Busato: Brasil vive guerra civil deflagrada
Ponta Grossa,01/08/2004 - Na visão do presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato , os 180 milhões de brasileiros não podem continuar reféns de uma população delinqüente, que é estimada em torno de 1 milhão. Ele propõe ações de curto, médio e longo prazo para enfrentar o que chamou de varejo criminal, aquele que tornou as ruas dos grandes centros urbanos e praças de guerra.
No curto prazo, Busato entende que deve haver uma ação policial recessiva e ostensiva; a médio prazo, a aplicação de uma política penitenciária mais sensata, que impeça infratores primários de conviverem lado a lado com criminosos reincidentes e perigosos. A longo prazo, ele propôs a educação.
A violência se apresenta hoje em múltiplas formas. Desde a violência do Estado, pela falta de retorno aos impostos que lhe são pagos, deixando de oferecer serviços básicos de saúde, segurança e saneamento, até a violência em sua forma mais crua e direta: a da criminalidade, observa.
Ele cita que o Brasil contabiliza cerca de 30 homicídios para cada 100 mil habitantes, ante à média mundial de 5. O resultado anual de homicídios pode ser comparado ao número de vítimas de uma guerra civil. Há fins de semana em que a média de homicídios no eixo Rio-São Paulo ultrapassa a centena de pessoas, a maioria jovens, enquanto em países oficialmente em guerra, como o Iraque, essa média muitas vezes não chega à metade, diz Busato. Veja os principais trechos da entrevista concedida ao jornalista Mário Martins, do jornal Diário dos Campos:
P- A sociedade enfrenta níveis de violência acima do tolerável. Em algumas regiões do país percebe-se uma guerra civil deflagrada. O que pode ser feito para reverter este quadro de insegurança?
R- A Ordem dos Advogados do Brasil vem dizendo que a receita final que é a longo prazo é a educação. Se não priorizarmos a educação, que visa dar uma perspectiva de vida digna às pessoas, aos jovens brasileiros, acredito que não estaremos enfrentando o problema na sua raiz e, assim, ficaríamos apenas nos efeitos desse grave problema que é a criminalidade. Em alguns centros mais adiantados do Brasil, como é o caso da periferia do Rio de Janeiro, já atinge uma graduação quase que de uma guerra civil instalada. Cito como exemplo o caso da Rocinha. Vejo também o aspecto das penitenciárias que não reeducam. Estamos vendo crimes bárbaros, crimes medievais, retornando com a degola de presos. Os presos são queimados pelos próprios companheiros de cela. Isso acontece porque não há um trabalho de reeducação e nem perspectiva de uma vida digna.
P- Isso é regra geral em todo o Brasil?
R- As prisões no Brasil não reeducam. O Paraná é um estado ainda que tem uma certa exceção. No Paraná não é grande o número daqueles que voltam à delinqüência depois de cumprir a sua penalidade. Mas isso não é regra no país. No Brasil todo estamos vendo um índice alarmante de reincidência à vida criminosa. A execução penal é pavorosa para o Brasil. Não há esse acompanhamento de se ver a progressão da pena em se traduzir num cumprimento penitenciário mais humano, mais decente, mais civilizado. Então realmente as universidades do crime estão acontecendo dentro das penitenciárias.
P- O tratamento penal para bandidos adultos é falho? E esta falha também prevalece no tratamento dos adolescentes infratores?
R- Devemos separar o joio do trigo. Hoje em dia, principalmente nas grandes cidades, os centros de segurança para menor acabam formando um delinqüente já qualificado, porque não reeduca. Não há nenhuma perspectiva. Atualmente há um projeto de lei que objetiva aumentar a penalização do menor infrator, o que é uma barbaridade neste país. Aceitar a imposição de uma pena de até 22 anos para o menor é praticamente condená-lo à morte social e à morte física. Não há perspectivas de ele sobreviver num ambiente tão perigoso e tão sofisticado na crueldade, como é este que existe nos grandes centros.
P- O senhor cancelou uma visita à favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. O senhor temeu em sofrer algum tipo de represália e por isso a adiou?
R- Na Rocinha acabamos não indo em função de uma série de fatores. Não houve uma possibilidade maior de chegarmos até lá. Houve até um certo desinteresse por parte de autoridades do Rio de Janeiro para que não fossemos. Tínhamos a intenção de procurar a sociedade civil daquele local para um diálogo. Este assunto não está parado. A OAB continua as conversações com as ONGs e a CNBB no sentido de fazermos algum trabalho neste campo.
P- O Estatuto do Desarmamento foi regulamentado pelo governo federal justamente depois das críticas feitas pela OAB. A lei, agora regulamentada, tem condições de frear a criminalidade?
R- A perspectiva é esta. Quer dizer: se você retira os instrumentos que causam acidentes e incidentes e por ação favorecendo à criminalidade, nós estaríamos teoricamente diminuindo-a. É pena que o governo ficou parado e a Ordem teve que vir a campo para incentivar essa regulamentação. Agora estão aí os próprios advogados que são pessoas que detêm uma atividade até certo ponto perigosa, devolvendo o seu armamento, numa demonstração de consciência cívica perante a nação.
P- Outra crítica feita em relação ao governo federal teve como objeto o salário mínimo. O mínimo do trabalhador é um salário de fome?
R - Fizemos no Supremo Tribunal Federal o discurso tradicional da OAB na posse de um novo presidente. E nessa ocasião estávamos na presença do presidente da República, do presidente do Congresso Nacional e do presidente do Poder Judiciário, ministro Nelson Jobim. E disse naquela ocasião que o salário mínimo é inconstitucional. O salário é inconstitucional porque a Constituição diz que ele deve prover vestuário, educação, alimentação, lazer, segurança e transporte. E o salário mínimo, hoje, não atende nenhum desses requisitos. E o que é pior: o salário não é para uma única pessoa; é para uma família inteira. Esse salário é inconstitucional . Acho que a OAB mostrou que o reajuste, do modo como está sendo feito, é o reajuste da miséria. E a miséria do salário mínimo todo ano está se repetindo. Não é culpa só desse governo. E eu afirmei isso. E mantenho a posição.
P- As relações com o presidente Lula ficaram estremecidas depois do seu discurso no STF?
R - A Ordem dos Advogados do Brasil tem com o presidente Lula uma parceria histórica , assim como tem com o PT, que sempre foi um partido de vanguarda. Ao mesmo tempo , somos parceiros da CNBB e da ABI. Mas o fato de sermos parceiro não significa uma rendição política. Enquanto o governo não falar e não cumprir aquilo que falava no passado , a Ordem continuará com o seu mesmo ponto de vista. Em relação ao salário, o presidente Lula me disse que entende a posição da OAB como uma posição crítica, porque a Ordem é o contraponto dos poderes. Então, acredito que o presidente, apesar de desconfortado com os meus posicionamentos, tem a certeza que este é o papel institucional da OAB. A Ordem é a voz da sociedade civil. Infelizmente é uma das poucas entidades que restaram para dizer às autoridades desse país o que o povo pensa. E a Ordem procura exercer este papel com altivez e sem uma dependência política de quem quer que seja.
P- Como o senhor vê a proposta de reforma do Poder Judiciário?
R - A reforma vem sendo discutida e debatida por toda a população. Eu acho que o Judiciário nunca foi tão falado e passado a limpo, como está sendo agora. Esta proposta de reforma nasceu dentro da OAB. Há 12 anos entregamos ao deputado Hélio Bicudo um projeto de controle externo da magistratura. A partir deste projeto do deputado outras idéias foram se incorporando, até que nasceu esta tida reforma constitucional em relação ao Poder Judicial. A reforma melhora a estrutura do Judiciário, mas não melhora aonde ela pisa no calo do cidadão, que é a demora do processo judicial. Devemos ter reformas processuais. Estas, sim , darão celeridade ao processo e darão justiça no tempo certo à população brasileira. Não é possível mais conviver com processos intermináveis, que é o que acontece no país, principalmente quando você tem pela frente o maior demandista, o maior litigante de má fé que é o governo brasileiro. O governo, seja federal, estadual ou municipal ,é o pior devedor que tem. Porque recorre de tudo e depois de perder em todas as instâncias acaba não pagando ninguém.
P - O senhor freou a farra do curso de Direito e agora anuncia uma fiscalização rigorosa sobre esses cursos. A Ordem conta com o apoio do governo federal nesta iniciativa?
R - Essa é uma luta que travei no primeiro instante da minha gestão. No meu discurso de posse, denunciamos à Nação este descalabro que temos em vários cursos de Direito do país. São 742 cursos de Direito e 70 mil bacharéis de Direito são colocados no mercado a cada ano. Daqui há dois anos teremos 140 mil bacharéis sendo despejados no mercado. Em contrapartida, temos um exame de Ordem que reprova 80% dos candidatos. Um exame simples que existe meramente para aferir a capacidade postulatória daquele que sai da faculdade. E tem outro problema: os concursos públicos para a magistratura no Ministério Público não conseguem prover as vagas que existem. Estamos com 120 comarcas da Bahia sem juiz de Direito porque os concursos não conseguem mais prover pessoas adequadas para o cumprimento da função da magistratura. Então a situação é um descalabro; é grave. É um estelionatário que está sendo feito ao jovem brasileiro. Mas, conseguimos frear esta farra dos cursos porque o ministro da Educação, Tarso Genro, que é advogado de vanguarda, teve a sensibilidade de atender o pedido de suspensão da OAB. Agora, teremos essa medida de fiscalização efetiva desses cursos que estão aí e por certo eu posso dizer que muitos deles vão ter que fechar. Foi o maior avanço neste campo que a Ordem teve nos últimos anos. O Paraná, no último concurso da Ordem, aprovou 13% dos candidatos reprovou 87% dos candidatos. Logo seremos a maior corporação do mundo de advogados. Hoje só perdemos para os Estados Unidos, que tem 150 mil advogados a mais que o Brasil.
P - Ponta Grossa é exemplo para o Brasil ao realizar um seminário para discutir a violência urbana. Como o senhor vê esta iniciativa?
R - Não podemos continuar como avestruz colocando a cabeça dentro da terra e deixando a tempestade passar. A tempestade está aí. A criminalidade aumenta vertiginosamente e em algumas cidades do país, como é o caso do subúrbio do Rio de Janeiro, a criminalidade já beira uma guerra civil. Hoje em dia, no fim de semana, morre muito mais jovens brasileiros no circuito Rio/São Paulo do que na guerra do Iraque, que tem incursões terroristas e tudo mais. Isto significa que a sociedade tem que estar à frente do Estado, porque o Estado é omisso e porque o Estado não está resolvendo o problema. Acredito que o seminário de Segurança Pública, como esse que foi realizado pelo Fórum de Segurança, tem muito a auxiliar a comunidade no sentido de encontrar um caminho que possa ser adequado para segurança. Nossas elites dirigentes acostumaram-se a administrar por espasmos, a varrer o lixo para debaixo do tapete, a maquiar a miséria. Só que isso tem limite - e claro está que chegamos a ele. Não há mais como varrer o lixo para debaixo do tapete por uma razão simples: o tapete ficou curto e o lixo acumulado já o ultrapassa. Na Europa, participei recentemente de um congresso mundial em Madri, e ouvi o ministro da Justiça da Espanha dizer que a segurança extrapola os limites. Hoje temos de pensar nas seguranças alimentar - não sabemos nem o que estamos comendo -, na ambiental e na cibernética, principalmente nos países de terceiro mundo, onde a exclusão social é muito grave.