Conselho Federal da OAB faz homenagem a Celso Furtado
Brasília, 06/11/2005 - Em sua sessão extraordinária na tarde de hoje (06), o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil prestou homenagem à memória do economista Celso Furtado, ex-ministro do Planejamento e da Cultura e fundador da Sudene, falecido dia 20 de novembro de 2004. Coube ao vice-presidente nacional da OAB, Aristoteles Atheninese, por indicação do presidente nacional da entidade, Roberto Busato, proferir o discurso de homenagem, no qual além de destacar a trajetória de Furtado, inicialmente formado bacharel em Direito, lembrou que sua obra “emerge como referência fundamental, capaz de romper com o mito de que a única política econômica possível é aquela que fica na dependência do superávit primário”.
Aristoteles Atheniense observou também que o economista Celso Furtado, em seus artigos e ensaios, sempre criticou “a economia quantitativa, que nunca passou de mera matemática, inviabilizando o conhecimento da economia social, a única capaz de nos permitir entender a vida”. Para o orador da homenagem, através da obra desse importante economista o Brasil poderia “retomar o caminho do verdadeiro crescimento econômico, da distribuição de renda e da igualdade social”.
A seguir, a íntegra do discurso do vice-presidente do Conselho Federal da OAB de homenagem a Celso Furtado:
“Uma grande história não precisa ser uma história grande.
Recebi do eminente presidente Roberto Busato a dignificante missão de dissertar sobre um brasileiro autêntico que, ao longo de sua frutuosa atuação, foi um incorrigível sonhador.
Leonardo da Vinci, tão criticado pela sua genialidade, respondeu aos invejosos que o maldiziam: “Tudo o que está no plano da realidade já foi sonho um dia”.
Quem foi Celso Monteiro Furtado?
A resposta não reclama qualquer esforço.
Recorram à Internet e conhecerão o economista latino-americano mais lido no mundo, que escreveu mais de trinta livros, com dois milhões de exemplares vendidos, traduzidos em quinze idiomas.
Conhecerão o primeiro brasileiro que se doutorou em Economia na Universidade de Paris, onde lecionou “Desenvolvimento Econômico”, contan-do com um decreto especial do Presidente Charles De Gaulle, devido à sua condição de estrangeiro.
De volta ao Brasil, ei-lo convocado pelo governo Kubitschek para estabelecer a base de seu Plano de Metas, tornando-se o responsável pela criação da SUDENE, no final dos anos 50. Nessa tarefa ingente, propôs-se a resgatar da miséria uma das mais importantes regiões do país. Foi o que fez, valendo-se da experiência do Tennessee Valey Authority nos Estados Unidos e do programa instituído para a Sicília, na Itália.
Continuem na procura e irão encontrá-lo persuadindo a John Kennedy a conveniência em apoiar um programa de cooperação com a SUDENE; e, duas semanas após, com o ministro Ernesto Che Guevara, chefe da delegação cubana à Conferência de Punta del Este, discutia o alcance do programa “Aliança para o Progresso”.
Em 1962, no regime parlamentar, tornou-se o nosso primeiro ministro do Planejamento, elaborando, juntamente com Santiago Dantas, o Plano Trienal, em apenas dois meses.
Decorridos vinte e três anos, ressurge ao lado de Tancredo Neves, com papel decisivo na comissão responsável pelo Plano de Ação do seu governo.
Vamos encontrá-lo, em 1984, como Ministro da Cultura e, posteriormente, embaixador do Brasil junto à comunidade européia na Bélgica, tendo ainda exercido influência fundamental na aproximação e cooperação argentino-brasileira que deu origem ao MERCOSUL.
Não irei mais longe, limitando-me, apenas, a exaltar a sua presença na Universidade de Colúmbia (New York), em Cambridge, em Tóquio, na Argentina, México, Venezuela, Equador, Peru e Costa Rica.
Agora veremos como foi mesmo Celso Furtado.
Nascido em 26 de julho de 1920 em Pombal, no sertão paraibano, era filho de um cidadão modesto, que mantinha a família à custa de muito sacrifício. O menino Celso teve uma infância povoada de dificuldades, conhecendo as invasões de Lampião e Corisco.
Mais tarde, referindo-se a esta fase conturbada do Nordeste, lembrava-se de que não havia Poder Público, prevalecendo apenas a força e o poderio dos coronéis.
Quanto ao cangaço – no seu sentir – constituía um sintoma de desordem social.
O dia da morte de João Pessoa coincidiu com o décimo aniversário de Celso Furtado (26.7.1930), deixando-lhe profunda impressão por ter sido a maior tragédia que assistiu em toda a sua vida.
Após concluir o ginásio em Recife, em cumprimento à determinação do pai, foi estudar Direito na Faculdade Nacional do Rio de Janeiro. Como tinha um bom conhecimento de português e latim, ultrapassou o vestibular traduzindo uma ode de Horácio, que colocaram à sua frente no dia do exame.
Quando ingressou na escola de Direito não havia curso de Economia, na então capital federal.
Conforme deixou assinalado em sua última entrevista, em 2004, naquela época,
“... o Direito era um sistema fechado. Comecei a estudar teoria do Estado, passei para a História, depois para a ciência política e no terceiro ano de Direito já estava muito enfronhado na Economia. Foi uma verdadeira revelação, porque passei a compreender vida social. Os homens, na verdade, estão organizados em função dos interesses, mas esses interesses têm que ser harmonizados para a sociedade humana existir”.
Colhe-se desse desencanto o primeiro sintoma de sua aversão à economia quantitativa. Esta ciência social não deveria deter-se apenas nos seus aspectos econômicos, mas, também, nos sociais, culturais e políticos.
Foi a sua convivência com o Direito insípido, teórico, improdutivo e desatualizado que o levou a afirmar:
“O Direito me deixava com sede, com fome. Mas quando alcancei a macroeconomia e percebi que se poderia ter uma idéia da sociedade como sistema, que tudo era independente, foi uma verdadeira aventura de espírito”.
Foi, especialmente, lendo Keynes que Celso Furtado iniciou a sua forma original de perscrutar as nações relacionadas com o processo de desenvolvimento, buscando em método histórico estruturalista a gênese da formação do subdesenvolvimento.
Já aos quinze anos de idade, seu pai o advertira de que no Brasil só poderia vencer quem soubesse inglês. Daí haver contratado aulas de um químico industrial, Mr. Vance, que trabalhava nas usinas da região, para ministrar-lhe aquele idioma.
Após concluir o curso de Direito e o CPOR, foi convocado para a Força Expedicionária Brasileira, como aspirante.
A FEBE estava jungida ao comando do V Exército americano.
Surgiu-lhe, então, a oportunidade de ser o intérprete brasileiro junto aos oficiais aliados. Conforme relatou, eram freqüentes as divergências entre os oficiais brasileiros e os americanos.
Como tradutor, competia-lhe também apaziguar esses desentendimentos.
Em sua pequena obra, “De Nápoles a Paris”, descreveu o ambiente da Toscana, onde sofreu acidente em uma missão de que participara durante a ofensiva final dos aliados no norte da Península, onde tudo acabou num amontoado de ruínas.
Finda a guerra, de volta ao Brasil recusou-se em desfilar como vitorioso pela avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro.
Não via grandes méritos na participação do Brasil no conflito, pois, quando lá chegamos, a conflagração estava em sua fase final. De modo que, a seu ver, a participação que tivera nas hostilidades não justificava qualquer homenagem mais expressiva.
Com o soldo recebido enquanto esteve na Itália, resolveu voltar à Europa. Matriculou-se na Faculdade de Economia de Paris, onde se doutorou com uma tese sobre a economia brasileira nos séculos XVI e XVII.
Sem que houvesse prestado um depoimento sequer, ou fosse acusado de qualquer falcatrua ou desvio de verba, no exercício da função pública, Celso Furtado teve os seus direitos políticos cassados por dez anos, três dias após a publicação do Ato Institucional n.o 1.
Segundo a narrativa de um general, que com ele conviveu à época em que Celso dirigia a SUDENE, num determinado dia faltavam veículos para transportar máquinas, técnicos e engenheiros numa tarefa a ser cumprida no interior da Paraíba. A justificativa dada pelo oficial a Celso Furtado foi de que não havia como executar a tarefa, em razão da carência de meios necessários à sua realização.
Celso, então, indagou-lhe: “E os carros que estão no quartel?”. O militar prontamente lhe respondeu: “O comandante lhe disse que os carros ali estavam para a guerra”.
Celso, que conhecera a guerra de perto, retorquiu: “Vou lá com o senhor explicar ao comandante que também estamos numa guerra, só que a favor do Brasil”.
E assim o fez. Explicou ao comandante a razão de ser de sua persistência e o que tinha de ser transportado também o foi, afastadas as dificuldades que conseguiu superar.
Como responsável pelas políticas de desenvolvimento, Celso Furtado preocupou-se, inclusive, com a obtenção da síntese do ácido acetilsalicílico, a popular aspirina, de uso diário pelas camadas menos favorecidas.
No Chile, como exilado, trabalhou sob a liderança de Raúl Prebish, na CEPAL, empenhado em demonstrar o equívoco do pensamento ortodoxo que propunha uma divisão internacional do trabalho, segundo o qual os países periféricos e subdesenvolvidos deveriam limitar-se a produzir os insumos para o consumo produtivo dos países centrais.
Meus colegas:
Confesso-lhes que não cheguei a ler as mais importantes obras de Celso Furtado. Sempre o admirei, desde que o vi, pela primeira vez, em Belo Horizonte, ainda acadêmico de Direito, defendendo a criação da SUDENE contra a qual se opunha o que havia de mais reacionário na política de então.
Sempre me encantei com as suas advertências aos governantes no sentido de que o subdesenvolvimento não era fruto do acaso, tendo as suas leis de funcionamento que reclamavam um esforço corajoso e consciente.
Com os seus artigos e ensaios verberou a economia quantitativa, que nunca passou de mera matemática, inviabilizando o conhecimento da economia social, a única capaz de nos permitir entender a vida.
Assim, quando ouvimos dizer que a única política econômica possível é aquela que fica na dependência do superávit primário, a obra de Celso Furtado emerge como uma referência fundamental, capaz de romper com esse mito.
Só através dela poderemos retomar o caminho do verdadeiro crescimento econômico, da distribuição de renda e da igualdade social.
Vejam, senhoras e senhores, a identidade existente entre o que temos sustentado neste Conselho Federal com a sua concepção sobre desenvolvimento e dívida externa. Dizia ele:
“Pode haver um desenvolvimento fictício, com concentração de renda ou endividamento do país. Crescer com dívida externa, em grande parte mal empregada, não é necessariamente se desenvolver. Hoje estamos passando da forma histórica de medir o crescimento para outra mais sofisticada, porque agora a grande preocupação é com a natureza dos recursos. Grande parte dos chamados recursos de investimento no Brasil são desperdiçados”.
Numa de suas manifestações de descontentamento com o governo que precedeu ao atual, não hesitou em afirmar que,
“Em nenhum momento da nossa história foi tão grande a distância entre o que somos e o que esperávamos ser”.
Reputo oportuna a avaliação feita pelo senador Cristóvão Buarque da tribuna da Câmara Alta, quando de seu passamento:
“Cada vez que pensamos no Nordeste, como essa entidade mágica e sofrida, pensamos como Celso Furtado. Quando pensamos que a economia precisa de um planejamento no Brasil, pensamos como ele pensou. Todas as vezes que pensamos que o desenvolvimento é uma condição necessária para a erradicação da pobreza, mas que só o desenvolvimento econômico não basta, pensamos como Celso Furtado.
Passou-nos a idéia de que nas mãos de pessoas sem valores éticos, a técnica pode ser um instrumento de opressão, de injustiça”.
Estamos homenageando, nesta tarde, não somente um bacharel em Direito, mas, alguém que não encontrou nessa ciência, quando estudante, o lenitivo para as inquietações que o afligiam.
Cidadão probo, teve suas condecorações cassadas pelo regime militar. Mais tarde, restabelecida a democracia, pretenderam restituir-lhe o que de direito lhe pertencia.
Recusou-se a receber de volta as comendas que lhe foram outorgadas neste País por seus méritos, admitindo que poderia correr o risco de, no futuro, novamente vir a ser privado delas.
Melhor seria, então, que permanecessem nas mãos impuras dos glutões do mandonismo. Para estes o direito, a liberdade, o respeito à pessoa humana, constituiriam sempre meras ficções.
Celso deixou-nos, na manhã de 20 de novembro de 2004, num sábado, em seu modesto apartamento de Copacabana.
Por volta das 11:30h, quando se pesava em uma balança caiu, já morto.
Alguns cessam de viver antes mesmo de morrer.
A outros, como Celso Furtado, a morte não foi uma tragédia, aplicando-se-lhe o verso de Catulo, poeta latino:
“O sol pode se pôr e renascer;para nós quando a breve luz se apaga, resta uma única eterna noite para dormir”.