu expressivamente o número de eleitores que manifestam intenção de anular o seu voto. Mas aqui, ao contrário do que imaginou José Saramago no seu romance Ensaio sobre a Lucidez, essa forma de protesto não produz absolutamente nenhum efeito político. O regime permanece inabalável e a sociedade imóvel.
Por tudo isso, é impossível deixar de reconhecer que uma reforma em profundidade da nossa vida política não pode limitar-se ao aperfeiçoamento do sistema eleitoral em vigor, embora isso seja incontestavelmente necessário. É preciso ir muito além, e iniciar desde logo a construção, pelos alicerces, de um regime de autêntica soberania popular, no qual o povo, nos diferentes níveis da organização federal, seja convocado a decidir as questões que afetam o seu destino, e a controlar a ação dos agentes públicos em todos os órgãos do Estado.
Aliás, sem o regular funcionamento de instituições de democracia direta e participativa, a própria representação popular perde sentido e passa a girar em falso, servindo de biombo à manutenção de consolidadas práticas oligárquicas.
Foi por isso que, no quadro da Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, lançada pelo Presidente do nosso Conselho Federal em 15 de novembro de 2004, a Comissão que tenho a honra de presidir concentrou suas atividades na elaboração de projetos de lei e propostas de emenda à Constituição, objetivando instituir, em todos os níveis da organização federal, uma soberania popular ativa. Propôs-se, assim, de um lado, o desbloqueio da prática de plebiscitos e referendos, com maior precisão e ampliação do seu objeto, bem como o reforço da iniciativa popular de leis e emendas constitucionais.
Propôs-se também introduzir em nosso sistema político a revogação popular de mandatos eletivos (recall), de modo a estabelecer a responsabilidade direta dos eleitos perante aquele que os escolheu como seus representantes e delegados, e não como mandatários em causa própria.
Tais propostas, que já tramitam no Congresso Nacional e em algumas Assembléias Legislativas e Câmaras de Vereadores, salvo raras e mui honrosas exceções, foram recebidas no meio político com indisfarçável má vontade. Nem poderia ser de outro modo, dada a nossa inveterada tradição oligárquica. É contra ela que as entidades componentes deste Fórum são convocadas a atuar em prioridade.
Para a regeneração de nossa vida política não basta, porém, instituir uma democracia autêntica, fundada na soberania popular ativa. É preciso, ainda, reformar a organização dos Poderes Públicos, a fim de que o Estado brasileiro tenha a necessária aptidão funcional para cumprir os objetivos republicanos, indicados no art. 3º da Constituição Federal:
I 8722; construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Ora, o que todos observamos hoje, com crescente apreensão, é a radical incapacidade do Estado brasileiro para cumprir esses objetivos, que a nossa Constituição considerou fundamentais.
À medida que se agravam os problemas sócio-econômicos, ligados ao subdesenvolvimento nacional, as respostas dadas pelo Estado tornam-se ridiculamente desconexas, como se estivéssemos todos embarcados numa nau carente de pilotagem. A imagem não é forçada. O sentido primordial de gubernator, em latim, tal como o de kubernetes, na língua grega, é de piloto; e os filósofos gregos sempre compararam a pólis a um navio.
Há pelo menos um quarto de século o nosso país navega sem rumo, vale dizer, sem projeto. A Constituição impõe ao Estado a função básica de garantir o desenvolvimento nacional. Todos sabem que o crescimento econômico auto-sustentado é uma condição imprescindível ao desenvolvimento. Pois bem, há 25 anos a economia brasileira cresce a uma taxa média anual de 2,3%, a qual corresponde, levando-se em conta o crescimento demográfico ocorrido no período, a 0,7% de elevação do PIB per capita. Convenhamos que para um país que liderou no mundo o crescimento econômico nos 30 anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, o desempenho ocorrido neste último quarto de século é deprimente, representa um grave sintoma de decadência nacional.
Ora, a inadequada arquitetura do Estado brasileiro para o exercício de sua função dirigente tem muito a ver com esse triste resultado.
O único órgão estatal que se ocupa de políticas públicas, ou seja, de programas de ação, é o Executivo. É ele que elabora as propostas orçamentárias, obtém sua aprovação no órgão legislativo mediante as barganhas que sabemos, mas não é minimamente obrigado a cumprir os dispêndios por ele próprio orçados, notadamente aqueles ligados à realização de políticas públicas. Por outro lado, a perspectiva de atuação dos chefes de governo não ultrapassa, oficialmente, a duração do seu mandato, e na realidade, cinge-se tão-só à metade dela; a outra metade é ocupada, quase que exclusivamente, com a preparação das eleições seguintes.
Daí a reação disfuncional dos diferentes governos aos problemas ocorrentes. A questões de ordem estrutural, o Estado responde com medidas conjunturais; para solucionar problemas de grave complexidade, oferece paliativos.
Tomemos, para ilustração do que acaba de ser dito, três exemplos.
De 1980 até hoje, a participação do trabalho na renda nacional foi reduzida, de cerca de metade a menos de um terço. Nenhum emprego foi criado, nos últimos 6 anos, com remuneração acima de 3 salários mínimos; 64% de todos os empregos criados, nesse período, foram de um salário mínimo. Por outro lado, de acordo com dados divulgados pelo IPEA, a taxa de desemprego aumentou quase 80% entre 1992 e 2004. O país conta hoje com 8 milhões de trabalhadores desempregados, e o IBGE nos informa que 65% dos jovens na faixa etária de 14 a 24 não estudam nem trabalham.
Como reagiram a isso os dois últimos governos federais? Resolveram simplesmente aplicar políticas de assistência social: o governo Fernando Henrique Cardoso criou o programa Comunidade Solidária e o governo Luís Inácio Lula da Silva, o bolsa-família.
Obviamente, é muito mais fácil e produz melhores dividendos eleitorais pagar R$60,00 por mês a cada família pobre ou miserável, do que criar postos de trabalho para os dois milhões e trezentos mil jovens que, todo ano, ingressam no mercado de trabalho. Ou seja, os sucessivos governos aumentam a pobreza, com a aplicação de uma política econômica insensatamente recessiva, e ao mesmo tempo gabam-se de socorrer generosamente as famílias pobres.
Ora, até mesmo essa apregoada generosidade é falsa. É preciso saber que o total dos dispêndios do governo federal com o programa bolsa-família, em todo o exercício financeiro de 2005, equivaleu a menos da metade do que foi pago mensalmente com o serviço da dívida pública. Com os juros oficiais mais elevados do mundo, o nosso país desenvolve, há anos, a maior política de transferência de renda de toda a nossa história; mas não dos ricos para os pobres e sim o contrário!
Segundo exemplo: o velho problema educacional. O Ministério da Educação reconheceu, recentemente, que 54% dos alunos da 4ª série do ensino fundamental, em todo o país, não sabem ler nem escrever, e que 75% da população nacional é composta de analfabetos funcionais. Essa situação calamitosa é constatada dez anos após a promulgação da Emenda Constitucional nº 14, que reforçou o compromisso de todas as unidades da federação com a política educacional. Que medidas o Estado brasileiro conseguiu implementar, desde então, para enfrentar o problema? A rigor, uma só: a criação do Prouni, que nada tem a ver com o ensino fundamental, pois trata-se de um programa de subsídio a Universidades particulares para o preenchimento gratuito de vagas em seus cursos.
O terceiro exemplo a ser dado é o da política de transportes. O último plano viário elaborado para o nosso país data de 1973. A partir de então, a poupança pública, que propiciou o elevado nível de investimentos que o país conheceu a partir de 1930, e que garantiu notável crescimento econômico, diminuiu drasticamente, mantendo-se sempre abaixo de 20% do PIB. A política de descontrolado endividamento público, posta em prática a partir do governo Fernando Henrique Cardoso, e que persiste até hoje, tornou impossível a retomada dos investimentos em infra-estrutura. Quais as iniciativas governamentais nessa área? Foram duas. De um lado, voltar aos tempos do Império, e oferecer às empresas privadas que decidirem investir no setor a garantia de juros sobre o capital investido: as ditas parcerias público-privadas. De outro lado, lançar sucessivas operações “tapa-buracos”.
Cabe, portanto, a este Fórum de reforma política propor soluções para o magno problema do desajuste estrutural do Estado brasileiro, no cumprimento de sua função constitucional de realizar os objetivos fundamentais, fixados no art. 3º da nossa Constituição.
São essas as diretrizes gerais que, em minha qualidade de coordenador, tenho a honra de propor ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, para a atuação do Fórum que hoje se instala."
Brasília, 11 de setembro de 2006
Fábio Konder Comparato