Entrevista: Ordem na casa
Brasília, 04/01/2008 - A entrevista "Ordem na Casa" foi concedida pelo presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto, ao jornalista Marcone Formiga e estampa a capa da revista Brasília em Dia, que começa a circular no dia de hoje (04). A seguir, a íntegra da entrevista:
“Advogado de inúmeras entidades sindicais, movimentos populares e ONG’s, além de uma intensa militância em movimento estudantil, o sergipano Cezar Britto assumiu a presidência da OAB nacional em um momento muito especial. As secções da Ordem dos Advogados do Brasil, de Brasília e São Paulo, foram envolvidas em denúncias de fraudes no Exame da OAB, que qualifica um advogado a ingressar no mercado de trabalho.
Em apenas 23 anos de profissão ele fez uma trajetória vitoriosa, integrando o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, além do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Também é vice-presidente para o Brasil da União Internacional dos Advogados, além de presidente da União dos Advogados de Língua Portuguesa.
Nesta entrevista, analisa as dificuldades da justiça, por que a falta de agilidade, o envolvimento de advogados com o crime organizado, fraudes no Exame da OAB, além de analisar o momento político e social do país. Demonstra determinação em por ordem na casa.
P - A ministra Ellen Gracie critica muito o lado conservador da Justiça. Chega ao ponto de observar que os juízes só faltam escrever com uma pena. O senhor concorda?
R - A linguagem do Judiciário é conservadora e reflete em todas as suas vertentes. Tanto no peticionamento quanto na conclusão do Judiciário. Tem razão a ministra Ellen Gracie. Eu acho que o Judiciário, por tratar de justiça, e justiça é relacionado com cidadania, precisa ter uma linguagem muito mais compreensiva. A TV Justiça tem contribuído muito para a popularização do Judiciário e a unificação da linguagem. É importante que a linguagem seja uma linguagem compreensiva. Justiça não pode ser, e nem deve ser um bem não falado com fluência pelo povo.
P - Também é freqüente a crítica de que a Justiça, além de lenta, falha por excesso de recursos e formalismo. Essa crítica também procede?
R - Eu não acredito que a Justiça seja lenta pelo excesso de recursos... Até porque os recursos têm prazos pré-estabelecidos para ser interpostos.
P - Por exemplo.
R - Quando o processo demora 10 anos de um criminal para ser julgado, a culpa é do recurso, ou do advogado, que teve 15 dias para recorrer, ou do tribunal que levou nove anos, 11 meses e 15 dias para julgar? A questão não está no recurso, mas na disponibilização de tempo, ou estrutura de pessoal, para fazer o julgamento mais rápido. O Judiciário é a atividade-fim do Estado. Toda a disponibilização orçamentária deve ser para torná-la operacional. Quando eu falo de toda a destinação orçamentária, estou afirmando que se deve apostar cada vez mais em juízes e servidores concursados, e cada vez menos em prédios imponentes e, às vezes, não funcionais.
P - Isso tornaria o Judiciário mais ágil?
R - Se nós compreendermos o Judiciário pela sua face mais humana, qualificando mais o juiz, dando-lhe mais estrutura para o trabalho, nós teremos uma Justiça muito mais ágil. Quando fixarmos mais os juízes nas comarcas, fazendo que eles conheçam cada vez mais a alma do povo que irão julgar, nós teremos um Judiciário muito mais eficaz. Não é a quantidade de recursos, mas, sim, a compreensão da Justiça como atividade-fim.
P - Qual é a realidade, hoje, do Judiciário?
R - Vou responder citando um exemplo. Recentemente, eu estive no Piauí... A realidade do Judiciário do Piauí demonstra que a atividade da Justiça não foi compreendida por alguns governantes e administradores da própria Justiça. É um cível/criminal, que se pode atribuir o nome do fórum apenas porque consta da fachada. Mas não funciona como um órgão de Justiça. No fórum criminal, não há água para beber, não existe água nos banheiros. Computador? Nem pensar... Uma velha máquina Remington substitui a internet, não há internet nos gabinetes. No fórum cível, a sensibilidade é a palavra vazia. Porque em um prédio de cinco andares não existe elevador, e a escada é uma escada externa, em que as mulheres sequer podem trabalhar por causa da visibilidade que lhes concederia, pelo uso do meio que levaria aos demais andares. Então, demonstra que a Justiça ainda não é uma atividade-fim para muita gente.
P - E quanto o Ministério Público? Está cumprindo corretamente suas atribuições? Ou existe excesso?
R - O Ministério Público tem um papel relevantíssimo na defesa da República e na garantia da Constituição. O Ministério Público tem sido um parceiro da cidadania no combate do crime organizado, na defesa do patrimônio público, na defesa do patrimônio cultural, do meio-ambiente... Tem cumprido, bastante, a sua função constitucional. Porém, alguns integrantes do Ministério Público, equivocadamente, extrapolam dessa função. Ao invés de defender a cidadania, por esses excessos cometidos, porque violam princípios básicos de defesa da cidadania. O Ministério Público quer ser cada vez mais onipresente. Esses setores querem controlar até as ações de gestão do próprio Estado. Exemplos típicos deles é que interferem, cada vez mais, no Judiciário, no Legislativo e no Executivo. E quando um órgão cresce sem controle, ele pode passar a exercer tarefas mais autoritárias. Sair de um Estado policial, que está presente, cada vez mais, no Brasil, para um Estado ministerial, se nós não tivermos cuidado com essas pequenas pessoas que integram o Ministério Público com excesso. No todo, o Ministério Público tem cumprido um papel relevante. Mas alguns, infelizmente, têm abusado...
P - O cientista político e constitucionalista italiano Giovani Sartori concluiu que a Constituição brasileira é simplesmente péssima. O senhor concorda com essa avaliação?
R - A Constituição brasileira é muito boa na conceituação do Brasil como democrático, em que o cidadão é a razão de ser de todas as coisas. Por essa razão é que ela é chamada de Constituição Cidadã. Mas, não basta mudar uma legislação. É preciso mudar a mentalidade! E a mentalidade do governante brasileiro não é uma mentalidade compatível com o querer constitucional. Tanto é, que a Constituição já sofreu diversas emendas e é, constantemente, desrespeitada. Um número de ações diretas de inconstitucionalidades que tramitam perante o Supremo Tribunal, e tantas que já foram julgadas inconstitucionais, demonstram que há uma tentativa clara de não fazer valer a Constituição Federal. A Constituição é boa. O erro está na execução, quando os homens são encarregados dessa tarefa.
P - Alguns advogados são acusados de manter relações promíscuas com o crime organizado. O senhor admite que existe isso?
R - Não é nem questão de admitir ou não admitir... A realidade tem demonstrado que vários advogados esqueceram da profissão para se transformar em sócios do crime. Quando agiram assim, não agiram como advogados. Agiram como criminosos ou cúmplices do crime. Essa é uma realidade cruel!... E não se combate realidades cruéis escondendo, ou jogando para debaixo do tapete, esse tipo de problema. Combate-se com ação. Tanto assim o é, que um dos primeiros atos da minha gestão foi operacionalizar uma reivindicação antiga dos conselhos federais, de transformar o órgão julgador ético de um para três. Isto, para que déssemos respostas mais rápidas à sociedade, no que se refere esses casos de violação ao estatuto.
P - Como separar o joio do trigo, ou a laranja bichada das boas?
R - Nós não podemos conviver com um advogado que esquece a profissão para ser um leva-e-traz do crime. Este, tem que ser punido, e está sendo punido, da relação da categoria. O que não se confunde com advogado que defende alguém acusado de crime. Porque o direito de defesa é da essência do cidadão. Todos eles têm direito, criminoso ou não. A separação é importante para que as pessoas percebam que defender um criminoso não faz do advogado o criminoso. O que o torna assim, é quando ele começa a praticar atos de perpetuação do crime como se fosse um integrante, também, da própria quadrilha.
P - O crime organizado está se infiltrando no Estado. Isso não é perigoso?
R - O crime organizado já se envolveu, há muito tempo, com o Estado. O Espírito Santo bem representa. Como crime organizado, ele participou ativamente. Nós criamos uma comissão de combate à corrupção e uma comissão de combate ao crime organizado, separadamente. Demonstramos que são dois adversários que exigem não só uma legislação mais eficiente, mas também um Judiciário mais combatente. O Judiciário – acho, inclusive, nos casos mais simbólicos – deveria dar uma resposta mais rápida para a sociedade, que a impunidade não tem vez. Porque a impunidade é um estimulador da corrupção e um incentivador do crime. As pessoas ficam sentindo-se livres para cometê-los, porque sabem que não vai ter a repressão do Estado.
P - Ultimamente, os exames da OAB estão sob suspeita de fraudes. Aqui em Brasília passou a ser um escândalo. Qual é a avaliação que a OAB nacional faz disso?
R - Ninguém está imune à ação do criminoso. A fraude pode ocorrer em tudo que é instituição, e ocorreu na OAB. Ocorreu em alguns casos, referente ao Exame de Ordem. O importante não é saber se a fraude atinge a um ou a outro. E como reagir diante da fraude. E a OAB reagiu bem. Todos os casos de denúncia de fraude no Exame de Ordem foram totalmente respondidos pela OAB, buscando e comunicando ao Judiciário, ao Ministério Público e à Polícia Federal, para que investigasse esse tipo de fraude.
P - Ter acesso ao mercado de trabalho através da fraude já é um mal começo...
R - Justo por isso, a Ordem não pode compactuar com a fraude do exame de Ordem. Porque quem entra na advocacia pela fraude, nele já há ausência dos dois requisitos fundamentais para a advocacia: o requisito técnico – tanto é que precisou do artifício da fraude para se tornar advogado –, e, sobretudo, o requisito ético, porque aí cometeu um crime. Esses seriam facilmente cooptados pelo crime organizado, por exemplo. Na questão da reação, é preciso compreender o que estamos fazendo para evitar a fraude. Nesta gestão, nós elegemos o Exame de Ordem unificado com uma forma mais eficaz de combate à fraude e à mercantilização do ensino, simultaneamente, modificando o viés, até então, utilizado pelo Exame da Ordem.
P - Como filtrar o mercado de trabalho?
R - O Exame de Ordem não pode ser um instrumento de repressão, como pensam alguns. Mas, sim, um instrumento de orientação e abalizamento profissional. Quando nós fazemos a mesma prova no Brasil todo, nós estamos afirmando que vamos ter um quadro comparativo da realidade do ensino no Brasil. Isso vai servir para que os alunos descubram como está a sua instituição, se tem chance de aprovação ou não, e cobrem melhoria do ensino. Vai servir para que as instituições encaminhem um trabalho comparativo para que possam, também, melhorar – estamos fornecendo a elas, inclusive, dados; e iremos fornecer dados para mostrar por que os alunos tiveram reprovação ou aprovação maior, ajudando a melhorar a qualidade –; vai servir de orientação para o MEC – porque não é um instituto de avaliação, no Brasil, eficaz, como o Exame de Ordem, porque lá só participa quem quer ser aprovado, e não é por voluntariedade. Então, nós vamos fazer um Exame de Ordem que qualifica o ensino, que combate a mercantilização e, ao mesmo tempo, auxilie a melhorar a ascenção social do cidadão brasileiro.
P - O presidente Lula vem sendo criticado por dar prioridade a estabilidade econômica, enquanto setores como saúde e educação acumulam problemas. Essa prioridade é questionável, até porque o custo social da estabilidade é muito alto?
R - Não se tem dúvida que o superávit, que está aí, se impondo à economia, resulta em prejuízo para as questões sociais. Porque ninguém faz magia com dinheiro. Se paga um, deixa de pagar o outro. O valor alto destinado ao superávit falta para termos um aceleramento maior na questão social. Evidentemente, que os dados estatísticos demonstram que no governo houve uma ascensão social visível. Mas poderia ser muito maior, se a prioridade não fosse o superávit e sim a questão social.
P - A reeleição abre margem para a continuidade dos governos. Houve um presidente da América Latina que ficou 30 anos no poder. Assim voltará a caminhar a América Latina?
R - A democracia pressupõe alternância de poder. A democracia pressupõe que todos tenham possibilidade de ascender à condição de representante maior de uma nação, de um estado e de um município. A democracia pressupõe igualdade de concorrência. Todos esses princípios são quebrados, se nós eternizarmos as eleições brasileiras. Por isso, a OAB foi sempre contra a reeleição. Se a OAB é contra a reeleição, quanto mais a tri-reeleição ou a eternização dos mandatos! A nossa proposta de reforma política, que encaminhamos ao Congresso Nacional, e entregamos, também, ao presidente Lula, está expresso o respeito que nós temos pelo cidadão brasileiro e ao povo brasileiro quando propusemos a melhoria da democracia participativa, com mais referendo, mais plebiscito e a criação do recall, que é a possibilidade de cassarmos um mandato do nosso representante que se mostrou indigno no curso da representação. E na democracia representativa, o fim da reeleição.
P - O que se deve reformar para aperfeiçoar a democracia brasileira?
R - Além de financiamento público de campanha, fidelidade partidária e o fim do senador suplente, que é uma anomalia democrática – alguém que representa o povo sem nunca ter recebido um voto desse mesmo povo. Não sem razão, nós o batizamos de senador clandestino – aquele que só é revelado no dia da posse, quando cumpre a sua função por ter sido ou financiador de campanha, ou ser filho ou beneficiário daquele senador que tem um prestígio pessoal. Os dois últimos, que se tornaram permanentes, me demonstram essa representação. Tanto aquele senador que substituiu o Roriz (Gim Argello) quanto o que substituiu o Antonio Carlos Magalhães (Antonio Carlos Magalhães Filho). Um por ser empresário financiador; o outro, por ser filho.
P - Fala-se tanto em reforma política, mas ela nunca sai. Falta vontade política?
R - Infelizmente, os nossos parlamentares pensam muito mais nas próximas eleições do que nas próximas gerações. Legislam voltados para o seu próprio umbigo, pensando como fazer uma legislação que lhes garanta eternização no poder. Esse é o principal obstáculo. Obstáculo da mentalidade política. Não da vontade, tão somente. Porque todos dizem que têm vontade; todos dizem que querem reforma política... Mas pouco fazem, quando percebem que o avançar da sociedade pode implicar em um renunciar de privilégios que têm. Eu tenho esperança que em 2008 essa reforma saia para valer. A esperança assim está, porque um dos ausentes na discussão da reforma política, em 2007, está se dizendo quem se fará presente, que é o Poder Executivo.
P - Mas os dois poderes já manifestaram interesse em promover uma reforma política...
R - Agora, é a vez do Legislativo. Ou o parlamentar compreende que ele é a razão da democracia, por ser o representante direto do povo, ou ele vai brincar de sua função, trazendo perigosamente o Brasil para o risco do autoritarismo. Porque quando o parlamento é fraco e o Executivo é forte, o autoritarismo ganha. E não precisamos repetir o passado. Nós queremos que o parlamento seja forte; conduza a reforma política. Mas, para isso, o parlamentar também tem que querer.
P - O presidente Lula já afirmou que não é de esquerda. Então, é de direita?
R - Ele se diz presidente da República. E que não há mais essa expressão direita e esquerda no Brasil. Não é essa a compreensão do mundo. O mundo tem visão mais à esquerda, e tem uma visão mais à direita. A visão mais à direita é uma visão neoliberal, em que há liberdade de circulação do capital e dos ganhos ali decorrentes deve ser livre; e a visão mais à esquerda, que é uma visão mais de fortalecimento da sociedade, dos mecanismos de defesa da sociedade, ou da auto-regulação na própria sociedade. Essas concepções dividem o mundo, ainda...
P – Por que?
R - Vou dar o exemplo de como divide o mundo, que é compreensão no trabalho... Aqueles que têm uma visão mais liberal do trabalho, entendem que o trabalho emperra o crescimento econômico. O outro grupo diz que não. Que é fator de dignidade humana. Que o trabalho é fator de felicidade; que as pessoas têm que ser bem remuneradas mesmo, porque é através do trabalho que se mantém a subsistência. São dois pensamentos distintos. Eu me filio ao último, que é o que está na Constituição: trabalho é fator de dignidade da pessoa humana.
P - E o excesso de Medidas Provisórias? Cogitou-se ressuscitar a CPMF, com uma MP...
R - O Brasil sofre com o excesso de Medidas Provisórias. A OAB tem denunciado, constantemente, e a sociedade tem rejeitado as Medidas Provisórias. Mas a questão não é mais do excesso, é um dado novo de recolhimento de Medidas Provisórias em excesso pelo próprio Executivo. Isso é uma contradição muito grande. Porque se o Executivo diz que a Medida Provisória se justifica, e que só se podia justificar constitucionalmente, só é urgente e relevante. Se ela própria emite com esse caráter de urgência e relevância, e volta atrás, é: ou porque não era urgente e relevante, que não justificaria a Medida Provisória, ou deixou de ser, porque tem uma outra coisa por trás. Então, a forma como se comportou o Executivo, ao recolher as Medidas Provisórias já emanadas do próprio Executivo para o Legislativo, é extremamente grave. Não é uma novidade no governo Lula. Foi praticada no governo Fernando Henrique Cardoso. O que não o absolve. Apenas confirma a regra de que as Medidas Provisórias estão sendo editadas, e com exagero desnecessário.
P - Como o senhor acompanha a incompatibilidade entre os ministros Marco Aurélio e Joaquim Barbosa, no Supremo Tribunal Federal?
R - O maior fator de manutenção e aceitação do Judiciário é a credibilidade. Se o cidadão perde a credibilidade na Justiça, ele pode tomar duas atitudes graves para a democracia: uma, a da acomodação. Se não acredita na Justiça, ele pode ficar acomodado. E a acomodação gera exploração; ou a vingança provada. Já que não confia na Justiça, resolve-se pessoalmente as questões. Por isso, a credibilidade é fundamental para o Judiciário. O Judiciário não pode correr o risco de passar uma imagem enfraquecida para a sociedade. E não deixa de ser preocupante quando dois ministros da Casa Maior do Judiciário, que é o Supremo Tribunal Federal, externa essas malquerenças, podendo estar contribuindo para reduzir o papel da credibilidade do cidadão sobre esse órgão, que é fundamental. Eu espero que eles se acertem internamente, e não externem essas brigas que fazem parecer que o Judiciário não é unido.
P - As prisões no Brasil são aberrações, funcionando, muitas vezes, como escolas de pós-graduação para criminosos. Além de monstruosidade como o caso da adolescente que foi violentada por dezenas de presos em uma cela, no Pará, quando deveria ser protegida pelo Estado. Isso resume a falência do sistema? E por que isso acontece?
R - Esse caso fez cair a máscara da hipocrisia do Estado e da cidadania, no que se refere ao sistema carcerário. Todos sabem que o sistema carcerário brasileiro é destinado aos pobres, aos negros e às prostitutas. Todos já sabiam que lá era um verdadeiro depósito de pessoas humanas, ao ponto de em dois estados - o Pará e Santa Catarina - as prisões serem containers, tipicamente para mercadorias. Todos sabiam. Mas no caso do Pará, a hipocrisia cai porque ela envolve diretamente uma delegada mulher, um membro do Ministério Público mulher e uma juíza mulher, em um estado onde a secretária de Segurança Pública era mulher, e era também governado por uma mulher.
P - Isso torna o caso ainda mais grave?
R - Muito, porque as três primeiras, aquelas que tiveram acesso direto à adolescente - a delegada, a integrante do Ministério Público e a juíza - deram uma desculpa que bem revela esse esquema trágico que atinge o sistema carcerário... Diziam elas para todos nós: “Desculpe, eu não sabia que era uma adolescente!” Porque se fosse adulta poderia acontecer como está acontecendo nos demais estados da federação, e no próprio Pará. O fato de ser mulher misturada com homem não chocou tanto quanto o fato de ser mulher adolescente. Isso mostra que a hipocrisia caiu nesse episódio e que é preciso, a partir dele, melhorarmos o Brasil.
P - Por que defendem tanto a redução da pena? O senhor concorda com isso?
R - Reduzir a idade penal, eu não tenho dúvida, é legalizar essa hipocrisia. Não precisaria dar mais essas desculpas, como “Desculpe, sou adolescente”. Mas outra questão grave na idade penal é a compreensão de que se resolve o crime com a modificação de leis e não de mentalidade. E a mentalidade é que tem que se modificar, não a Legislação! No crime que chocou o Brasil, daquela criança lá no Rio de Janeiro, dos cinco envolvidos, quatro tinham a idade adulta e um era adolescente. Os quatro tinham a idade adulta com a pena maior e isso não impediu que eles cometessem aquela barbaridade. Não é questão da pena. Por isso, é melhor modificar a forma da compreensão de como devemos tratar os nossos adolescentes.
P - De que forma?
R – Nós ganharemos muito mais se colocarmos os adolescentes que cometem algum ato infracional em um sistema educacional. Porque além de eles melhorarem, eles poderiam retornar à sociedade com um teor ofensivo muito menor, ou inexistente - coisa que não acontece hoje, porque são jogados no sistema carcerário, onde eles pioram. Nós saímos perdendo duas vezes: quando o tratamos com indignidade e o preparamos para o crime; além do que, o efeito colateral da redução da idade penal pode ser extremamente grave. Porque, às vezes, nós ficamos focados nos criminosos e não nos focamos nos nossos adolescentes.
P - Qual seria a conseqüência maior da redução?
R - Se reduzíssemos a idade penal, nós reduziríamos a idade da compreensão da disponibilização do corpo. Ou seja, nós temos que admitir que a idade da exploração sexual sairia de 18 para 16. E deixaríamos à disposição daqueles que exploram sexualmente as nossas adolescentes, estimulando, inclusive, o turismo sexual perverso para o Brasil. Daríamos um habeas corpus para essas pessoas. Veja que o efeito colateral é muito grave para se modificar uma legislação em que se sabe que a pena ou a punição não se resulta de uma alteração legislativa, mas sim da mentalidade.”