Busato: ao examinar impeachment, OAB não vira as costas ao povo
Belo Horizonte (MG), 20/04/2006 - O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato, afirmou hoje (20) que a entidade examinará o impeachment do presidente Lula no próximo dia 8 ciente de que o impeachment é “um remédio amargo e drástico” que só deve ser ministrado em casos extremos, mas o fará em cumprimento a seu dever cívico e institucional, como sempre o fez. “Se a instituição, por razões analisadas e discutidas, entender que não é o caso de impeachment, não poderá ser acusada de omissão ou de estar de costas para a parte da sociedade que quer aquela solução”, afirmou Busato. “Mas se o diagnóstico assim o indicar - e não quero aqui fazer especulações -, deve ser visto com naturalidade, como um recurso institucional legítimo, a serviço do Estado Democrático de Direito”.
As declarações foram feitas pelo presidente da OAB ao abrir a segunda reunião do ano do Colégio dos Presidentes dos Conselhos Seccionais da OAB, que tem início hoje em Belo Horizonte (MG). Na ocasião, Busato anunciou aos dirigentes estaduais que o Conselho Federal da OAB examinará se existem condições jurídicas para o impedimento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva movido unicamente pelo interesse de servir à sociedade civil.
Busato lembrou que a crise política que se arrasta no país há quase um ano põe em evidência o papel institucional da OAB, um papel que nem todos compreendem: o de intervir no processo político, sem, no entanto, permitir que essa intervenção se contamine por qualquer interesse faccioso. “A OAB, como não nos cansamos de repetir, não é partido político, nem tem ideologia. É uma tribuna da cidadania, espaço público não-estatal, a serviço dos interesses da sociedade civil”, enfatizou o presidente da entidade, acrescentando que a crise por que passa o país deixou a muito tempo de ser apenas política ou intriga oposicionista, mas já se tornou fato concreto.
“Diante dos fatos, a OAB não pode deixar de se manifestar. No passado, em circunstâncias igualmente delicadas de nossa vida republicana, fomos chamados pela sociedade e demos nossa contribuição à evolução de nossas práticas políticas”, afirmou Busato, relembrando aos presidentes de Seccionais os períodos mais importantes da vida política brasileira dos quais a OAB participou ativamente. São eles: o movimento revolucionário de 1930; a ditadura do Estado Novo; o golpe militar de 1964; o processo de abertura política; a memorável campanha das Diretas Já; e, por fim, o impeachment de Fernando Collor de Mello.
“A única garantia que posso dar, e não hesito em fazê-lo, é de que a Ordem não se omitirá. Cumprirá o seu dever cívico e institucional, como sempre o fez. Quanto a isso, o país saiba que pode contar conosco”.
Ao finalizar seu discurso na cerimônia de abertura da reunião, Roberto Busato reafirmou o compromisso da OAB com a defesa da sociedade civil, acrescentando que a entidade nunca se ligou e nunca se aliará a qualquer facção, sem subir, jamais, a qualquer tipo de palanque. “Nossa trincheira é sempre a mesma: a da sociedade civil, a da cidadania. Quem a ela se agregar, será bem-vindo, mas não a sustentamos para favorecer a nenhuma facção”, afirmou Roberto Busato. “Hoje, alguns daqueles políticos nos acusam de fazer oposição ao atual governo. Demonstram, antes de mais nada, que desconhecem o papel institucional da Ordem”.
A seguir, a íntegra do discurso feito pelo presidente nacional da OAB, Roberto Busato, na abertura da reunião do Colégio dos Presidentes dos Conselhos Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil:
Senhoras e senhores
"É com grande satisfação que volto a Minas Gerais para esta reunião do Colégio de Presidentes da Ordem dos Advogados do Brasil, a segunda deste ano.
É significativo que, neste momento tão grave da vida nacional, seja Minas o cenário deste evento.
Palco de tantos acontecimentos históricos decisivos da vida brasileira, Minas, terra dos Inconfidentes, nos reúne hoje, às vésperas de mais um 21 de abril, para uma reflexão conjunta a respeito da conjuntura política.
Considero de tal forma emblemática a data de Tiradentes que é a terceira vez, neste meu mandato, que a celebrarei aqui em Minas. Tenho-a como referência cívica máxima, que confere a Minas o justo título de berço da República e da nacionalidade.
A crise política, que se arrasta há quase um ano, coloca mais uma vez em evidência o papel institucional da OAB. Um papel que, infelizmente, nem todos compreendem: o de intervir no processo político, sem, no entanto, permitir que essa intervenção se contamine por qualquer interesse faccioso.
A OAB, como não nos cansamos de repetir, não é partido político, nem tem ideologia. É uma tribuna da cidadania, espaço público não-estatal, a serviço dos interesses da sociedade civil.
Como em outros momentos dramáticos da história republicana brasileira, estamos sendo chamados a exercer um protagonismo na cena política.
O que nos move é o que está expresso no artigo 44, inciso I, do Estatuto da Advocacia: o compromisso com a defesa da Constituição, da ordem jurídica do Estado democrático de Direito, dos direitos humanos, da justiça social e da boa aplicação das leis.
No próximo dia 8, o plenário do Conselho Federal da OAB deliberará em Brasília a respeito de proposta de impeachment ao atual presidente da República.
Esse tema está posto diante da cena política e da opinião pública, não por nós, mas como decorrência natural - e inevitável - da série interminável de escândalos, trazidos à tona a partir das denúncias do ex-deputado Roberto Jefferson, em junho do ano passado.
Denúncias às quais, no início deste mês, o eminente procurador-geral da República, dr. Antonio Fernando de Souza, deu sua implacável e incontestável chancela.
Apresentou S. Exa. denúncia formal ao Supremo Tribunal Federal contra nada menos que 40 personalidades, sendo que a maioria agentes públicos - ex-ministros e parlamentares -, figuras de destaque no atual governo.
Com a autoridade e a responsabilidade que o cargo lhe confere, o procurador-geral, da República não hesita em chamar de delinqüentes os personagens que relaciona, sustentando que agiram como (aspas) “organização criminosa”, a que reiteradamente, em seu relatório, chama de “quadrilha”.
Acusa, sem meias-palavras, o ex-chefe da Casa Civil do Governo Lula, José Dirceu, de (aspas) “chefe da quadrilha”. E aponta a antiga cúpula do PT como “núcleo da organização criminosa”.
Os fatos foram postos de forma clara pelo procurador-geral - e podem implicar maiores responsabilidades. O seu relatório não traz propriamente novas revelações. Mas, ao confirmar as denúncias do ex-deputado Roberto Jefferson, acrescendo-as de dados objetivos colhidos pelas investigações das CPIs e do próprio Ministério Público, coloca a crise em patamar diferenciado.
A crise já não é apenas política. É institucional.
Já não são, como argumentou inicialmente o presidente Lula, intrigas oposicionistas para ganhar as eleições. São fatos concretos.
O Mensalão - eufemismo de suborno sistemático - é uma realidade, já investigada e constatada. Realidade abjeta, que levou alguns parlamentares a renunciar ao mandato para evitar a cassação;
que levou outros a serem cassados; e que, finalmente, preservou o mandato de outra parte, acobertada por um indecoroso espírito de corpo.
Tanto os que pagaram como os que receberam o Mensalão cometeram crime de lesa-democracia, profanando a instância máxima de exercício da representação popular.
Diante dos fatos, a OAB não pode deixar de se manifestar. No passado, em circunstâncias igualmente delicadas de nossa vida republicana, fomos chamados pela sociedade e demos nossa contribuição à evolução de nossas práticas políticas.
Nossa instituição foi criada na seqüência imediata do movimento revolucionário de 1930. Já nos acontecimentos que se lhe seguiram - a revolução constitucionalista de 1932, a Constituinte de 1934 e a ditadura do Estado Novo -, tivemos atuação destacada, cuidando sempre de não nos vincular a nenhuma facção político-partidária.
Na seqüência do golpe militar de 1964, a OAB denunciou com destemor as arbitrariedades e truculências dos governos ditatoriais. Jamais compactuou com o arbítrio - e isso nos custou agressões das forças obscurantistas, como no episódio da carta-bomba, que vitimou nossa funcionária, dona Lida Monteiro da Silva, em 1980.
No curso do processo de abertura política, que desembocou na redemocratização, a partir de 1985, vocalizamos sempre os interesses da sociedade civil.
Lá estávamos na memorável campanha das diretas-já, na Constituinte, no impeachment de Fernando Collor de Mello. Sempre que a Pátria e a cidadania nos convocaram, nos apresentamos.
De lá para cá, temos nos empenhado em consolidar a nossa frágil democracia e suas instituições.
Superado o regime autoritário, estamos determinados a contribuir na luta por maior transparência às instituições do Estado.
Queremos tornar nossa República efetivamente republicana. Reproclamá-la, se necessário.
Nessa trincheira de luta, como nas anteriores que mencionei, nos deparamos eventualmente com lideranças políticas, desse ou daquele partido, parceiros circunstanciais.
Não significa que tenhamos capitulado - ou aderido - a essa ou aquela facção. Nossa trincheira é sempre a mesma: a da sociedade civil, a da cidadania. Quem a ela se agregar, será bem-vindo, mas não a sustentamos para favorecer a nenhuma facção.
A OAB não sobe em palanque. Jamais! E nem permite que facções políticas queiram erguê-lo sobre nossas trincheiras de luta.
No passado recente, o PT vocalizava a bandeira da ética e da moralidade na política. Estava na mesma trincheira que nós. E chegou ao Poder graças à credibilidade que conquistou nessa luta.
Ao chegar ao Poder, no entanto, distanciou-se daqueles ideais, juntou-se a personalidades que antes combatia, passou a praticar o que antes condenava e chegou à situação presente, em que diversas de suas mais expressivas lideranças estão no banco dos réus.
Hoje, alguns daqueles políticos nos acusam de fazer oposição ao atual governo. Demonstram, antes de mais nada, que desconhecem o papel institucional da Ordem.
Continuamos na mesma trincheira - a da cidadania - e lamentamos que os que hoje se queixam, estes sim, tenham mudado de lado.
Já não pugnam pela ética e pela moralidade. Já não são republicanos. Cuidam de seus interesses e desprezam os da Pátria.
É um momento trágico da história brasileira.
Momento trágico de nossa trajetória democrática.
Mas, acima disso, um momento fundamental em nosso processo de amadurecimento como nação e sociedade.
Não podemos permitir, no entanto, que a crise se transforme em trunfo eleitoral para qualquer dos lados.
Seria um desserviço à Pátria. Dividiria a sociedade brasileira ao meio e viveríamos o drama recém-protagonizado pela Venezuela de Hugo Chavez: de um lado, a classe média, indignada com os escândalos; de outro os segmentos populares, menos informados, a supor que estariam sendo lesados pelos que cobram responsabilidade penal aos infratores.
Não podemos permitir que se faça isso ao nosso país, até porque, pelas suas dimensões continentais e importância geopolítica, o resultado seria cataclísmico.
Precisamos emergir moralmente engrandecidos deste dramático episódio. Torná-lo fator propulsor da elevação de nossas práticas políticas. Não podemos permitir a manipulação da crise.
Mas não nos iludamos: só o conseguiremos na medida em que nos mantivermos fiéis ao nosso compromisso com a verdade. É ela - a verdade - nosso guia. Nosso único e inarredável guia.
Todo cidadão tem o direito de ter sua opção político-partidária. Mas nós, da OAB, neste momento em que somos chamados a opinar a respeito da crise - e mais que isso a nela intervir -, precisamos nos colocar acima das paixões, das ideologias, das simpatias partidárias, de nossas amizades e interesses pessoais, e olhar o interesse maior do Brasil.
O interesse da sociedade, das instituições republicanas. Elas precisam ser reconstruídas, restauradas em sua credibilidade.
No momento em que a sociedade descrê de seus homens públicos, de suas instituições, o que está em risco é a própria democracia, a própria República. É desse fermento que se nutre a serpente do autoritarismo.
Lamentavelmente, é este o caldo de cultura que se está formando. A tanto nos levou a ação deletéria de alguns de nossos agentes públicos.
A sociedade brasileira está assustada, perplexa.
O mau comportamento de alguns comprometeu - ainda que injustamente - a muitos. Corrigir essa grave distorção é missão que cumpre a todos nós, que integramos a elite dirigente deste país.
Às vésperas das eleições, o que nos diz a “voz das ruas”, na expressão do saudoso senador Teotônio Vilela?
Nos diz que a decepção é grande e que o povo já não sabe como separar o joio do trigo. Já não sabe distinguir entre os seus maus e bons políticos - e na dúvida generaliza. E isso é mau. É péssimo.
As eleições, rito máximo da democracia, festa cívica, momento de renovação de esperanças, convertem-se em rito fúnebre, muro de lamentações.
A cidadania, repito, está perplexa. Sente-se lograda. Prometeram-lhe ética, transparência - e entregaram-lhe outra mercadoria. Pior que o roubo dos reais - não me canso de repetir - é o roubo dos nossos sonhos, da nossa esperança.
É disso que se trata. Neste momento tão delicado, os olhos e as expectativas da sociedade voltam-se para nós. O descrédito das instituições políticas do estado confere-nos um protagonismo que não postulamos, mas a que não fugimos.
A sociedade quer saber o que pensamos, que atitude teremos.
O Conselho Federal da OAB é um colegiado plural, democrático, que decide à luz da consciência de seus integrantes. Não é movido por qualquer outro interesse senão o de bem servir à sociedade civil brasileira.
Sua credibilidade decorre dessa isenção. E ela, seguramente, há de pautar os trabalhos do Conselho Federal no próximo dia 8.
Como presidente desta instituição - plural e democrática, repito - não me cabe decidir solitariamente, nem induzi-la a decisões. Daí a cautela de minhas palavras, o cuidado na emissão de conceitos.
A única garantia que posso dar, e não hesito em fazê-lo, é de que a Ordem não se omitirá.
Cumprirá o seu dever cívico e institucional, como sempre o fez. Quanto a isso, o país saiba que pode contar conosco.
A Constituição Federal do Brasil, de 1988, estabelece, em seu artigo 133, que “o advogado é indispensável à administração da justiça”. E é de justiça, senhoras e senhores advogados, que, no final das contas, iremos tratar.
Justiça no sentido amplo - Justiça moral, social e política.
O impeachment, sabemos todos, é remédio amargo, drástico, que só deve ser ministrado em casos efetivamente extremos.
Mas se o diagnóstico assim o indicar - e não quero aqui fazer especulações -, deve ser visto com naturalidade, como um recurso institucional legítimo, a serviço do Estado democrático de Direito.
A serviço da sociedade.
Mas, se a instituição, por razões analisadas e discutidas, entender que não é caso de impeachment, não poderá ser acusada de omissão, ou de estar de costas para a parte da sociedade que quer aquela solução.
Prevalecerá a vontade soberana da maioria, sem que isso abale nossa unidade - expressão máxima de nossa força.
São estas reflexões que submeto a este egrégio Colégio de Presidentes da OAB, na certeza de que dará o encaminhamento adequado, neste momento tão grave da vida republicana brasileira.
Uma coisa é certa: precisamos e continuaremos a caminhar unidos, para que nossa palavra continue a soar com credibilidade junto à sociedade civil, cujos ideais queremos continuar vocalizando.
Que Deus nos ilumine.
Muito obrigado."