Íntegra do parecer do MP sobre concurso em Sergipe
Aracaju (Sergipe), 20/04/2004- O procurador da República no Estado de Sergipe, Paulo Gustavo Guedes Fontes, encaminhou ao juiz federal da 3ª Vara da Seção Judiciária de Sergipe, parecer favorável à concessão de liminar para suspender o concurso público realizado pelo Tribunal de Justiça do Estado. O procurador acolheu, em seu parecer à Justiça Federal, os termos da ação civil pública, com pedido de liminar, impetrada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que considerou legítima para propor a ação. Eis a íntegra do parecer do procurador da República:
“EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA 3ª VARA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DE SERGIPE
Processo n° 2004.85.00.001754-0
AÇÃO CIVIL PÚBLICA
Autora: OAB/SE
Requeridos: Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado de Alagoas e Estado de Sergipe
O Ministério Público Federal, por intermédio do Procurador da República adiante assinado, instado pelo despacho de fls. 287 e atuando obrigatoriamente na condição de fiscal de lei em sede de ação civil pública, vem respeitosamente ante Vossa Excelência aduzir o seguinte:
1. Trata-se de ação civil pública proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil-Secção Sergipe, com pedidos de natureza constitutiva e condenatória, objetivando notadamente a anulação do concurso realizado pelo Tribunal de Justiça deste Estado para provimento de cargos efetivos de nível médio (técnico) e superior (analista); a autora fez pedido de liminar, que não foi ainda apreciado por Vossa Excelência.
DA PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA
2. Não merece prosperar a preliminar argüida pelo ínclito Procurador-Geral do Estado.
3. É sabido que a ação civil pública, a partir de sua criação pela Lei 7.347/85, representou grande avanço para a prestação jurisdicional no Brasil. Esse tipo de demanda possibilitou a judicialização de diversos conflitos e lesões à ordem jurídica que anteriormente não podiam ser deduzidos em juízo em razão dos cânones do processo civil clássico, principalmente por conta da estreita via da legitimação ordinária.
4. A revolução da ação civil pública se deu, portanto, na criação legal de hipóteses de legitimação extraordinária, como, v.g., a do Ministério Público, habilitando-o à defesa judicial do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, nos exatos termos do art. 129, III, da Constituição Federal. São também legitimados à propositura da ação civil pública os entes políticos, as entidades autárquicas, empresas públicas e sociedades de economia mista de qualquer ente federativo, além das associações. É usual asseverar a doutrina que, à exceção dos entes políticos e do Ministério Público, os demais legitimados devem exibir correlação entre as suas funções institucionais e atividades e os interesses defendidos por meio da ação civil pública. Sendo a OAB considerada, em Direito Administrativo, uma autarquia profissional, alega o requerido Estado de Sergipe que careceria da mencionada pertinência temática para ajuizar a presente demanda.
5. Aparentemente lógica, a argüição deve ser repelida por duas razões básicas, a seguir discutidas: 1) o papel especial conferido à OAB, pela Constituição e pelas Leis, na defesa da ordem jurídica; 2) a existência, “in casu”, da pré-falada pertinência entre as suas preocupações institucionais e o objeto da demanda.
6. Exemplo expressivo desse papel especial que foi outorgado à OAB é a legitimidade que lhe foi conferida para o ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade (art. 103, VII, CF), sem qualquer restrição temática. Da mesma forma, a Ordem deve integrar as bancas examinadoras dos concursos de ingresso nas carreiras da magistratura e do Ministério Público.
7. Por outro lado, além das disposições da Lei 7.347/85, o Estatuto dos Advogados (Lei 8.906/94) previu explicitamente a legitimidade do Conselho Federal para o ajuizamento de ação civil pública (art. 54, XIV), sem apor igualmente qualquer restrição respeitante ao objeto da ação, devendo-se entender que a iniciativa pode se dar em quaisquer das matérias indicadas pela Constituição Federal (art. 129, III), pela Lei 7.347/85 (art. 1º) e por outras leis específicas (investidores no mercado mobiliário, deficientes físicos etc). Observe-se também que, por força do art. 57 do citado diploma, o Conselho Seccional da OAB exerce, nos seus limites territoriais, as mesmas funções do Conselho Federal. Nesse sentido, já decidiram os tribunais federais:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO DO CONSUMIDOR. OAB. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. JUSTIÇA FEDERAL. COMPETÊNCIA. CONTRATOS DE ARRENDAMENTO MERCANTIL. INDEXAÇÃO EM DÓLAR NORTE-AMERICANO. REVISÃO CONTRATUAL. LIMINAR. REQUISITOS. PRESENÇA.
I - A Ordem dos Advogados do Brasil tem legitimidade ativa ad causam para propor ação civil pública em defesa dos interesses individuais homogêneos, mesmo de consumidores não advogados.
II - A competência para processar e julgar o presente feito é da Justiça Federal dada a natureza jurídica de autarquia federal própria da OAB (...) ( TRF 3, AG 77481, Quarta Turma, decisão unânime, rel. Juiz Newton de Lucca, DJU de 15/09/2000 pág. 179). No mesmo sentido: TRF 3, AG 77743)
8. É de se assinalar ainda que, vetada a cláusula no projeto inicial, posteriormente o Código de Defesa do Consumidor ampliou a utilização da ação civil pública para abrigar a defesa de “qualquer outro interesse difuso ou coletivo” (art. 1º, V, da Lei 7.347/85). Assim, a ACP não se restringe mais a determinados temas, podendo sempre ser manejada quando o interesse defendido assumir a forma de um interesse difuso ou coletivo, o que tem permitido benfazejas iniciativas, do Ministério Público e de outros legitimados, em áreas como a previdência social, educação e saúde.
9. No caso em tela, sem adentrar no mérito, tem-se que a iniciativa visa a defender os seguintes interesses: o patrimônio público (por eventual dispensa indevida de licitação) e os princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade administrativa (em relação à alegada quebra de igualdade entre os candidatos e possibilidade de favorecimento de alguns). O patrimônio público é claramente um interesse difuso da coletividade, como já teve oportunidade de decidir o próprio Supremo Tribunal Federal (RE 208.790 SP, 27.09.2000, Ilmar Galvão; 254.078, Moreira Alves). Também o são a moralidade administrativa e a impessoalidade da Administração, que é expressão do próprio princípio da isonomia, que inspira por assim dizer toda a construção política do Estado Democrático de Direito e da República. Discordo do eminente Procurador-Geral do Estado quando assevera que a OAB está defendendo os interesses individuais homogêneos de uns poucos candidatos; a meu ver a iniciativa tende claramente à defesa do interesse difuso, para não dizer público, à lisura administrativa e à obediência dos governantes e agentes públicos ao princípio da igualdade.
10. Não se olvide, ainda, o interesse específico dos bacharéis em direito, que concorriam privativamente ao cargo de analista judiciário. Interesse diretamente tutelado pela OAB e que, ainda que se adotasse a tese restritiva do requerido quanto à legitimidade ativa, permitiria o conhecimento da demanda.
11. Finalmente, sendo a Ordem legítima para figurar no pólo ativo da ação, firma-se, como cediço, a competência federal.
DO FUMUS BONI IURIS
12. Dois argumentos autorais são robustos o suficiente para o deferimento da liminar requerida. A irregularidade na contratação da requerida Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado de Alagoas e a quebra da igualdade entre os candidatos em função das questões “clonadas” de outras provas.
13. Não me prendo, nesse momento, ao argumento de que a FESMPA seria instituição inidônea, inviabilizando a aplicação do art. 24, XIII, da Lei 8.666/93, mas à notícia constante dos autos de que a dita Fundação subcontratou, para realizar o concurso, a Faculdade de Administração do Estado de São Paulo. Isso porque a pré-falada hipótese de dispensa de licitação é, sem sombra de dúvida, intuitu personae. Não pode o ente contratado sem licitação, em razão de características próprias, transferir o contrato a terceiro que eventualmente não as possua. Ter-se-ia aí uma subcontratação ilegal ou, se feito com o conhecimento da Administração, uma forma de burlar a licitação, com eventual prática do delito previsto no art. 89 da Lei de Licitações. Em processo criminal iniciado pelo subscritor (2001.83.00.014112-8) na Seção Judiciária de Recife, vê-se da sentença prolatada pela MM. Juíza Federal Amanda Torres de Lucena, no item 50:
“Como se pode concluir, pois, houve evidente burla à lei de licitações, ao se dispensar licitação para contratação do SEBRAE quando, na verdade, os contratados seriam outras empresas as quais, acaso fossem contratadas diretamente pela FADE ou pela SUDENE, precisaria a contratação respectiva ser procedida do competente e necessário procedimento licitatório.”
14. Se, por acaso, o terceiro fosse, também ele, detentor do perfil legal capaz de ensejar a dispensa, essa aferição teria que ser feita em procedimento administrativo próprio, sob a autoridade do contratante, do contrário podendo tipificar-se também o referido art. 89, na modalidade de “deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa de licitação.”
15. Quanto às questões de prova retiradas de exames anteriores, realizados por outras entidades, foram em número expressivo, capaz de ofender, como se verá, o princípio da igualdade, quando não aquele da impessoalidade da Administração Pública.
16. Observa-se das fls. 83 e seguintes que inúmeras questões do 121º exame da OAB/SP foram aproveitadas na prova de analista judiciário, sem que o Estado requerido tenha contestado tais assertivas. Ora, não se exige, com efeito, salvo previsão do edital, o ineditismo das questões, sendo tolerável que algumas questões já tenham “caído” em outros concursos, até porque, como asseverou a Fundação em nota à imprensa, o universo do saber é limitado... mas a reprodução de grande número de questões de concursos anteriores, e notadamente de um único, compromete sem dúvida o princípio da igualdade.
17. Compromete o referido princípio da isonomia de forma objetiva, pois beneficiará aqueles candidatos que eventualmente tenham participado do certame do qual as perguntas foram retiradas ou que tenham tido a sorte de, nos seus estudos preparatórios, haverem utilizado a prova em questão como forma de se exercitar.
18. A utilização de questões de outras provas, da forma como se deu, pode ainda comprometer o princípio da impessoalidade da Administração, que se baseia ele próprio, como já dito, no princípio da isonomia. A razão é a maior probabilidade de fraude, pois a informação de que a prova se basearia num determinado certame anterior se revelaria então decisiva para o êxito do candidato. O “vazamento”, que seria criminoso, diga-se de passagem, desse tipo de informação, seria impossibilitado ou dificultado se as questões fossem inéditas ou mesmo se proviessem, em pequeno número, de concursos anteriores diversos. Assim, ainda que não tenham vindo aos autos elementos no sentido de que a referida conduta delituosa aconteceu, o incremento de sua possibilidade é, por si só, atentatório do princípio da impessoalidade que deve reger toda a atuação administrativa.
19. Quando se contrata entidade para realizar um concurso, está de fato implícito que ela irá elaborar questões novas, ainda que inovando apenas a forma de abordar os temas ou, no mínimo, a ordem das alternativas! A utilização de questões anteriores, ou o número em que isso seria permitido, os operadores do direito e notadamente o Juiz devem analisá-los sob o prisma da razoabilidade, princípio do Direito Administrativo e do Direito em geral. E foi suficientemente demonstrado pela parte autora, sem argüição em sentido contrário no que respeita ao número de questões, que a Fundação requerida não procedeu de forma razoável.
20. Um último aspecto que merece ser abordado também não recomenda a lisura do certame : é a informação constante no edital relativa à remuneração dos cargos. Ora, se o aumento da remuneração é previsto para 1º de julho de 2004, antes do que os candidatos dificilmente seriam empossados, por que não o mencionar no edital? Por que não prestigiar o princípio administrativo da publicidade? Por que restringir o acesso a informações tão relevantes a um pequeno número de pessoas? Já dizia Norberto Bobbio que a democracia é o poder do público... em público! O deslize fere certamente o conjunto dos interessados em participar do concurso e, particularmente, no que toca à atuação da OAB, os bacharéis em direito potencialmente candidatos ao cargo de analista judiciário, além do próprio princípio do amplo acesso aos cargos públicos.
DO PERICULUM IN MORA
21. Vislumbra-se, por fim, o perigo na demora do provimento judicial, justificando-se também por essa ótica a concessão da liminar. É que o Tribunal de Justiça tenciona nomear o quanto antes os aprovados, pelas razões expostas pelo nobre Procurador-Geral do Estado.
22. Ora, é temerário permitir a nomeação e posse de servidores públicos quando existe uma demanda tendente à anulação do concurso. A eventual procedência do pleito autoral levaria a gravíssimas conseqüências para os próprios aprovados, que veriam fulminados os seus atos de investidura. Tão graves são as conseqüências que os tribunais têm algumas vezes adotado a teoria do fato consumado para não afastar os servidores irregularmente empossados, o que não é absolutamente desejável.
23. São menos graves as conseqüências eventualmente advindas do deferimento da liminar: as nomeações ficam sobrestadas e o Tribunal de Justiça, acaso deva afastar servidores comissionados por determinação do Supremo Tribunal Federal, poderá valer-se do instituto da contratação temporária, previsto na Lei Estadual nº 4.969, de 25 de setembro de 2003.
ANTE TODO O EXPOSTO, manifesta-se o Ministério Público Federal pela legitimidade ativa da Ordem dos Advogados do Brasil, bem como pelo deferimento da liminar, no sentido de se suspenderem todos os atos administrativos decorrentes do concurso em tela, até decisão definitiva no presente processo.
Aracaju, 20 de abril de 2004.
PAULO GUSTAVO GUEDES FONTES
Procurador da República