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Saudade dos Bacharéis

sexta-feira, 15 de março de 2002 às 09h17

*José Carlos Azevedo

Brasília 14/03/2002 - A lei de 11 de agosto de 1827, sancionada por D. Pedro I e referendada pelo visconde de São Leopoldo, criou os dois primeiros cursos de ciências jurídicas e sociais do Brasil, em Olinda e em São Paulo, que passaram a funcionar, em 1828, no Mosteiro de São Bento e no Convento de São Francisco, respectivamente. Coube ao ministro Couto Ferraz, no Decreto n° 1.386 de 1854, lhes dar nova dimensão e os transformar nas Faculdades de Direito de Olinda e de São Paulo.

Em 1891, esses cursos foram reformados e, às faculdades de Olinda e São Paulo - e às que, logo em seguida, foram criadas - devemos o início da emancipação da cultura brasileira da portuguesa, em particular da Universidade de Coimbra; foram também a gênese da cultura jurídica brasileira, que teve em Ruy Barbosa e Clóvis Bevilacqua dois de seus maiores expoentes.

A influência dos bacharéis na estruturação e condução política e administrativa do Brasil pode ser inferida até de forma indireta, pela sua presença no Legislativo e nas funções mais altas do Poder Executivo. Por outro lado, não é razoável atribuir à sua preponderância na vida pública o fato de sermos um país que, até os anos 50, relegou a plano secundário a formação científica e tecnológica, que até hoje emperra o desenvolvimento nacional. Não tem validade o argumento de Fernando de Azevedo (Cultura Brasileira, ed. 1963, pág. 635, in fine) para justificar esse ponto de vista - que, para ele, se deveu ao maior número de cursos de direito em relação aos de engenharia e ciência.

No caso da ciência, tal número tem pouco a ver com o seu progresso, que sempre se fez, desde tempos imemoriais, em torno de poucas pessoas, e a história é pródiga em exemplos. Quem, no início do século 20, pretendesse estudar física, ia para a Dinamarca, à procura de Niels Bohr; para a Inglaterra, à procura de Ernst Rutherford; para a Alemanha, de Max Planck e Arnold Sommerfeld; e quem quisesse aprender matemática, ia estudar na Alemanha, com David Hilbert, ou na França, com Henri Poincaré.

De 1827 a 1980, o número de cursos de direito cresceu de 2 para 130; chegou a 153, em 1989, a 235, em 1995, a 362, em 1999, e a 442 em 2000. Nos anos de 1980, 1989, 1995 e 1999 o número de cursos em escolas particulares evoluiu de 87 para 103, 160, 269 e chegou a 362, em 2000; nas federais, saiu de 27 para 30, 42 e 47. Nesses mesmos anos, as matrículas evoluíram de 135.026, para 153.631, para 215.177 e 328.782, e chegaram a 370.335, em 2.000; na rede particular, elas variaram de 100.458, para 115.412, para 170.534 e 276.266, em 1980, 1989, 1995 e 1999. Nas escolas federais, o número de cursos passou de 27 para 47, e o de matrículas variou de 21.580 para 25.161, entre 1980 a 1999. Esses números sugerem que a atual administração do MEC poderá ter criado, em oito anos, mais escolas de direito que nos 174 anos anteriores. Esses dados foram obtidos no portal do Inep.

Esses argumentos, que ocorreram mais na rede particular, e são assustadores, não são bons nem ruins; ruim, péssima, é a qualidade de muitos cursos de escolas públicas e particulares, cujo reflexo sobre a sociedade e as pessoas são flagrantes; sob este aspecto, causa perplexidade o aumento do número de cursos e matrículas ocorrido no atual governo, que agravou sua qualidade, devido à carência de professores capazes para essa tarefa. Isso é comprovado de muitas maneiras, até com documentos eivados de erros crassos de português e de argumentação lógica; um ilustre diplomata brasileiro, colecionador dessas preciosidades, possui cópia de um decreto antigo, regulando a concessão de diárias a servidores públicos casados, que diz: ''''Para efeitos deste decreto, entende-se por cônjuge do servidor o marido ou a mulher dele''''.

Abraham Flexner, professor de grego e Mestre em Artes pela Harvard, foi o organizador do respeitabilíssimo Instituto de Estudos Avançados de Princeton; mas o que lhe deu notoriedade foi seu relatório para a Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching, publicado em 1910, sobre educação médica nos EUA e no Canadá, no qual analisou cada uma das 151 escolas existentes; é leitura obrigatória para quem se interessa pela história da educação médica. Devido a esse estudo, se efetuou a profunda reforma do ensino médico nos EUA e no Canadá, entre 1913 e 1929, que garantiu a altíssima qualidade atual dos seus serviços médicos e das pesquisas ali realizadas.

Algo igual deveria ser feito nesta Terra dos Papagaios onde, há muito, sentimos saudades do tempo em que os bacharéis eram uniformemente capazes e não eram substituídos, na elaboração dos textos de ordenamento da nação, por economistas, arquitetos, socioloquazes e palpiteiros de alta sabença, que criaram essa monumental confusão de leis que mudam ao sabor das nuvens. Enquanto o governo avança, célere, inclemente e voraz, nos exauridos bolsos dos cidadãos, escudado em catadupas de leis e ações. Durma-se com esse barulho.

*José Carlos Azevedo é PhD em Física pelo MIT
Fonte: Jornal do Brasil (07/03/2002)

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