Britto: uso excepcional de algemas não pode abranger apenas os ricos
Uberlândia (MG), 14/08/2008 - Os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de restringir o uso de algemas a casos excepcionais devem ser estendidos a toda a cidadania, não se aplicando esta exceção apenas àqueles presos ricos e mantendo as algemas de forma indiscriminada para os pobres. O alerta foi feito hoje (14) pelo presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Cezar Britto, durante discurso na Câmara Municipal de Uberlândia, em agradecimento ao título de Cidadão Honorário daquele município. "Se, em relação aos pobres há truculências e ilegalidades - e sabemos que há -, a oportunidade histórica dessa decisão impõe que tal anomalia seja corrigida, de cima para baixo", afirmou Britto. "Há aí uma intervenção necessária da advocacia, da OAB, da cidadania, denunciando os abusos que seguramente hão de persistir para os que estão embaixo".
Para o presidente nacional da OAB, a tão proclamada necessidade de inclusão social não deve se exaurir em políticas públicas de distribuição de renda. "Precisa manifestar-se na extensão dos ritos e regras do Estado democrático de Direito a todos os cidadãos - pobres, miseráveis, remediados ou ricos", observou. Britto destacou ainda que, ao lado da regulamentação do uso de algemas pelo STF, outra importante vitória da advocacia e da cidadania nos últimos dias foi a sanção da lei 11.767, que torna inviolável o escritório de advocacia.
A seguir, a íntegra do pronunciamento do presidente nacional da OAB, Cezar Britto, ao receber a comenda de Cidadão Honorário de Uberlândia:
"Senhoras e senhores
É com muita honra que recebo desta Câmara Municipal o título de cidadão honorário de Uberlândia.
Tenho por esta cidade, uma das mais prósperas do Brasil, grande apreço e admiração - por sua presença marcante em nosso desenvolvimento econômico, em que dá exemplo de pujança, otimismo e prosperidade.
Sei que a presente distinção destina-se mais ao que institucionalmente represento - a Presidência do Conselho Federal da OAB - que ao que propriamente sou: um modesto advogado de Sergipe, circunstancialmente exercendo este importante cargo.
Mesmo assim, me apraz imensamente esta comenda, que hei de guardar como das mais honrosas que tenho recebido em minha vida pública.
Sou, mais uma vez, grato por esta homenagem, generosamente aprovada pelas bancadas desta Câmara Municipal. Sinto-me lisonjeado com tantas e tão ilustres presenças, que dão a esta cerimônia estatura solene.
Quero, em retribuição, dar notícia de algumas de minhas atividades institucionais nestes tempos tão movimentados da vida pública brasileira.
Como os senhores sabem, a OAB é bem mais que uma entidade corporativa.
Nosso Estatuto nos compromete com a defesa da ordem jurídica do Estado democrático de Direito, com a defesa da Constituição, dos direitos humanos e da justiça social.
Daí nosso histórico envolvimento com a conjuntura político-econômica do país, sem, no entanto, nos deixar contaminar por interesses ideológicos ou partidários.
Nossa ideologia é a defesa da cidadania. Nosso partido é a Pátria. Dentro desse contexto, quero aqui registrar duas expressivas vitórias recém-obtidas pela advocacia - e, por extensão, pela cidadania brasileiras:
A primeira: a sanção, semana passada, pelo presidente interino da República, José Alencar, da Lei nº 11.767, que garante a inviolabilidade dos escritórios de advocacia - e, nesses termos, o direito de defesa do cidadão.
E a segunda: e a decisão do Supremo Tribunal Federal de regulamentar o uso de algemas por parte da Polícia. Vamos à primeira.
Pela nova lei, os escritórios de advocacia são invioláveis no que se refere ao relacionamento do advogado com o cliente, salvo quando o advogado é acusado da prática de crime - ocasião em que deixa, como é óbvio, de praticar um ato típico de advocacia.
Crime e advocacia são incompatíveis. Como cidadão e advogado, sinto-me, pois, vitorioso com esse projeto. A cidadania lucrou com essa solução. Foi reconhecido o direito de o cidadão se defender, garantido pela inviolabilidade do advogado que porventura contratar.
A lei está, assim, dentro do que a OAB sempre defendeu, e consagra ainda outro princípio externado por nós o tempo todo: nenhuma profissão pode receber habeas corpus preventivo para cometer crimes.
Muito menos a advocacia, que é uma profissão paradigmática, por sua natureza de defensora da cidadania.
O projeto que originou essa lei fez corretamente a separação entre a figura do criminoso e a figura do advogado, estabelecendo que o relacionamento do advogado com o cliente é inviolável, mas não pode configurar uma liberação para que o advogado, junto com seu cliente, cometa crimes. Então, reitero, é uma vitória importante da democracia e da cidadania.
Nenhum de nós, como é óbvio, postulava impedir o combate ao crime, em qualquer nível social em que se dê. Nenhuma outra entidade da sociedade civil brasileira envolveu-se mais historicamente nesse combate que a OAB.
Onde quer que haja delinqüência - na política, no sistema financeiro, no três Poderes, nas ruas -, lá estará a advocacia para oferecer combate incansável e corajoso. Mas sempre com uma premissa: de que o combate se dê dentro da lei, das regras e ritos do Estado democrático de Direito.
Repito aqui o que tenho dito por onde vou: combater o crime fora lei é reconhecer a impotência da legalidade, a supremacia do mal sobre o bem. E aí teríamos o triunfo do crime.
Não pode o Estado absorver a lógica das milícias que atuam nos morros cariocas, absorvendo os valores e as práticas do crime em nome de seu combate. Quando se adotam práticas criminosas para combater o crime, o vitorioso é sempre o crime. Não há exceção a essa regra.
Daí nosso empenho para que a lei prevaleça sempre. E a sanção dessa lei de inviolabilidade dos escritórios de advocacia é um triunfo nesse combate. Triunfo não apenas da advocacia, mas da cidadania e do Estado democrático de Direito.
Falemos agora da regulamentação do uso de algemas, recém-estabelecida pelo Supremo, e que nos reporta ao mesmo tema.
A decisão é um claro aceno de que é necessário respeitar os princípios fundamentais estabelecidos na Constituição Cidadã de 1988.
Ao reconhecer que o uso de algemas deve ser aplicado apenas em caráter excepcional, entendeu o STF que é necessário aplicar vários princípios constitucionais consagrados na História do Brasil e da Humanidade.
Dentre eles, destacam-se o princípio da presunção de inocência, o princípio da proporcionalidade, o princípio da dignidade da pessoa humana e, ainda, aquele de que somente se poderá fixar pena quando ela está prevista em lei.
Com a decisão do STF, não se poderá usar algemas apenas com intuito de constranger, condenar moralmente ou espetacularizar o ato de prisão. Combate ao crime não é show de televisão.
A algema somente poderá ser aplicada em casos de risco de fuga ou de perigo de morte dos agentes e cidadãos.
Outro dado a destacar na decisão é o de que o Supremo buscou exercer a sua função orientadora para o Brasil, indicando que será editada súmula específica no que se refere ao uso de algemas, determinando-se de logo a certificação das autoridades de segurança pública no Brasil para que se observe a Constituição Federal.
É uma decisão histórica para a cidadania e que honra o Estado Democrático de Direito no Brasil.
O argumento de que, em relação aos presos pobres, não se age da mesma forma não pode justificar a prevalência de uma indignidade, de uma ilegalidade. Se assim é, algo precisa ser feito - e já.
Se, em relação aos pobres há truculências e ilegalidades - e sabemos que há -, a oportunidade histórica dessa decisão impõe que tal anomalia seja corrigida, de cima para baixo. O contrário é que é impensável: a ilegalidade praticada em baixo ser estendida a todos os casos.
Seria a generalização da ilegalidade.
Já é tempo de se estender a cidadania a todos os níveis sociais. E o fato de tal prática inexistir é uma das mais graves tragédias sociais e morais que vivemos.
Sabemos que, em nosso país, formado dentro de uma cultura escravista, há cidadãos de primeira, segunda e terceira classes.
Não será, porém, estimulando conflitos e ressentimentos sociais que corrigiremos as anomalias vigentes.
A tão proclamada necessidade de inclusão social não se exaure em políticas públicas de distribuição de renda. Precisa manifestar-se na extensão dos ritos e regras do Estado democrático de Direito a todos os cidadãos - pobres, miseráveis, remediados ou ricos.
Há aí uma intervenção necessária da advocacia, da OAB, da cidadania, denunciando os abusos que seguramente hão de persistir para os que estão embaixo.
A decisão do Supremo, no entanto, é para ser estendida a toda a cidadania.
O uso regulamentar das algemas não pode ser observado apenas para os cidadãos que usam gravata e têm gordas contas bancárias - e sim ser estendido a todos, quer morem em Ipanema, Avenida Paulista ou Morro da Previdência.
Os dois triunfos da cidadania que hoje aqui registro só serão efetivamente verdadeiros quando forem aplicados com isonomia, sem distinção de qualquer espécie, dentro do que proclama o artigo 5º da Constituição da República, de que todos são iguais perante a lei.
Não podem uns continuarem "mais iguais" que os outros - e, enquanto isso prevalecer, a advocacia e a cidadania não poderão esmorecer nesse combate.
Concluo reiterando minha gratidão aos uberlandenses por essa distinção que aqui hoje recebo e que guardarei como das mais significativas desta minha honrosa passagem pela presidência do Conselho Federal da OAB.
Muito obrigado".