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Comparato recebe medalha da OAB e defende soberania popular

domingo, 25 de setembro de 2005 às 19h45

Florianópolis (SC), 25/09/2005 – O jurista e professor Fábio Konder Comparato defendeu hoje (25), durante a abertura cultural da XIX Conferência Nacional dos Advogados, a utilização dos instrumentos consagrados da democracia direta como forma de fundar uma soberania popular ativa e dar poder de controle efetivo ao povo sobre a ação de todos os agentes públicos. “Como todo poder de controle, ele comporta não só a competência exclusiva para fixar as diretrizes gerais da ação política estatal, mas também a prerrogativa de responsabilizar diretamente os governantes por todo abuso ou desvio de poder”.

A afirmação constou do discurso feito por Comparato, ao receber das mãos do presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato, a Medalha Ruy Barbosa – comenda máxima oferecida pelo Conselho Federal da OAB a um integrante da classe. A medalha foi entregue em cerimônia realizada no Centro de Convenções Centro Sul, em Florianópolis.

Fábio Konder Comparato é um dos maiores constitucionalistas da atualidade brasileira e, ao receber a medalha Ruy Barbosa, assumirá o lugar de seu tio no rol dos já agraciados com a comenda, o ministro Evandro Lins e Silva. Comparato ainda coordenou a Campanha Nacional de Defesa da República e da Democracia, lançada pelo Conselho Federal da OAB em 15 de novembro do ano passado.

Participaram da sessão o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos; o vice-presidente nacional da OAB, Aristoteles Atheniense; o secretário-geral da entidade, Cezar Britto; o secretário-geral adjunto, Ercílio Bezerra; e o diretor-tesoureiro, Vladimir Rossi Lourenço. Também estiveram presentes à cerimônia o coordenador do Colégio de Presidentes de Conselhos Seccionais da OAB e também presidente da OAB do Rio de Janeiro, Octávio Gomes; presidentes de Seccionais da entidade e os seguintes membros honorários vitalícios: Reginaldo Oscar de Castro; Ernando Uchoa Lima; Ophir Filgueiras Cavalcante; Márcio Thomaz Bastos; Hermann Assis Baeta; Mário Sérgio Duarte Garcia; e José Cavalcanti Neves.

A seguir, a íntegra do discurso proferido pelo jurista Fábio Konder Comparato:

"Ao iniciar este discurso, seja-me permitido render uma homenagem muito especial e comovida à memória de Evandro Lins e Silva, detentor da Medalha que me é agora conferida. Do entusiasmo manifestado desde a juventude pela instituição do júri, verdadeira “escola de democracia”, como ele sempre afirmou, até assumir, no entardecer da vida, a posição altaneira de defensor do povo brasileiro no processo de destituição de um presidente da República que desmereceu a honra do cargo, Evandro Lins e Silva soube mostrar, em toda a sua longa atividade profissional, que a verdadeira nobreza da advocacia consiste em pôr, em qualquer circunstância, a arte da argumentação jurídica na defesa da dignidade humana.

Hoje, tal como na fase culminante da vida profissional de Evandro Lins e Silva, a grande causa para a qual somos todos convocados não é a defesa dos interesses deste ou daquele indivíduo ou grupo social, mas sim o amparo de todo o povo brasileiro. O que nos incumbe agora advogar é a regeneração da nossa vida política.

A Constituição Federal abre-se com a declaração solene de que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito (art. 1º). O Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, por sua vez, indica, como primeira de suas finalidades, a defesa da Constituição, da ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, dos direitos humanos e da justiça social (art. 44, I). A ninguém, contudo, pode passar despercebido que as nossas instituições e os nossos costumes políticos ainda estão muito longe de se pautar, efetivamente, pelo princípio republicano e pelo princípio democrático.

E a razão é clara. Todo regime político representa uma organização de poder. Numa república, a finalidade do poder é assegurar a prevalência do bem comum do povo (a res publica, no lídimo sentido latino) sobre todo e qualquer interesse particular, de indivíduos ou grupos sociais. Numa democracia, a soberania, entendida como o máximo poder de controle sobre a ação de todos os agentes públicos, isto é, de todos os servidores do povo, só pode ser o próprio povo e mais ninguém. Ora, em nosso país, temos vivido em situação de permanente abuso ou desvio do poder político, com relação aos princípios norteadores, tanto de uma verdadeira república, quanto de uma autêntica democracia.

Duas são, no meu entender, as causas históricas dessa doença crônica: o privatismo oligárquico e a concentração desmedida de poderes na pessoa dos governantes. Examinemos sumariamente esses agentes patogênicos.

Aristóteles já havia advertido que nas oligarquias não é abstratamente uma minoria qualquer que detém o poder supremo (to kyrion), mas sim a camada social dos mais ricos.

Entre nós, a oligarquia original, formada pelos primeiros senhores rurais e seus descendentes, era eminentemente localista e nunca teve a bem dizer um projeto nacional. Cada senhor rural defendia o seu domínio como uma espécie de universo fechado, mantendo com os demais senhores uma relação de alianças ou conflitos. Pior ainda: as populações indígenas foram sistematicamente marginalizadas e empregadas como mão de obra servil. Isto, sem falar na escravidão dos africanos, mantida durante quase quatro séculos, e que marcou fundamente as nossas instituições e a mentalidade geral do nosso povo.

Tratava-se, pois, de um sistema de organização propriamente senhorial e doméstico, que os filósofos gregos denominaram despótico, pois a palavra despotes, na língua helênica, designava o chefe de família e senhor de escravos.

Frei Vicente do Salvador, o primeiro historiador do Brasil, ilustrou esse caráter senhorial e doméstico de nossa primeira organização oligárquica, ao contar o caso do bispo de Tucumã, que fez estadia em Salvador, em demanda da Europa. O prelado espanhol verificou, com espanto, a completa ausência de um espaço de relacionamento público na sociedade baiana da época. Quando enviava alguém às ruas da cidade para comprar mantimentos, o servidor voltava de mãos abanando. Mas toda vez que recorria aos préstimos de algum rico morador, recebia carne, peixe e ovos em abundância. De onde a sua conclusão lógica: “verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa”.

A modernização da nossa sociedade, com a urbanização e o avanço do capitalismo, primeiro industrial e depois financeiro, mudou a estrutura e os objetivos da organização oligárquica primitiva, sem alterar fundamentalmente a sua natureza. Bem ao contrário, a oligarquia econômica conheceu notável reforço, em benefício sobretudo de empresas alienígenas, com a ruinosa política de privatização de empresas estatais. E é sempre o vulto sinistro dos homens do dinheiro que vemos passar in absentia, nos processos de homicídio de trabalhadores rurais, ou nas audiências das comissões parlamentares de inquérito sobre a corrupção de agentes públicos.

Aos olhos dos oligarcas, de ontem e de hoje, o povo é tido como massa incapaz de qualquer iniciativa útil e que deve, por isso mesmo, ser posto a serviço da camada supostamente competente e ilustrada da população, aquela que costumamos designar, com evidente abuso de linguagem, pelo nome de elite.

Rui Barbosa assinalou o quanto essa estrutura social deforma e avilta as instituições fundamentais do regime republicano e democrático. “Pesai bem”, advertiu ele aos bacharelandos da Faculdade de Direito de São Paulo, que o haviam escolhido como paraninfo, “pesai bem que vos ides consagrar à “lei”, num país onde a lei absolutamente não exprime o consentimento “da maioria”; onde são as minorias, as oligarquias mais acanhadas, mais impopulares e menos respeitáveis, as que põem e dispõem, as que mandam e desmandam em tudo”.

A segunda instituição de permanente abuso ou desvio de poder, neste país, é a tradicional prepotência dos governantes. Vieira, como sempre, soube defini-la de modo lapidar. “Neste Estado”, escreveu ele em carta dirigida a D. João IV em 1655, referindo-se ao Grão-Pará e Maranhão, “há uma só vontade e um só entendimento e um só poder, que é o de quem governa”.

Joaquim Nabuco, mais de dois séculos depois, confirmou a subsistência desse estado de coisas, ao afirmar que a “onipotência do Executivo” é “o traço saliente do nosso sistema político”. E Rui Barbosa fez-lhe eco, ao qualificar o sistema de governo instituído a partir de 15 de novembro de 1889. “O presidencialismo brasileiro”, disse ele ao tomar posse, em maio de 1911, no cargo de presidente do Instituto dos Advogados, “não é senão a ditadura em estado crônico, a irresponsabilidade geral, a irresponsabilidade consolidada, a irresponsabilidade sistemática do Poder Executivo”.

Tais afirmações do nosso patrono podem parecer hiperbólicas. Mas se nos limitarmos, tão-só, a considerar o poder quase absoluto que o chefe do Poder Executivo detém em matéria orçamentária, a prerrogativa do Presidente da República de legislar diretamente por meio de medidas provisórias, combinada com o controle indireto da atividade legislativa do Congresso Nacional, ou a sua competência discricionária na nomeação dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, bem como na do Procurador-Geral da República sem a restrição da lista tríplice, reconheceremos sem esforço algum de argumentação que nada disto se coaduna com um governo autenticamente democrático.

Aliás, na mesma época em que escrevia aquela condenação sem apelo da hegemonia presidencial, ou seja, durante o governo do Marechal Hermes da Fonseca, Rui traçou um quadro que nos parece hoje muito familiar das relações entre a presidência da República e o Congresso Nacional:

“Quando os fiscalizados aliciam os seus fiscais, a fiscalização, para estes, se converte num meio de vida, cujo gozo acaba por obliterar de todo, nuns e noutros, os escrúpulos da moralidade. A do Congresso não cessa de baixar continuamente, neste regime de permutas, par a par com a do governo, como o nível do líquido de dois vasos comunicantes”.

Sem dúvida, entre o chefe do Poder Executivo e o complexo oligárquico, tanto econômico, quanto político-partidário, estabelece-se uma relação nem sempre isenta de tensões e conflitos. Mas ambos concorrem afinal para um mesmo resultado: a marginalização política do povo.

O Padre Antonio Vieira já a denunciava em 1640, no sermão pregado no Hospital da Misericórdia da Bahia, quando da chegada do Marquês de Montalvão, Vice-Rei do Brasil e 1º Presidente do Conselho Ultramarino. Ele tomou como mote de sua prédica as palavras que teriam sido ditas por Maria ao Arcanjo, ao lhe anunciar a sagrada gravidez: Ut facta est vox salutationis tuae in auribus meis, exultavit in gaudio infans:

“Comecemos por esta última palavra”, propôs o grande pregador. “Bem sabem os que sabem a língua latina, que esta palavra infans, infante, quer dizer o que não fala. Neste estado estava o menino Batista, quando a Senhora o visitou, e neste esteve o Brasil muitos anos, que foi, a meu ver, a maior ocasião de seus males. Como o doente não pode falar, toda a outra conjectura dificulta muito a medicina. [...] O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou a palavra na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão”.

Nenhuma surpresa, por conseguinte, se a adoção do sistema de representação popular entre nós, logo após a Independência, revelou-se uma farsa medíocre. Em lugar da relação de mandato, na qual o mandante manifesta sua vontade livre e autônoma, que deve ser fielmente cumprida pelo mandatário, transpusemos para o terreno político o sistema de representação necessária, em que o povo aparece como uma espécie de menor impúbere, deficiente mental, ou como fazendo parte daqueles que, como diz o novo Código Civil (art. 3º, III) “mesmo por causa transitória”, que no nosso caso é permanente, “não puderem exprimir a sua vontade”, e cujos direitos e interesses, por conseguinte, hão de ser exercidos por outrem.

Um episódio da vida parlamentar do Império deve ser aqui lembrado, porque ilustra à perfeição o regime de hipocrisia oficial em que temos vivido, em matéria de representação popular.

Em 1879, o Ministério Sinimbu apresentou proposta de alteração do sistema eleitoral instituído pela Constituição de 1824, para introduzir a eleição direta dos deputados à Assembléia Geral. Sob essa aparência de aprimoramento da representação popular, porém, embutiram-se de contrabando no projeto duas outras modificações do sistema eleitoral, de caráter nitidamente antidemocrático: a abolição do voto dos analfabetos e a elevação do censo, ou seja, do limite mínimo de renda anual que habilitava o cidadão a ser eleitor.

Foi então que se levantou, como advogado do povo brasileiro, o então deputado José Bonifácio, o Moço, professor insigne da Faculdade de Direito de São Paulo e, seguramente, o maior orador parlamentar que este país jamais conheceu. Quando subiu à tribuna da Assembléia, na tarde do dia 28 de abril de 1879, a Casa estava à cunha e a sessão teve que ser interrompida várias vezes diante das pressões do público, que pretendia ingressar no recinto e era barrado pelo serviço de ordem.

“Os sustentadores do projeto”, disse ele sob intenso aplauso, “depois de meio século de governo constitucional, repudiam os que nos mandaram a esta câmara, aqueles que são os verdadeiros criadores da representação nacional. Por que? Porque não sabem ler, porque são analfabetos! Realmente a descoberta é de pasmar! Esta soberania de gramáticos é um erro de sintaxe política (prorrompem aplausos e risos no plenário). Quem é o sujeito da oração? (Hilaridade prolongada). Não é o povo? Quem é o verbo? Quem é o paciente? Ah! Descobriram uma nova regra: é não empregar o sujeito. Dividem o povo, fazem-se eleger por uma pequena minoria, e depois bradam com entusiasmo: Eis aqui a representação nacional!”

Sem dúvida, malgrado várias interrupções e regressos, temos logrado, desde então, introduzir melhoramentos no sistema eleitoral. Mas apesar desse progresso no caminho da democracia representativa, seria imperdoável cegueira não perceber que a soberania popular, entre nós, continua a ser meramente simbólica. O povo elege os chefes do Poder Executivo e os membros do Poder Legislativo, mas não tem poderes para destituí-los. O povo elege os governantes, mas não dispõe de meios jurídicos adequados para deles exigir o cumprimento do seu dever fundamental de realizar as políticas públicas conducentes ao desenvolvimento nacional, à erradicação da pobreza e da marginalização social, e à redução das desigualdades sociais e regionais, como prescreve a Constituição (art. 3º). O povo tem liberdade de escolher seus representantes, mas não pode impedir que eles alterem as normas constitucionais ao seu alvedrio, votem leis manifestamente contrárias ao bem comum do povo, ou ratifiquem tratados ou acordos lesivos ao interesse nacional. Em suma, nesse sistema de representação popular fraudulenta, os eleitos pelo povo, em sua grande maioria, atuam como mandatários em causa própria.

Definitivamente, os mecanismos da democracia representativa são inaptos, por si sós, a desmontar o sistema institucionalizado de abuso e desvio de poder. Cometeríamos um erro funesto, se nos limitássemos a concentrar nossos esforços de reforma política em alterações pontuais do sistema eleitoral ou partidário, ou na adoção de outra forma de governo. A oligarquia brasileira, retemperada por vários séculos de dominação absoluta, adapta-se sem maiores dificuldades a qualquer sistema eleitoral, a qualquer forma de governo.

Foi exatamente por isso que a Ordem dos Advogados do Brasil, sob a liderança do nosso bâtonnier, Roberto Antonio Busato, lançou oficialmente, em 15 de novembro de 2004, a Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia. Bem antes de deflagrada a crise política atual, a nossa corporação soube perceber que o edifício institucional do país necessitava, não de uma simples reforma de fachada, mas de uma reconstrução completa, a qual, escusa frisá-lo, há de partir dos fundamentos do edifício, isto é, do próprio povo.

A magna causa, para a qual nós outros, advogados, somos agora, mais do que nunca, chamados a patrocinar, consiste na fundação de uma soberania popular ativa, isto é, na atribuição ao povo de um poder de controle efetivo sobre a ação de todos os agentes públicos, em qualquer ramo do Estado em que exerçam as suas funções. Como todo poder de controle, ele comporta não só a competência exclusiva para fixar as diretrizes gerais da ação política estatal, mas também a prerrogativa de responsabilizar diretamente os governantes por todo abuso ou desvio de poder.

É claro que nada disso poderá ser levado a cabo, sem a utilização dos instrumentos consagrados da democracia direta. Daí porque o primeiro ato de nossa Campanha consistiu em oferecer, à Câmara dos Deputados, uma proposta legislativa, prontamente transformada em projeto de lei, para dar efetividade ao disposto no art. 14 da Constituição Federal, no tocante ao plebiscito, ao referendo e à iniciativa popular legislativa. Análogos projetos de lei estão sendo apresentados em várias Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais do país.

Importa, contudo, ir mais além, e introduzir em nosso sistema constitucional outras formas de manifestação da soberania do povo, tais como o referendo revocatório de mandatos eletivos, a iniciativa popular de emendas constitucionais e a elaboração obrigatória de orçamentos participativos em todas as unidades da federação.

Nesta quadra decisiva de nossa vida política, o dever profissional maior dos advogados confunde-se, assim, com o mais elevado dever de cidadania.

Advogadas e Advogados de todo o Brasil:
De pé, em defesa do Povo Brasileiro!"

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