Veja o pronunciamento de Approbato sobre violência
Brasília, 22/02/2002 - Abaixo, o pronunciamento do presidente nacional da OAB, Rubens Approbato Machado, sobre o problema da violência no Brasil:
"Hoje, compareço a Ribeirão Preto na condição de Presidente Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, reunindo os Presidentes das OAB das Seccionais do Sul (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná) e do Sudeste (São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais), com a presença da Diretoria do Conselho Federal e de Conselheiros Federais e Estaduais, além de Presidentes de Subsecções desta rica e progressista região.
Este evento assume uma importância extraordinária na agenda da Ordem dos Advogados do Brasil. Primeiro, porque precisamos fazer a nossa lição de casa, repassar questões de interesse corporativo, promover acertos e ajustes internos. Mas a importância estratégica desse nosso Encontro se deve ao fato de que o Brasil vive um momento particularmente decisivo em sua história política. Estamos em um ano eleitoral. Cerca de 115 milhões de brasileiros deverão eleger o futuro comandante da Nação, na eleição que renovará, também, os Executivos Estaduais e as representações no Congresso Nacional e nas Assembléias Legislativas.
O ano eleitoral em curso, infelizmente, é também o ano em que o país parece ter chegado ao pico da montanha da violência. O quadro social se apresenta grave e tenso. O discurso da segurança, por isso mesmo, estará no centro do debate político.
A Ordem dos Advogados do Brasil, cumprindo, mais uma vez, sua missão de intérprete dos anseios sociais e de vanguardeira das ações de mudanças, há de manifestar o seu grito e o seu alerta e de exigir das autoridades um Programa consistente de combate à violência que se abate sobre o país.
Esta é a razão, senhores presidentes, que me leva a usar a totalidade desse espaço para falar do tema da violência.
Ao procurar a expressão mais adequada para abrir esta temática vem à mente a imagem mais brutal que a população brasileira passou a receber nos últimos tempos: a imagem dos seqüestros, a imagem do terror, a imagem da perda de familiares, a imagem da insegurança. Por conseguinte, abro este evento, pondo força e crença na ênfase: o Brasil é refém do medo; o Brasil é refém da insegurança coletiva; o Brasil está seqüestrado pela violência indiscriminada, que chega a excluir, por ano, do mundo dos vivos, cerca de 40 mil brasileiros. Repito: 40 mil brasileiros morrem, por ano, vítimas da violência, numero absurdo quando se sabe que supera, sozinho, a soma dos assassinatos que ocorrem, anualmente, nos Estados Unidos, Canadá, Itália, Japão, Austrália, Portugal, Inglaterra, Áustria e Alemanha.
As perdas são inimagináveis: o Brasil perde, por ano, com a violência cerca de 10% de seu PIB, cerca de US$ 80 bilhões.
E, na área da indústria de seqüestros, o Brasil já é o quarto país do mundo com o maior índice, perdendo apenas para a Colômbia, o México e a Rússia.
Quais as causas que explicam este deplorável estado de coisas? Muitos vão apontar a crise social como a vertente de todos os problemas. Não desejamos, aqui, martelar na visível tessitura de mazelas geradas pela pérfida equação de distribuição de renda, que reparte os brasileiros entre cidadãos de primeira, segunda e terceira classes, nem queremos nos deter na recorrente questão da precariedade das estruturas públicas de serviços, que deixam agonizantes parcelas ponderáveis de nossa população. Esses fatores contribuem seguramente para a situação de insegurança social.
Trata-se de um quadro que, bem o sabemos, não será mudado da noite para o dia. É empreendimento de toda uma geração. Precisamos buscar, ir fundo às raízes da violência, tentar interpretar as razões de seu crescimento. Temos de olhar, com particular atenção, para a juventude, principalmente para os jovens entre 18 e 25 anos, que se desviam de seu natural caminho de crescimento profissional. Haveremos de dar um basta à escalada da violência, sob pena de vermos o nosso país enveredar pela trilha da guerrilha urbana. Temos de brecar o Estado delinqüencial que se sobrepõe ao Estado de direito, ao Estado constituído. O nosso grito, o nosso alerta, o nosso brado, o nosso clamor é pela Construção da Cidadania Ativa, esse espírito cívico que vai às ruas exigir mudanças, pressionar Governos e , como ocorreu na Argentina, nos últimos tempos, com a ascensão e queda de vários presidentes. Não precisamos pegar em armas, não precisamos fazer revolução democrática. A nossa revolução é a revolução das idéias, é a revolução da mobilização das forças organizadas da sociedade.
Diante do quadro de gravidade que se apresenta, a pergunta-chave é: que a Cidadania Ativa pode fazer?
Algumas medidas têm condições de ser desenvolvidas. No curto prazo, por exemplo, poderemos interferir em mecanismos do arsenal normativo, por meio de ações e decisões que dependem muito de vontade política e competência administrativa. Analisemos alguns problemas.
Primeiro, a questão da impunidade. De cada 100 crimes violentos que são registrados nas delegacias, a polícia só consegue prender suspeitos em 24 casos. Desses 24, apenas 14 casos conseguem ter provas para submeter os acusados a julgamento. Dos 14, apenas um criminoso cumprirá a pena até o final. É alarmante o dado: de cada 100 crimes violentos, apenas um criminoso fica por trás das grades pelo tempo integral da pena. Essa impunidade estimula a violência. A palavra chave é, sem dúvida, a IMPUNIDADE.
A Polícia Militar de São Paulo apreendeu 41 mil armas, em 99, das quais 40% com identificação raspada, e a quase totalidade das pessoas presas pagou R$ 60 de fiança, saindo das delegacias antes dos policiais que aguardavam o término do flagrante. Dos 90 mil presos de 1999, dos quais cerca de 75% cometeram crimes graves, quase a totalidade voltou para as ruas. A burocracia faz com que processos de homicídio levem 10 anos para serem concluídos, sete dos quais nas mãos de burocratas.
O Poder Judiciário haverá de participar efetivamente da mobilização pela atenuação da criminalidade, acabando com a morosidade, fomentando o clima da impunidade, principalmente no que concerne a crimes de repercussão social mais grave. Deverá ser dada prioridade à apuração dos crimes violentos e punição rigorosa dos culpados. Para tanto desnecessário qualquer ato legislativo. Basta se adotar, nos regimentos do Poder Judiciário, a prioridade de instrução e julgamento desses tipos de processo, inclusive em segundo grau. O interesse social há de se sobrepor às pautas de julgamento.
De outro lado, convém salientar, que não é multiplicando leis que diminuiremos a quantidade de crimes. Pela Lei de Execução Penal, de 1984, cada preso deve ter direito a uma cela individual de 6m², com vaso sanitário e pia. A realidade é outra: as cadeias contam com 30, 40, 50 presos, alguns se amarrando às grades para dormirem em pé. Eis aí mais uma razão para as constantes fugas. Em São Paulo, apenas 10% das 10 mil pessoas presas em um mês permanecem detidas.
Não vemos, também, no endurecimento da pena medida miraculosa para atenuar a violência. Não é a exacerbação da pena que diminui o crime, mas a certeza da punição. Sendo assim, a instituição da pena de morte, em alguns estados norte-americanos, teria atenuado a violência, o que não ocorreu. Dispomos, entre nós, de penas ampliadas para os crimes hediondos, dentre eles os seqüestros. Tais delitos, fortemente punidos na Lei e na execução da pena, ao contrário do que se pretendia, aumentaram, atingindo, com os seqüestros, índices alarmantes. O que precisamos fazer é um combate efetivo ao crime organizado, especialmente o combate ao tráfico de drogas, ao comércio ilegal de armas. É necessário, isso sim, buscar não apenas os que praticam diretamente o crime, mas todos aqueles que se beneficiam com a criminalidade, os receptadores, os proprietários de desmanches, os cartéis de drogas e armamentos. A violência há de ser tratada de maneira sistêmica.
Não é por acaso que o Brasil tornou-se o terceiro maior mercado de carros blindados do mundo. Não é à toa que a segurança privada, no país, chega a empregar um exército de um milhão e trezentas mil pessoas que trabalham como guardas de segurança. Trata-se de um contingente que equivale ao dobro de toda a força policial dos 27 Estados brasileiros. Esse mercado cresce a uma taxa de 30% ao ano.
Que pode, então, ser feito?
Há soluções consensuais.
Primeiro: a descentralização do combate à violência. Está mais que provado – e as medidas tomadas em Nova Iorque para debelar a criminalidade atestam o acerto da descentralização – que os programas de combate ao crime devem levar em consideração as realidades espaciais e locais, as diferenças regionais, as peculiaridades de cada Município. Nova Iorque teve uma redução de 71% nos assassinatos, com a aplicação da tolerância zero, pela qual até os pequenos delitos são punidos. A cidade foi repartida em setores, e para cada um se nomeou um responsável. A idéia de um policiamento mais próximo à comunidade é benéfica. A polícia comunitária angaria mais simpatia da população, fator importante para uma eficaz política de combate à criminalidade.
Segundo: o combate à corrupção na própria polícia. Há 300 mil policiais atuando em nove dos maiores Estados brasileiros. Desse contingente, cerca de 30 mil são acusados de alguma espécie de crime e 50% estão ligados a roubos de cargas, extorsão, seqüestro, homicídio e tráfico de drogas. A assepsia das polícias é medida de absoluta prioridade.
Terceiro: a unificação operacional das polícias, principalmente nas regiões metropolitanas, que concentram os maiores índices de produção econômica, educacional e cultural. Essas áreas podem dispor de um policiamento uniformizado e a investigação conjunta, sem rivalidades, sem ambições e disputas, sem duplicação de funções. A investigativa, sem fardamentos, é tarefa da polícia civil; a ostensiva, de combate direto, preventivo e repressivo, é da polícia fardada. As duas devem, porém, ter uma filosofia e uma política de segurança únicas.
Quarto: a seguir, aponta-se a necessidade de um criterioso e bem montado serviço de inteligência, capaz de trabalhar com agilidade na identificação dos criminosos. Não se pode descurar do ajuste urgente dos códigos penal, processual e da lei de execução penal, além do Estatuto da Criança e do Adolescente, necessário para assegurar a rápida, ágil e justa prisão dos delinqüentes violentos e apenados, depois do devido processo legal.
Quinto: Se há 100 mil mandados de prisão, que não são cumpridos por falta de vagas no sistema prisional, a lógica recomenda a criação de 100 mil vagas prisionais nos próximos anos. O Governo precisa investir mais pesadamente em segurança. Os norte-americanos gastam o equivalente a 25% do PIB brasileiro – 250 bilhões de dólares – para manter funcionando uma máquina que assegura prisão de 2 milhões de criminosos. Para cada aumento de 10% na população carcerária americana, há uma redução de 15% a 20% nos homicídios, segundo pesquisa da Universidade de Missouri.
Por fim, neste sumário de temas, não se pode descurar do treinamento policial. Para formar e manter cada policial, os EUA gastam cerca de R$ 400 mil por ano. O Brasil gasta um oitavo dessa quantia. Ademais, há de se observar a chamada cadeia da criminalidade. Pesquisas feitas em São Paulo, que correspondem aos mesmos resultados apontados nos Estados Unidos, indicam que 90% dos crimes ocorrem em cerca de 5% a 8% das ruas. É lógico que o policiamento maior deve ser nas áreas mais críticas.
Senhores Presidentes:
Como os senhores podem facilmente deduzir, ações, estratégias e soluções existem. O que tem faltado, repito, é vontade política. Não podemos mais admitir que as autoridades sejam afetadas em sua sensibilidade apenas quando ocorrem crimes de alto impacto como o assassinato bárbaro do prefeito Celso Daniel. Não mais podemos admitir que os Planos Nacionais de Segurança fiquem apenas na intenção das promessas. O Brasil está a carecer de uma abrangente e densa política de combate à criminalidade, que seja capaz de resgatar a confiança da população na autoridade constituída.
E para que este Plano assuma caráter de viabilidade, há de se consertar a impunidade gerada pelo obsoletismo da legislação penal, da falta de agilidade da justiça, da precariedade da rede prisional, da desorganização e corrupção do aparelho policial, da falta de integração entre esferas governamentais, da falta de estímulo à colaboração da própria sociedade para ações de prevenção da criminalidade.
A palavra de ordem é coragem para mudar. Mudar com a semente de uma nova cultura. Uma cultura que contemple os valores do respeito à ordem e à lei, da ética e da honestidade de propósitos, do combate às práticas ilícitas, sejam quais forem as suas dimensões. A tolerância às pequenas infrações é um vírus que se propaga tanto, que corrói os valores humanos, gerando as metásteses que acabam contaminando todo o corpo social. A sociedade quer se olhar em espelhos de moralidade, mas ao divisar os escândalos que ocorrem no sistema político acaba se frustrando. Parcelas consideráveis da população, decepcionadas, ao procurarem mecanismos de compensação para sua descrença, acabam se infiltrando nos submundos e porões do crime, amparados em um Estado paralelo e marginal.
Esforço monumental precisa ser empreendido para salvaguardar as bases da Nação, enfeixadas pelos grupamentos jovens, muitos dos quais, sem políticas públicas apropriadas, sem lazer e sem cultura, sem trabalho e sem perspectiva, e que vão sendo empurrados para os subterrâneos da criminalidade. Urge trabalhar com muita força os fatores críticos que mexem com os jovens, particularmente aqueles na faixa entre 15 e 25 anos, particularmente os grupos submetidos às frustrações e carências cotidianas, que são mais sujeitos ao crime. Nesse sentido, é preciso envolver a comunidade nos programas de aplicação e difusão de estratégias de reeducação de crianças e de adolescentes para a adoção de alternativas de comportamento não violentos.
Companheiros:
Abro, agora, um espaço para falar do nosso papel. Não posso deixar de manifestar o repúdio da Ordem dos Advogados do Brasil às recentes propostas do Governo, dentre as quais a de submeter os advogados a revistas quando estes tiverem de visitar seus clientes em penitenciárias. Trata-se de uma falsa medida de proteção, e, mais que isso, uma estapafúrdia presunção de conivência entre o advogado e seu cliente, como se aquele fosse usado para infiltrar nas prisões armas e drogas.
Repudiamos, de maneira veemente, essa tentativa de macular a imagem dos advogados. O livre acesso do advogado às prisões e a inviolabilidade de seu local de trabalho são garantidos pelas prerrogativas definidas na lei 8.906/94. Os documentos conduzidos pelo advogado, em sua pasta, constituem extensão de seu escritório, sendo, assim, invioláveis. Trata-se de materiais que implicam sigilo profissional. Para ser ainda mais claro: a lei permite que o advogado ingresse nos estabelecimentos penais, a qualquer hora, ainda que os presos sejam considerados incomunicáveis. Se o advogado sofre restrições no exercício de sua função, todos saem prejudicados, pois não está se aplicando a Justiça. Se a preocupação do Governo é com relação a armas, equipamentos eletrônicos e drogas, não vemos nenhum problema em passarmos pelo detector de metais, medida rotineira nos aeroportos. O que não podemos permitir, de modo algum, é que o conteúdo da pasta do advogado seja retirado e manuseado por pessoas estranhas, o que, no fundo, significa violar o local do trabalho, os arquivos, a correspondência. Uma maneira mais simples de se adequar uma solução para prevenir qualquer violação ética ou profissional, bastaria dispor-se, em regimento interno do estabelecimento prisional, a revista, antes e depois da entrevista com o advogado, do próprio preso, para detectar eventual instrumento proibido.
Senhores Presidentes:
É hora de concluir. E quero terminar com uma imagem que já usei uma vez.
“Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? O que eu vejo é o beco.” Em um dos meus artigos publicados na grande mídia jornalística, iniciei o primeiro parágrafo com esta expressão do Poema do Beco, de Manuel Bandeira. Usei a metáfora para colocar a indignação: que adianta a estabilidade monetária, se os 10% dos mais ricos concentram 50% da riqueza nacional?
Agora, posso usar a mesma metáfora para concluir: que adianta a tão decantada estabilidade econômica, se o que eu vejo é o terror, o medo, a insegurança social?
Vamos lutar, de mãos juntas, com força, para que um dia, que não seja muito tarde, possamos distinguir novamente a beleza da paisagem, a Glória e a linha do horizonte!"