Presidente da OAB compara em entrevista nepotismo a mensalão
Brasília, 16/01/2006 - Defender o nepotismo é a mesma coisa que defender o mensalão dos congressistas, afirmou o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato, que, ao analisar a resistência de alguns órgãos do Poder Judiciário à resolução do Conselho Nacional de Justiça, entende que a postura é descabida, pois alguns membros da cúpula do Judiciário acham que "o Judiciário é deles". A entrevista foi concedida pelo presidente nacional da OAB ao Jornal do Commercio (RJ).
Ao fazer um balanço das ações empreendidas pela OAB em 2005, Busato destacou não só a busca pela melhoria da qualidade de ensino jurídico no País como também a defesa das prerrogativas e a valorização da profissão. O presidente da OAB lamenta o projeto de lei do deputado federal Max Rosemann, que propõe o fim do Exame de Ordem. Para Busato, o exame é um instrumento de aferição da qualidade do ensino jurídico e não pode transformar-se em uma válvula de escape para a péssima qualidade do ensino jurídico no Brasil.
P - O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou o fim do nepotismo no Judiciário. O fato gerou descontentamento em alguns tribunais. Como a OAB avalia a decisão do CNJ e as resistências à determinação em alguns órgãos do Poder Judiciário?
R - A OAB tem questão fechada contra o nepotismo e lembro que a Resolução nº 7 do CNJ foi a concretização de um sonho não só da advocacia, mas de toda a população brasileira. O sonho de ver um Judiciário transparente e completamente infenso a todas as causas que possam levar à corrupção, de vez que o nepotismo é, no fundo, uma prática de corrupção. Para mim, defender o nepotismo é a mesma coisa que defender o mensalão dos congressistas. Por isso, entendo que essa resistência de alguns setores da magistratura ao cumprimento dessa resolução é uma reação desmedida, descabida, vinda principalmente das cúpulas de tribunais, que perderam completamente a sensibilidade e acham que o Judiciário é deles e de suas famílias. Os tempos, hoje, são de transparência, de respeito à função pública, que deve ser preservada no Poder Judiciário. E, com essa prática arcaica do nepotismo, é evidente que se perde completamente o respeito do povo em sua administração. De qualquer forma, acredito que a magistratura sadia, moderna, que tem por objetivo único o bem-estar da sociedade, não compactua com essa resistência que tem partido principalmente da cúpula de alguns Tribunais de Justiça.
P - Dentre as prerrogativas dos advogados, quais as freqüentemente desrespeitadas?
R - Temos alertado para dois tipos de violação que têm ocorrido com mais freqüência: a fixação de horário determinado para atendimento de advogados nos gabinetes de juízes e a invasão recorrente de escritórios de advocacia. Muitos escritórios têm sido invadidos em todo o País em busca de documentação e arquivos de informações dos clientes e não dos advogados, o que fere o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94) e o direito de defesa do cliente. Nosso Estatuto prevê que a inviolabilidade do escritório pode ser quebrada apenas em caso de busca ou apreensão determinada por juiz e acompanhada de representante designado pela OAB, o que não tem acontecido. O que todos têm que perceber é que as prerrogativas não são apenas um direito do advogado, mas principalmente do cidadão, que tem direito de ser bem defendido perante a Justiça por um profissional que possa trabalhar com sua independência preservada. O advogado não deve sair em defesa de suas prerrogativas apenas porque elas representam um direito profissional. É dever dos advogados mantê-las em favor do cidadão.
P - O que a OAB tem feito para minimizar esse problema?
R - Temos acompanhado com atenção os casos de violação dessas prerrogativas e estado em permanente contato com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que recentemente atendeu ao pedido da OAB e baixou duas portarias (1.287 2 1.288), disciplinando as buscas e apreensões em escritórios de advogados. De acordo com essas portarias, as buscas e apreensões em escritórios de advocacia só podem ser realizadas com o acompanhamento de um representante da OAB, entre outros requisitos, como sempre exigimos. Outra recente vitória da OAB foi o acolhimento, pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, do parecer do deputado Darci Coelho (PP-TO), relator do Projeto de Lei 5.245/05, que altera o Estatuto da Advocacia no sentido de prever a inviolabilidade do escritório do advogado e de seus instrumentos de trabalho, incluindo computadores, telefones, arquivos impressos ou digitais, documentos, bancos de dados e anotações de qualquer espécie, recebidos dos clientes. O projeto de lei é do deputado Michel Temer (PMDB-SP) e atende a várias reivindicações nossas, uma vez que adequa a legislação vigente à realidade.
P - Qual é a posição da OAB com relação à série de mandados judiciais de busca em escritórios de advocacia, que aconteceram recentemente?
R - Consideramos sempre uma agressão às prerrogativas do advogado a invasão indiscriminada a escritórios de advocacia, como aconteceu com freqüência no ano passado. Muitas vezes, valendo-se de discutíveis mandados judiciais, às vezes nem isso, agentes da Polícia Federal invadiram escritórios a pretexto de buscas de provas em suas diligências. Assistimos, então, a um festival de truculência e pirotecnia da Polícia Federal, invadindo, ao arrepio da lei, escritórios de advocacia País afora e confundindo deliberadamente o advogado com os eventuais delitos de seus clientes. Denunciamos esses atos e cobramos providências do Ministério da Justiça no sentido de que fizesse cessar esses atos que atentavam contra a cidadania e o sigilo profissional. O advogado é depositário dos segredos mais íntimos de seus clientes, que, constitucionalmente, devem ser protegidos.
P - Na sua opinião, a que ou a quem pode se atribuir o alto índice de reprovação nas provas da OAB?
R - Ao excesso de faculdades de Direito de baixa qualidade que têm sido abertas no País. Muitas dessas instituições de ensino são verdadeiras fábricas de diplomas que despejam fornadas de advogados todos os anos no mercado, sem prepará-los adequadamente para exercer a profissão. A ganância da indústria do ensino tornou-se em nosso País uma realidade abominável, que compromete a qualidade do nosso mercado de trabalho e, por extensão, gera danos consideráveis à cidadania e à distribuição de Justiça.
P - Qual é o posicionamento da OAB frente ao projeto de lei do deputado federal Max Rosemann (PMDB-PR), que propõe o fim do Exame de Ordem?
R - Classifiquei como lamentável o projeto de lei do deputado que propõe o fim do Exame de Ordem, exame este que habilita o bacharel em Direito recém-formado ao exercício da profissão de advogado. Qual será o próximo passo do deputado? Ele vai tentar acabar com o concurso público da magistratura e do Ministério Público? Entendo que o Exame de Ordem não pode se transformar em uma válvula de escape para a péssima qualidade do ensino jurídico no Brasil. Este exame é um instrumento de aferição da qualidade do ensino jurídico e das condições em que os profissionais da advocacia são habilitados ao mercado. E mais, entendo que as críticas aos altos índices de reprovação do exame em todo o País partem, principalmente, das faculdades que visam meramente ao lucro e fazem do ensino jurídico uma mercadoria.
P - Qual avaliação da OAB sobre a atual crise política que se instalou no Congresso Nacional?
R - Trata-se do maior mar de lama que esse País já viu. Dizer que essa crise é hilariante, como o fez recentemente o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é estar completamente fora da realidade. Acho lamentável o presidente taxar de hilariante a maior crise política-institucional da história da República brasileira, pois não se trata de uma simples querela entre partidos. A presente crise política é, sobretudo, moral, e expõe as entranhas desse sistema político, submetido ao domínio promíscuo dos partidos - partidos esses que, no dizer de um dos mais eminentes pensadores brasileiros do século passado, o jurista e sociólogo Oliveira Viana, não passam de "clãs organizados para a exploração em comum das vantagens do poder". Oliveira Viana referia-se aos partidos do tempo da monarquia, mas alguém, em sã consciência, divergiria desse diagnóstico em relação aos partidos políticos dos dias de hoje?
P - Recentemente, a conselheira federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pelo Mato Grosso do Sul, Elenice Ribeiro Carille, apresentou ao Conselho Federal da OAB o pedido de impedimento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Qual é a opinião do senhor em se tratando do impeachment do presidente Luís Inácio Lula da Silva ?
R - A OAB recebeu pela primeira vez nesta crise uma proposta de ação de impedimento (impeachment), apresentada pela conselheira federal Elenice Carille, e deliberou, por unanimidade, formar uma comissão para apurar, dentro de um processo administrativo, todos os fatos relativos a este assunto. Vínhamos acompanhando essa crise de perto desde junho e o Conselho Federal da OAB sempre disse que não era oportuno, naquele momento, tratar efetivamente de impeachment. Pela primeira vez, o Conselho Federal deliberou pela gravidade dos últimos fatos trazidos ao público e entendeu por formar essa comissão, para trazer ao Conselho informações precisas e documentos a respeito de tudo o que está acontecendo. O impeachment de um presidente da República é o remédio mais amargo que pode existir em uma democracia. Portanto, a OAB se debruçou pela primeira vez, com mais atenção, sobre esse assunto. Na sessão do Pleno do Conselho Federal da OAB do dia 5 de dezembro - a última de 2005 -, o relator do processo, o conselheiro federal Sérgio Ferraz, chamou o feito à ordem e decidiu aguardar pela coleta da documentação existente até agora nas CPIs que investigam a corrupção, bem como os depoimentos à Comissão de Ética da Câmara. De forma que possivelmente na reunião de fevereiro de 2006, o assunto voltará à pauta do Conselho, que vai deliberar conforme o grau da gravidade do envolvimento do presidente da República nos fatos apurados até então.
P - Analisando a atual conjuntura política que vivenciamos, qual deveria ser, no seu entendimento, a maior contribuição da OAB perante um Estado Democrático de Direito para salvaguardar os direitos do cidadão?
R - A Ordem dos Advogados do Brasil é uma entidade representativa dos anseios da sociedade civil brasileira. Desde sua fundação, há 75 anos, está estatutariamente comprometida com a defesa do Estado Democrático de Direito e as instituições republicanas. Não temos partido político, nem sectarismos ideológicos. Temos, isso sim, compromisso claro com a lei e com a cidadania e por isso continuaremos trabalhando para expressar os desejos e os descontentamentos da sociedade. Lembro, ainda, que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu, em seu artigo 133, que "o advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei". Ao alçar o advogado ao nível de "preceito constitucional", o constituinte brasileiro definiu-o para além de sua atividade estritamente privada, qualificando-o como prestador de serviço de interesse coletivo e conferindo a seus atos múnus público. Temos compromisso com a coletividade, verdadeira promissória social, que excede os deveres corporativos e nos torna homens públicos, ainda que sem mandato político ou cargo funcional no Estado.
P - Historicamente, a atual crise moral pode ser apontada como a mais grave de todas?
R - Sem dúvida. Perto dessa crise e dos atos indignos tomados dentro do Governo Lula, o Governo Fernando Collor -- único presidente do Brasil até hoje afastado após um processo de impeachment - foi brincadeira de escoteiro. Dada a gravidade dos fatos que aconteceram agora, o presidente Lula brincou bastante. Brincou com os brasileiros, brincou com a sua biografia, brincou com sua tradição, brincou com o seu partido. Ele deixou essa brincadeira ir longe demais e foi uma brincadeira de muito mau gosto. Diante desse quadro, as instituições vivem séria crise há mais de sete meses, o governo ficou praticamente paralisado e o País só não parou porque anda pelas próprias pernas, tem uma economia dinâmica, um empresariado e um povo trabalhador. O presidente da República finge ignorar a gravidade dessa crise, assim como afirma desconhecer os fatos que a motivaram. Como presidente do Conselho Federal da OAB e tendo em vista a gravíssima moldura da crise, cheguei a propor que o presidente Lula convocasse o Conselho da República, que é composto de figuras eminentes da Nação, para que se aconselhasse sobre os caminhos a seguir, as decisões a adotar para enfrentar os problemas. Infelizmente, ele não adotou a proposta.
P - A sabedoria milenar dos chineses crê que as crises são oportunidades. No atual contexto político, o senhor acredita que a crise política possa ser uma oportunidade única para consolidar mudanças institucionais profundas em outros setores?
R - Sim, essa crise deve ficar como uma grande lição. Os ensinamentos extraídos dessa crise devem servir às futuras gerações. A Ordem tem defendido, por meio de sua Comissão Nacional de Defesa da República e da Democracia, que deve ser aplicado a fundo o artigo 1° da Constituição Federal, segundo o qual todo o poder emana do povo e deve ser exercido por meio de seus representantes, ou de forma direta. O que quer dizer que podemos aplicar constitucionalmente as duas formas de democracia: a representativa e a direta. Achamos que são necessárias mudanças para aprofundar a democracia direta, participativa. Nesse sentido, a Comissão Nacional de Defesa da República e da Democracia, que é coordenada pelo jurista Fábio Konder Comparato, apresentou ao Poder Legislativo proposta de emenda constitucional para aprofundar os instrumentos do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular, previstos no artigo 14 da Constituição. Queremos o povo mais participante e influindo nos destinos do País, por meio desses instrumentos da democracia direta.