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Artigo: “Por um dólar furado”

segunda-feira, 8 de agosto de 2005 às 08h45

Brasília, 08/08/2005 – O artigo “Por um dólar furado” é de autoria do secretário-geral do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto:

“A minha geração guardou na memória o filme franco-italiano "Um dólar furado", estrelado pelo Giulliano Gemma, Ida Galli, Pierre Cressoy, Andréa Scotti e Massimo Right, dirigido por Giorgio Ferroni. O filme narra a saga do ex-justiceiro Horrara que, após o fim da Guerra de Secessão, aceita a proposta de um rico banqueiro para prender o justiceiro Blackwide, sem saber de que se trata de seu irmão, que acaba morto. Descoberta a trama em que fora envolvido, retorna ao seu velho tempo de justiceiro e parte em busca de vingança contra o banqueiro, o verdadeiro bandido da região.

Inspirados neste e noutros filmes, brincávamos de bang-bang e cowboy, simulando grandes duelos, cavalgadas intermináveis e batalhas históricas. Abusávamos dos tiroteios, caprichávamos nas emboscadas e não tínhamos qualquer piedade quando o assunto era eliminar um bandido. Gostávamos até do próprio papel do bandido, inclusive tínhamos prazer em imitar Fernando Sancho e seus gestos cruéis, não se furtando a repetir o famoso diálogo:

- Como te chamas?
- Chamo-me Pedro.
- Chamavas, agora és defunto.

Aliás, as mortes, previamente ensaiadas, nos faziam sentir verdadeiros atores dramáticos, não raro estimulando a competição sobre a melhor interpretação. Encenávamos, sem qualquer corte, o velho oeste estadunidense, paradoxalmente reproduzido inicialmente nas distantes lentes fincadas em solo italiano. Ringo, Django, Kid Colt, Roy Rogers, Durango Kid, Sabata e Sartana eram alguns nomes que usávamos, todos eles retirados dos personagens interpretados por artistas como Giuliano Gema, George Hilton, John Wayne, Kevin Kline, Yul Brynner e outros mais.

Não tínhamos preocupação, mesmo porque não existia a expressão naquela época, em sermos "crianças politicamente corretas". Tanto é assim que o nosso maior sonho de consumo era o de ganhar um revólver de espoleta, substituindo, felicíssimos, as improvisadas armas de madeira ou papel. Da mesma forma, não nos importávamos em chacinar índios ou massacrar humildes mexicanos, como faziam os heróis estadunidenses que se exibiam na telona.

Eram eles anônimos personagens, sem rostos individualizados ou papéis definidos, salvo os de morrerem para delírio dos exigentes cinéfilos. Tinham eles funções idênticas às dos personagens da vida real que hoje habitam a África, dizimados e abatidos diariamente pelos inúmeros genocídios, pela fome e pela doença. Tinham eles o mesmo destino que recai sobre os milhares de cidadãos árabes, palestinos e iraquianos, que tombam e são violentados pelas idéias fundamentalistas de Bush, Sharon e Osana.

Todos eles desaparecem, com raríssimas exceções, sem provocar comoção no cinematográfico Mundo Ocidental, pois parece que índios, orientais, latino-americanos, asiáticos e africanos são personagens secundários na História da Vida. Eis porque o mês de agosto testemunha, sem qualquer revolta, o crime praticado contra a humanidade em Hiroshina e Nagasaki, quando bombas atômicas estadunidenses assassinaram e mutilaram, cruelmente, centenas de milhares de seres humanos, principalmente mulheres e crianças japonesas. Eis porque as guerras do Iraque e do Afeganistão somente se tornam manchetes mundiais quando morrem alguns poucos soldados e jornalistas ocidentais, passando desapercebido por estas mesmas lentes os inocentes cidadãos que são assassinados no conflito.

O brutal assassinato do brasileiro Jean Charles Menezes, estereotipado como terrorista pela polícia britânica, demonstra claramente que os latinos são personagens acessórios no solo europeu. Não se mostraram arrependidos pela política adotada, como bem explicou o diretor Blair, até porque possíveis vítimas da "ação saneadora policial em que se mata primeiro e investiga depois" nunca serão inglesas ou "assemelhadas". Ademais, o pagamento de um bom cachê para as vítimas ou parentes dos figurantes resolverá, segundo o script oficial, qualquer drama de consciência ou protesto dos grupinhos de amigos desavisados.

E assim, com o passar do tempo, trocando o mundo fictício pela vida real, descobrimos que estávamos reproduzindo uma cruel e real cultura ocidentalizada. Estávamos reproduzindo, inconscientemente, a idéia de que o assassinato, a vingança, os justiceiros e a violência fazem parte do cotidiano aceitável e inevitável. Mais ainda, que é plenamente justificável a eliminação de seres humanos que não integrem o "bonito e elegante padrão ocidental", até porque a vida da "raça claramente inferior e marginal" vale apenas "um dólar furado".

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