Busato atribui piora no ensino jurídico à indústria do diploma
Fortaleza (CE), 26/04/2005 - O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato, criticou hoje (26) a proliferação das faculdades de Direito de baixa qualidade no País e a busca incessante do lucro pela maioria delas, condenando o que chamou de “indústria do diploma” no Brasil. “A ganância da indústria do ensino tornou-se em nosso País uma realidade abominável, que compromete a qualidade do nosso mercado de trabalho e, por extensão, gera danos consideráveis à cidadania e à distribuição de Justiça”.
A afirmação foi feita por Busato em discurso proferido durante a cerimônia de abertura do Congresso Brasileiro de Operadores e Estudantes de Direito, o evento Direito 2005, no Centro de Convenções de Fortaleza. Na ocasião, ele convocou os congressistas a aprofundar o debate sobre as faculdades desprovidas de professores e de estrutura para formar alunos e a fornecer ao governo federal subsídios para uma ação mais efetiva no universo do Direito.
“Sem mão-de-obra qualificada, como supor o aprimoramento da prestação jurisdicional no País, meta fundamental da reforma do Judiciário, recém promulgada?”, questionou Busato. Ele observou que o reflexo direto da má formação ofertada por muitas faculdades são advogados e magistrados ruins, despreparados para exercer a profissão.
Na cerimônia, o presidente da OAB elogiou a sensibilidade com que o ministro da Educação, Tarso Genro, recebeu as criticas à má qualidade do ensino em Direito apresentadas pela OAB. À época, o ministro suspendeu a homologação de pedidos de abertura de novos cursos, decisão classificada por Busato como “um bom começo, um freio de arrumação”. Mas para a OAB é preciso mais, sendo necessário um trabalho de continuidade e fiscalização permanente dos cursos existentes. Hoje, de acordo com as estatísticas do MEC, funcionam regularmente no País cerca de 880 instituições de ensino jurídico. No ano de 1960, existiam apenas 69 faculdades de Direito.
“Trata-se de recompor os alicerces da profissão, corroídos pela voracidade dos mercadores do ensino, comprometidos tão somente com lucros fáceis, desconhecedores do sentido missionário da educação e do Direito”, afirmou Busato. Em relação ao crescimento exagerado do número de faculdades e cursos jurídicos no Brasil, o presidente nacional da OAB lembrou que “quantidade sem qualidade gera apenas tumulto e resulta em descrédito”.
O evento Direito 2005 homenageará o jurista e professor Paulo Bonavides - medalha Rui Barbosa da OAB. Este congresso acontece anualmente, desde 1989, e a expectativa dos organizadores é reunir seis mil participantes, entre estudantes de Direito, advogados, professores e pesquisadores no ramo do Direito.
Segue a íntegra do discurso proferido pelo presidente nacional da OAB, hoje, em Fortaleza:
“Senhoras e senhores
Quero preliminarmente me congratular com a Seccional cearense da OAB e com o Instituto Delmiro Gouveia para o Desenvolvimento pela iniciativa deste Congresso, que coloca em debate, entre outros, um dos temas mais importantes - senão o mais importante - para nós, profissionais e estudantes que operamos no universo do Direito: o ensino jurídico.
Por sua importância e abrangência, o tema transcende o âmbito dos especialistas - e não há exagero em afirmar que é tão fundamental para o conjunto da sociedade civil brasileira quanto o é para nós, operadores do Direito.
Se a crise de Justiça é, hoje, uma das mais dramáticas chagas morais da sociedade brasileira - e não temos dúvida de que é -, sua erradicação depende fundamentalmente de uma ação eficaz e saneadora na formação dos profissionais do Direito. E iniciativas como a deste Congresso, que põe o tema em debate, cumprem este papel fundamental.
Daí porque mais uma vez me congratulo com os organizadores deste evento.
Não é casual que o Estatuto da OAB, no dispositivo que nos compromete com a defesa da ordem jurídica e com a cidadania - artigo 14, inciso 1º -, inclua o “aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas" nesse compromisso basilar.
Que instituição jurídica, afinal, pode ser mais importante que aquela que forma os operadores do Direito? Se essa instituição matricial - que é a academia - não vai bem, todo o conjunto há de refletir suas fragilidades e distorções.
Por essa razão, a luta pela elevação da qualidade dos cursos jurídicos no Brasil tem sido uma das mais sistemáticas e obstinadas prioridades do Conselho Federal da OAB nestes últimos anos.
Não é uma luta apenas desta administração do Conselho Federal da OAB, que tenho a honra de presidir, mas também das que me precederam. Há de fato carência de qualidade, de consistência técnica em grande parte dos cursos.
A ganância da indústria do ensino tornou-se em nosso país uma realidade abominável, que compromete a qualidade de nosso mercado de trabalho e, por extensão, gera danos consideráveis à cidadania e à distribuição de Justiça.
Já em meu discurso de posse, há mais de um ano, comprometi-me em dar seqüência a essa luta, aprofundando-a.
Dizia então que a proliferação de faculdades de Direito desqualificadas, desprovidas de professores credenciados e até mesmo de instalações físicas para abrigar seus alunos, tornara-se praga em todo o país, desserviço à Justiça e à cidadania, atentado ao interesse público.
Sem mão-de-obra qualificada, como supor o aprimoramento da prestação jurisdicional no país, meta fundamental da reforma do Judiciário, recém-promulgada?
Trata-se de recompor os alicerces da profissão, corroídos pela voracidade dos mercadores do ensino, comprometidos tão-somente com lucros fáceis, desconhecedores do sentido missionário da educação ¾ e do Direito.
Na seqüência quase imediata de minha posse, denunciei ao ministro da Educação, o advogado Tarso Genro, o quadro desolador dos cursos superiores de Direito em nosso país.
Disse a S. Exa. que chegara ao nosso conhecimento a existência de faculdades funcionando em cinemas, câmaras de vereadores, escolas primárias. Algumas funcionando de madrugada, outras apenas em fins de semana - configurando indústrias de diplomas, que colocam em circulação profissionais não apenas tecnicamente desqualificados, mas desprovidos do sentido ético do ofício que abraçaram.
E sem ética - não cansamos de repetir -, não há advocacia digna deste nome.
O ministro mostrou-se sensível à questão. Decidiu intervir, suspendendo temporariamente a homologação de qualquer processo de abertura de novos cursos de Direito. Foi um bom começo, um freio de arrumação. Mas é preciso mais.
É preciso que haja continuidade, que os cursos já em funcionamento sejam permanentemente fiscalizados.
Nos dispusemos a auxiliá-lo, fornecendo informações mais detalhadas desse mercado - e temos feito isso. Em nosso âmbito interno, cuidamos criteriosamente dessa questão - e dispomos de comissão específica incumbida de acompanhá-la.
Sabemos que há vínculos indissociáveis entre ética profissional e formação acadêmica. Quanto mais precária a formação acadêmica, menos consistente o sentido ético da profissão.
No caso específico dos operadores do Direito, que têm a responsabilidade de administrar e distribuir Justiça, isso é simplesmente trágico.
Mais ainda no complexo contexto contemporâneo em que vivemos, de globalização, marcado por desafios e transformações que exigem apuro intelectual sempre crescente.
Desde o final do século passado, a advocacia se depara com um contexto nacional e internacional marcado por mudanças tecnológicas vertiginosas e o surgimento de novos interesses e preocupações sociais. Passa a lidar com os chamados direitos difusos e coletivos.
A informação globalizada faz desaparecer fronteiras nacionais e subverte, em alguns casos, o próprio conceito de soberania nacional. Num primeiro momento, houve perplexidade diante de tanta novidade. Mas, num segundo momento ¾ que é este em que estamos ¾ cabe rever conceitos e ajustar valores à nova conjuntura.
E é principalmente no âmbito acadêmico que essa discussão deve se processar. E a quantas anda o nosso âmbito acadêmico?
Vivemos desafios delicados, em que grandes corporações econômicas buscam sobrepor-se ao interesse nacional, impondo seus próprios interesses.
Chegou-se mesmo a cogitar na elaboração de uma espécie de Constituição dessas corporações, que seria submetida aos países para que a subscrevessem.
Os países que a rejeitassem ficariam sem seus investimentos. Teríamos então o império do capital, subjugando a ordem jurídica dos países, subjugando sua cultura, tradições e interesses.
Como se posicionar diante disso? Como identificar o ético (e o aético) no novo? Que escala de valores adotar?
A globalização freqüentemente coloca a defesa dos interesses do país nas mãos de escritórios internacionais de advocacia, em sintonia com outros interesses. Como agir e se posicionar diante disso?
O advogado é cidadão, tem deveres para com sua comunidade e seu país, mas não pode esquecer o seu elo com o espaço internacional.
Como compatibilizá-los? São questões contemporâneas, que reabrem o debate ético e desafiam os exegetas a buscar a contemporaneidade da ciência do dever ¾ a deontologia ¾, em meio ao cipoal de novidades da vida moderna.
Mais uma vez, é a academia o espaço por excelência para desenvolver e aprofundar essa discussão. Não pode, pois, estar profanada pela indústria do diploma, como ocorre com a nossa, em grande escala. É preciso que a busca legítima do lucro não afete sua missão pedagógica, ética e moral.
É preciso que a universidade promova o exercício profissional ético e, simultaneamente, eficaz do ponto de vista técnico, em sintonia com as inovações do mercado. É preciso que estabeleça o ponto de equilíbrio entre ética e competitividade, que não são de modo algum incompatíveis.
Em seu livro “A Era dos Extremos”, Eric Hobsbawn constata que “a característica mais impressionante do fim do século XX talvez seja a tensão entre esse processo de globalização cada vez mais acelerado e a incapacidade conjunta das instituições públicas e do comportamento coletivo dos seres humanos de se acomodarem a ele”.
A advocacia não está fora desse quadro de perplexidades. O avanço tecnológico é bem mais veloz que a capacidade humana de assimilá-lo ¾ e de situá-lo perante a ética e a moral. E é na Academia - insisto - que esse ajuste deve ser buscado constantemente.
Daí nossa preocupação em elevar a qualidade do ensino jurídico superior brasileiro, que, em grande escala, não tem honrado esse qualificativo de “superior”.
E essa é uma preocupação de todos nós, cidadãos e operadores do Direito no Brasil. Há anos, décadas, a Ordem denuncia a natureza predatória desses cursos, sem no entanto influir efetivamente sobre o ânimo dos condutores do Estado brasileiro.
Por competência legal, somos chamados a opinar sobre a abertura de cursos jurídicos, mas a decisão final é do Conselho Nacional de Educação, do MEC.
Quando cheguei à Presidência do Conselho Federal, constatei que, no triênio anterior, a OAB fora favorável à criação de 19 cursos jurídicos, mas o MEC, no mesmo período, autorizara nada menos que a abertura de 222 cursos.
Vejam bem: apenas 19 preenchiam, a nosso ver, as condições técnicas básicas. Os outros 203 estavam naquela escala de precariedade que descrevemos. Mesmo assim, entraram em ação, gerando os danos que já mencionamos.
Vejamos agora a evolução estatística dos cursos de Direito no Brasil nas últimas quatro décadas. Em 1960, tínhamos 69 faculdades de Direito. Nos anos 90, esse número passou para 400.
Hoje, funcionam regularmente no País cerca de 800 instituições de ensino jurídico superior. Muitas, a maioria, naquela base.
Segundo o IBGE, 70 mil bacharéis de Direito ingressam no mercado a cada ano. Como a maioria dos novos cursos iniciou as atividades a partir da segunda metade dos anos 90, é fácil imaginar que a população de bacharéis vai dobrar, ou redobrar, nos próximos anos.
Tudo isso seria ótimo se estivesse dentro de um padrão de qualidade mínimo, que permitisse a efetiva universalização dos serviços judiciários, tão reclamados no país, sobretudo pela população mais carente.
Mas infelizmente não é o caso.
Quantidade sem qualidade gera apenas tumulto e resulta em descrédito. É o que temos sustentado ao longo de muitos anos.
O ministro Tarso Genro nos propôs a assinatura de um convênio em que a OAB participe não só dos estudos de novas diretrizes para os cursos de Direito, mas assessore também o MEC com sugestões objetivas para regenerar esse quadro.
Nos pusemos às ordens, prontos a colocar a experiência e isenção de nossa instituição a serviço dessa causa, sem a qual - repito - nenhuma reforma judiciária ou social logrará êxito.
O processo de globalização econômica, que interconectou mercados e acirrou a competitividade profissional em todos os campos do conhecimento, deu relevo ainda maior à precariedade dos cursos superiores de Direito do Brasil.
A abertura dos mercados, colocando nossos profissionais em concorrência direta com profissionais formados em faculdades do Primeiro Mundo, aumenta a exigência de apuro e especialização.
O mínimo que se espera é que o Poder Público imponha maior rigor qualitativo aos estabelecimentos de ensino superior - e não só no campo do Direito.
Mais que quantidade, deve se exigir qualidade. Que adianta aumentar o número de faculdades sem garantia de qualidade mínima? Que sentido tem despejar anualmente no mercado de trabalho batalhões de bacharéis despreparados para os desafios cada vez mais sofisticados da economia global? O resultado é desastroso, quer para o mercado, quer para os recém-formados.
No campo do Direito, por exemplo, a carência de especialização de nossos profissionais, fruto da má qualidade de grande parte dos estabelecimentos especializados de ensino superior, além de deteriorar a qualidade (já de si sofrível) dos serviços da Justiça, favorece, como já disse, a invasão dos escritórios internacionais de advocacia.
E isso é ruim para o país, cujas demandas no campo dos negócios multilaterais acabam sendo conduzidas segundo a óptica dos interesses externos.
O Governo Federal anterior, ao criar o chamado Provão ¾ o Exame Nacional de Cursos, do MEC ¾, mostrou-se consciente da necessidade de estabelecer um padrão mínimo de qualidade aos cursos superiores.
Desnecessário dizer que o Provão foi, desde o início, rejeitado por quase todas essas instituições de ensino superior que vêem educação como mero negócio. E recebeu tantas pressões que, não obstante constatar a insuficiência de numerosos cursos, não fechou as portas de nenhum.
A Ordem dos Advogados do Brasil apoiou desde o início o Provão. Dispôs-se inclusive a tornar-se parceiro informal do Estado (e da sociedade) nessa fiscalização.
Instituímos este trabalho de avaliação para os cursos de Direito, onde os interessados possam se informar a respeito da qualidade dos diversos estabelecimentos, antes de cair nas malhas das arapucas de ensino espalhadas pelo país.
Por todas essas razões, que aqui alinhavei resumidamente, considero da maior relevância a discussão deste tema. E espero que este Congresso, que reúne profissionais tão eminentes e graduados, aprofunde esse debate e forneça aos nossos governantes subsídios para uma ação mais efetiva nesse campo tão delicado do universo do Direito em nosso país. Muito obrigado”.