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Artigo: De um bastonato a outro

quarta-feira, 15 de dezembro de 2004 às 07h00

Lisboa,15/12/2004 - O artigo " De um bastonato a outro", de autoria do bastonário da Ordem dos Advogados de Portugal, José Miguel Júdice, foi publicado no jornal Diário de Notícias, de Lisboa.Em janeiro próximo, Júdice deixa a presidência da entidade dos advogados portugueses após três anos de mandato:

"No final do meu mandato trienal como bastonário parece-me que mais importante do que fazer um balanço (sempre parcial e ainda prematuro) será perspectivar o que julgo ser a situação da advocacia portuguesa e as condições para ultrapassar o estado em que se encontra.

A advocacia portuguesa está a atravessar um dos mais críticos períodos da sua existência. O número de advogados é manifestamente excessivo para as necessidades do mercado, a advocacia portuguesa não se adaptou em regra aos novos desafios através de processos de reorganização e de gestão, a qualidade e adequação do ensino universitário baixou fortemente, o estado da Justiça nunca esteve tão mau. O inquérito à profissão que este ano a Ordem dos Advogados realizou é um retrato em alguns aspectos devastador. E contra tudo isso nada pode directamente fazer a Ordem dos Advogados.

Todas as medidas conducentes a alterar este estado de coisas, como todas as reformas, demoram a produzir resultados e, no imediato, geram pelo contrário reacções semelhantes às do início do século XIX contra a introdução de máquinas na actividade produtiva. Por isso o próximo triénio vai estar sujeito a desafios muito complexos, mesmo que os efeitos das reformas se possam começar a sentir.

Ao longo deste triénio lancei um conjunto de mudanças que me parecem essenciais para a sobrevivência com dignidade da advocacia portuguesa a aprovação do novo estatuto, da nova lei das sociedades de advogados, da lei dos actos próprios de advogados, de um novo modelo de formação mais exigente, a criação de especialidades, o novo regime do acesso ao Direito, o seguro de responsabilidade profissional gratuito para todos os advogados, a reforma de informática da Ordem (cédulas com chip electrónico, novo portal, certificado digital, base de dados de legislação actualizada na área reservada do portal), a criação de institutos que façam ouvir a voz dos advogados nas várias formas como exercem a profissão, o reforço da presença internacional dos advogados portugueses.

Também ao longo deste triénio se conseguiu colocar a reforma do sistema judicial no centro da agenda política, tendo a Ordem dos Advogados sido essencial na criação de condições para os consensos políticos alargados, sem os quais nenhuma reforma nesta área será viável. Mas também aqui pouco pode a Ordem dos Advogados fazer directamente, pois não tem poder legislativo nem domina as alavancas financeiras do Estado, sem as quais nenhuma reforma pode resultar.

A ultrapassagem da crise da advocacia portuguesa tem de ser feita com base num pressuposto inevitável dêem-se as voltas que se derem, a qualidade do ensino em Portugal não vai melhorar a médio prazo, o número de licenciados criados pelas faculdades de Direito vai continuar muito elevado, o número de advogados em Portugal não vai diminuir de forma significativa nos próximos anos, o estado da Justiça também não vai mudar para melhor de modo evidente de imediato ou mesmo a curto prazo. Os principais factores causais da crise da advocacia vão persistir e pouco pode a Ordem fazer para que no próximo triénio esta situação se altere.

Mas se, apesar disto, não se alterarem os dados do problema, a evolução parece ser evidente os advogados, classe média em processo de perda de estatuto social e ameaçada pelo espectro da proletarização, vão reagir como sempre o fizeram na História os grupos sociais que enfrentaram este tipo de realidade: com revoltas inconsequentes, apoio a demagogos populistas, fuga para a frente (mascarando uma verdadeira pulsão regressiva), niilismo. Não será assim de excluir que dentro de três anos uma voz tonitruante e demagógica, com um projecto ideológico «fascizante» (contra os advogados ricos, os juizes e o Estado), prometendo o que não pode dar (mas assim libertando em cada advogados os seus demónios) e apostando nas emoções mais primárias e arcaicas, consiga conduzir a advocacia portuguesa para aventuras de difícil e custoso retorno.

Contra isto é preciso um claro programa estratégico que - partindo dos pressupostos atrás mencionados que estão no caminho crítico da crise da advocacia portuguesa e que a Ordem dos Advogados não pode resolver ou dominar - seja capaz de contrariar a pulsão autofágica e desagregadora da nossa profissão. Assim

1. É preciso que a Ordem dos Advogados continue a colocar a luta pela reforma do sistema judicial como o seu grande objectivo estratégico, contribuindo para a criação dos consensos políticos sem os quais o processo reformista nunca chegará a bom porto. A luta pelo Pacto de Regime para a Justiça e para a Cidadania deve ser mantida.

2. É preciso - por vezes contra as próprias estruturas representativas das magistraturas que se fecham num conservadorismo corporativo radical - continuar a lutar pela criação de uma cultura judiciária comum com os juizes e procuradores, que altere o clima de tensão reinante em muitas comarcas e que contribui para a crise de auto-estima das profissões judiciárias.

3. Deve continuar-se o trabalho de interacção entre a Ordem e as universidades, no sentido de se aproveitarem todas as potencialidades do Processo de Bolonha.

4. Deve continuar o processo de modernização reformista da nossa profissão, aproveitando-se as potencialidades dos novos instrumentos legais reguladores (estatuto e Lei das Sociedades de Advogados).

5. Deve concretizar-se o novo regime do acesso ao Direito, não apenas por motivos de cidadania mas também para acentuar o associativismo e para acabar com o ambiente miasmático de atrasos constantes de pagamentos de defesas oficiosas e apoio judiciário aos advogados.

6. Deve a Ordem assumir uma clara política de apoio ao associativismo dos advogados e de dinamização crescente dos institutos (advogados em prática isolada, sociedades de advogados, advogados de empresa), como meio de modernização da profissão e de aproximação dos advogados à Ordem e desta aos problemas concretos dos vários modos de exercício que existem actualmente.

7. Deve continuar o trabalho já muito relevante dos Conselhos Distritais para aumentar a qualidade, o rigor e a exigência da formação inicial, para que a selecção pela qualidade que se iniciou com os cursos de estágio de 2002 possa manter-se e acentuar-se.

8. O rigor do controlo deontológico e das sanções disciplinares (em que este triénio foi excepcional) tem de ser prosseguido, como forma de reforço da imagem dos advogados perante os cidadãos.

9. A formação contínua deve tornar-se obrigatória, à luz do que está a ocorrer em toda a Europa, devendo ser aproveitada para tal efeito a capacidade dos advogados especialistas, desse modo se aproximando da Ordem.

10. As novas potencialidades que a Lei dos Actos Próprios dos Advogados e as instruções vinculativas da DGRN criaram devem ser aplicadas numa acentuação da luta contra a procuradoria ilícita.

11. O programa de criação de especialidades na profissão deve ser continuado, reforçando-se assim a densidade técnica da profissão e com isso a qualidade do serviço prestado aos cidadãos, aumentando a advocacia preventiva.

12. Deve continuar a desenvolver-se programas de serviços e benefícios para os advogados, em que especialmente o Conselho Distrital de Lisboa já tem muito trabalho feito.

13. Deve continuar-se o processo de reorganização e de melhoria da qualidade de gestão da Ordem, continuando a linha de descentralização que foi iniciada no bastonato Castro Caldas.

14. O bastonário eleito - como aliás é tradição - deve reunificar a classe após o acto eleitoral, chamando à colaboração colegas que foram relevantes em candidaturas derrotadas, mas que têm uma «folha de serviços» de dedicação e idealismo que não pode ser desprezada.

Uma ousada, consistente e coerente política de reformas é o único antídoto contra as pulsões totalitárias que germinam sempre que há uma crise social do tipo da que vive a advocacia portuguesa. Os problemas que a Ordem não pode solucionar devem ser uma razão acrescida para a estratégia de modernização.

Os instrumentos estão reunidos e os sinais que se podem retirar das eleições recentes são nesse sentido. Estou certo de que, com a ajuda de todos, o novo bastonário vai ficar registado como o que conseguiu mudar a realidade da profissão para melhor, afastando o espectro de um projecto populista, demagógico e regressivo".

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