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Pinaud sairá do cargo se governo não apoiar apuração rigorosa

segunda-feira, 18 de outubro de 2004 às 11h33

Brasília, 18/10/2004 - O presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, João Luiz Duboc Pinaud, afirmou hoje (18) que deixará o cargo caso o governo não ofereça a ele os meios e instrumentos necessários para a apuração exaustiva das mortes que estão sob exame da Comissão, entre elas a do jornalista Vladimir Herzog, assassinado durante o período do regime militar. “Eu não sinto é ambiente favorável em nível ministerial a uma apuração rigorosa dos casos, como eu acho que ela deve ser feita”, afirmou Pinaud, em entrevista concedida durante sua participação na sessão plenária do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), realizada hoje.

O que Pinaud vem propondo, é um outro caminho, ainda não tentado, para as investigações no âmbito da Comissão: o da ação judicial na Justiça Federal. “Num momento em que essas ações não são estimuladas, pela natureza própria do serviço, a produção cai, o resultado cai, e há uma insatisfação”, afirmou Pinaud, que também integra a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB. Quando questionado sobre o que fará caso não haja apoio mais efetivo por parte do governo quanto às investigações ou com relação a seus pedidos, Pinaud responde: “Aí eu não fico porque eu vejo que é contraproducente”.

O assassinato do ex-diretor de Jornalismo da TV Cultura e de outros torturados na época da ditadura retornaram aos jornais no último fim de semana, quando foram divulgadas três fotografias inéditas que registram o sofrimento de Herzog ainda no cárcere. As fotos foram entregues à Comissão de Direitos Humanos da Câmara pelo ex-cabo do Exército José Alves Firmino e foram divulgadas pelo jornal Correio Braziliense. Elas foram tiradas na sede do Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi) ou em um sítio utilizado à época para as sessões de tortura. Até então, a única foto de conhecimento público de Herzog era a de seu corpo pendurado pelo pescoço a uma grade, por meio de um cinto. Coma divulgação desta foto, o Exército confirmou o suicídio do jornalista.

João Luiz Duboc Pinaud afirmou que a publicação dessas novas fotos ajuda na investigação e citou o fato como exemplo do maior entrosamento que deve existir entre as famílias dos desaparecidos políticos e a Comissão. Pinaud rebateu a declaração do Ministério da Defesa, de que não existem documentos que comprovem que as mortes na época do regime militar tenham ocorrido durante as operações do Exército. “Houve morte, houve tortura, opressão. Dizer que não houve isso é negar a história e ninguém é dono dela, aconteceu. Então, vamos assumir isso e passar a limpo”, afirmou Pinaud. “Essa afirmação é leviana, para escamotear, fazer uma maquiagem na história”.

Veja a íntegra da entrevista concedida pelo presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, João Luiz Duboc Pinaud:

P - Como o senhor encara a divulgação dessas fotos inéditas pela imprensa no último final de semana, de torturas sofridas pelo jornalista Vladimir Herzog no cárcere do Doi-Codi de São Paulo?
R - A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos enfrenta muitas dificuldades pela natureza dela e suas ações complexas. Este caso do Herzog é um processo que temos trabalhado como se fosse judicial. É natural que essas provas apareçam. Agora nós estamos em um momento de decisão de caminhos porque durante muito tempo a comissão, de um modo geral, ficou muito presa à questão da recuperação dos ossos. Desde que eu assumi a sua Presidência, há a proposta de abrir um novo caminho para esses casos, que é o judicial. Então, esses processos estão aflorando. Há muitos sobreviventes, há muitas testemunhas, então é importantíssimo esse caminho e ele é um caminho que ainda não foi trilhado e é o que precisa ser feito agora. Buscamos um maior entendimento entre os familiares e a Comissão, até pela sua natureza, porque já se passaram quarenta anos. É preciso que não haja um veículo só. É preciso que não só os advogados, mas também os próprios familiares tenham acesso direto à Comissão para que tenhamos todos os dados. Existem muitas informações que não chegaram à Comissão. Queremos democratizar os meios e um dos caminhos é esse. Eu sou membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB, então, o meu empenho não é o de transplantar, mas manter a mesma linha da apuração que é feita pela Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, que é uma apuração exaustiva, indo até às últimas conseqüências. Não é transplantar os métodos, mas usar a experiência já acumulada pela Comissão Nacional da OAB contra o arbítrio e contra a prepotência. Então, ela vai direto aos objetos e até o final da investigação. Isso está surpreendendo.

P - Em resposta à divulgação dessas fotografias, o Ministério da Defesa afirma que não existem documentos comprovando que as mortes na época do regime militar tenham ocorrido durante as operações do Exército. Como o senhor, que viveu isso, sofreu isso, encara essa declaração?
R - O que temos que dizer em benefício das Forças Armadas é o fato de não haver interferência alguma para impedir a realização do meu trabalho, mas eu acho que essa afirmação é leviana. Pelo menos os familiares dos que morreram no Araguaia e em outros lugares atestam o contrário. O que não há, ainda, na minha opinião, é uma apuração exaustiva dessas mortes. É interesse geral da nação que haja isso, que essa fase seja resgatada. Temos que passar pelos nossos erros e corrigi-los. Isso aconteceu. Houve morte, houve tortura, opressão. Dizer que não houve isso é negar a história e ninguém é dono dela, aconteceu. Então, vamos assumir isso e passar a limpo. Essa afirmação é leviana, para escamotear, fazer uma maquiagem na história.

P - A imprensa receber fotos antes não divulgadas e informações que teoricamente deveriam ser confidenciais ajuda ou atrapalha as investigações no âmbito da Comissão?
R - Ajuda. Uma investigação tem que ser mais ampla e transparente. Ela tem que ser sigilosa quanto às técnicas que vai usar, mas não quanto a seus resultados. Isso pertence a todo mundo. Temos que mudar um pouco essa cultura, de que nós temos que esconder, fazer um jogo, uma farsa. Para encenar uma farsa, vamos ter que chamar os farsantes, não é? Não é o caso. O caso ali é apuração rigorosa, exaustiva. Essa é a linha já traçada pela OAB, que sempre teve esse trajeto histórico de apuração, de investigação, mesmo durante o período da ditadura militar, quando eu fui conselheiro aqui na OAB e o presidente era o ministro Márcio Thomaz Bastos. O grande problema da Ordem era como enfrentar esse tipo de luta, sempre houve isso. Foi uma tônica da OAB, que tem esse trajeto de luta em favor dos direitos humanos, enfrentando nas condições das mais adversas. O que não se entende é que agora, numa aparente democracia, fiquemos presos a esse temor reverencial de não apurar e permitir que, impunemente, as pessoas falem que não houve morte, que não houve tortura. Isso é um acinte àqueles que sofreram e é um acinte à história do Brasil.

P - Nesses meses em que o senhor tem estado à frente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, tem tido toda a liberdade para trabalhar ou sofre algum tipo de pressão?
R - Pressão das Forças Armadas eu não detecto. Eu não sinto é ambiente favorável em nível ministerial a uma apuração rigorosa dos casos, como eu acho que ela deve ser feita. Essa é a visão de um homem dos direitos humanos. Não é um tipo de apuração exaustiva como é, por exemplo, a apuração numa Comissão Nacional de Direitos Humanos, como são as investigações que o Conselho Federal faz, até às últimas conseqüências, doa a quem doer. Há mais uma falta de instrumentação e de meios, agora pressão por parte do Exército, eu nunca sofri.

P - E quem não lhe fornece os meios necessários para trabalhar. Qual setor ou qual Ministério não está lhe dando condições ideais de trabalho?
R - Pela lei, cumpre à Secretaria de Direitos Humanos dar apoio, mas não dirigir porque a direção dessa comissão é técnica, tem que ser feita tecnicamente. Ali é só para dar o apoio dos meios, dos instrumentos de apuração e como eu falei no princípio, desenvolver prova indiciária das mortes, das torturas, ouvir as testemunhas, os sobreviventes, além de fazer essa pesquisa complementar por meio dos ossos à procura de DNA, por meio de escavação, isso o ministro Nilmário Miranda já fez várias. Mas eu estou propondo um outro caminho, o da ação judicial na Justiça Federal, que não foi tentado. Num momento em que essas ações não são estimuladas, pela natureza própria do serviço, a produção cai, o resultado, e há uma insatisfação. Acho também que está faltando a consciência de que nós estamos falando sofre o sofrimento de muitas pessoas. Não são remanescentes, mas familiares que sofreram muito e sofrimentos que já estão sem resposta há mais de trinta anos. Isso é muito grave. Então, esse é o meu impasse, o meu dilema, que já apresentei inclusive à Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, à qual eu pertenço, na reunião de ontem da Comissão. São os meus dilemas. Este é o meu desconforto como homem ligado aos direitos humanos.

P - O senhor está nitidamente insatisfeito. E se nada mudar? O doutor Pinaud continua ou deixa o trabalho?
R - Aí eu não fico porque eu vejo que é contraproducente. Eu não fico porque acho que vai ficar uma incompatibilidade com a Ordem.

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