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Artigo: "Como escorchar o povo sob o manto da Constituição"

quarta-feira, 22 de abril de 2009 às 09h59

Brasília, 22/04/2009 - O artigo "Como escorchar o povo sob o manto da Constituição" é de autoria do presidente da Comissão Nacional de Defesa da República e da Democracia do Conselho Federal daOrdem dos Advogados do Brasil (OAB), Fábio Konder Comparato:

"O Congresso Nacional prepara-se para desferir, impunemente, mais um golpe na economia popular. Trata-se de institucionalizar o calote das dívidas judiciais dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

O Senado Federal aprovou, a toque de caixa, uma proposta de emenda constitucional que estabelece, em relação ao total dessas dívidas já formalizadas em títulos oficiais (precatórios), as seguintes regras:

Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios depositarão anualmente em conta especial, para pagamento dos seus débitos definitivamente julgados, um valor percentual máximo calculado sobre as suas receitas correntes líquidas. Esse limite de depósitos anuais irá variar, nos Estados e no Distrito Federal, de 0,6% ao máximo de 2%; nos Municípios, até o máximo de 1,5%.

Do total dos recursos assim limitadamente separados para pagamento das dívidas judiciais, 60% serão utilizados sob a forma de leilão (receberá antes o credor que aceitar a oferta de maior redução do seu crédito), e 40% em ordem crescente de valor, ou seja, os maiores credores receberão por último.

Segundo cálculos já efetuados, o Estado do Rio de Janeiro levará 21 anos para saldar suas dívidas de precatórios; a Prefeitura de São Paulo, 25 anos; o Estado do Espírito Santo, mais de um século...

A crua realidade é que estamos diante de mais um crime contra a economia popular, agora em reincidência específica. Em 2000, a emenda (in)constitucional nº 30 permitiu que as dívidas estatais, constantes de precatórios, teriam seu pagamento parcelado em 10 anos. Tanto essa emenda (ou melhor, remendo) constitucional, quanto o que está prestes a ser agora votado, alteram o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Ou seja, a transição para o atual regime constitucional continua indefinidamente em aberto, segundo a vontade arbitrária do Congresso.

Somos, na verdade, o único País em que o início de vigência da Constituição é postergado ao talante do órgão estatal que detêm o poder exclusivo de reformá-la. Para vergonha de todos nós, o descaramento em tripudiar sobre a ordem constitucional dita transitória já foi aceito, até hoje, nada menos do que 17 (dezessete) vezes pelo Poder Judiciário. Felizmente, para a defesa da dignidade da Magistratura, o eminente Ministro Carlos Ayres Britto, que a honra a sua toga, acaba de pronunciar-se contra essa desfaçatez em recente artigo doutrinário.**

Não me tenho cansado de denunciar, para escândalo de não poucos, que o Brasil, malgrado o disposto no art. 1º da Constituição Federal, não é uma República nem um Estado Democrático de Direito. Não é República, porque o interesse particular - no caso, a conveniência financeira de unidades da federação - prevalece sobre o bem comum do povo (res publica). Não é um Estado Democrático, porque o povo, dito soberano, não tem o poder de controlar o Congresso Nacional, no exercício da sua competência máxima de reformar a Constituição. Não só não há referendo popular de emendas constitucionais, como tampouco existe a previsão de iniciativa do povo para a votação de tais emendas. Finalmente, não é um Estado de Direito, porque os órgãos do Poder dito Público modificam quando bem entendem a ordem constitucional, segundo as suas conveniências do momento.

Entre nós, todos são obrigados a respeitar a coisa julgada, salvo o Poder Executivo, que se comporta como um toxicômano. Para lutar contra o vício da irresponsabilidade financeira, ele demanda sempre um tempo a mais, e nunca deixa de ser atendido pelo Poder Legislativo.

Muito diferente tem sido o procedimento do Estado brasileiro com os credores de seus títulos de dívida, emitidos em empréstimos públicos. Aqui, o rigor na solvência é draconiano. O orçamento público é submetido a metas de superávit primário - em prejuízo de investimentos em educação, saúde, previdência e segurança - de modo a garantir a transferência de recursos do povo (por meio do recolhimento de impostos) para os portadores desses títulos de dívida. E quem são eles? Bancos e fundos de investimento, cujos acionistas e cotistas, salvo engano, não estão entre as pessoas menos abonadas deste País. Falar em moratória dessa dívida estatal é pronunciar uma blasfêmia.

Para justificar o calote dos débitos judiciais do Poder Público, a Frente Nacional de Prefeitos brande agora o exemplo de um Município paulista que, afogado em precatórios, suspendeu o ensino público e interrompeu parcialmente o serviço de saúde pública. Tudo isso pelo fato de haver expropriado um bem imóvel, cuja indenização ultrapassou em muito a previsão oficial.

Em primeiro lugar, é de se perguntar se a conveniência e oportunidade desse ato expropriatório eram compatíveis com o funcionamento regular dos serviços públicos prestados pelo Município, notadamente aqueles ligados à proteção dos direitos fundamentais de natureza social. Escusa dizer que, se tal não ocorreu, houve flagrante abuso ou desvio de finalidade. Em segundo lugar, é de se indagar se, após a verificação da insolvência financeira do Município, continuaram a ser regularmente pagos os subsídios do Prefeito e dos secretários municipais, bem como as despesas com a publicidade oficial não obrigatória.

Oxalá o Congresso Nacional, abalado por uma série infinda de imoralidades, crie um pouco de vergonha e suspenda mais esse assalto à economia popular. Na hipótese de que isso não suceda, a Ordem dos Advogados do Brasil tem o dever público de atacar a emenda constitucional assim forjada, perante o Supremo Tribunal Federal.

Caso o órgão máximo da Justiça Brasileira decida consolidar o escorchamento constitucional do povo pelo Estado devedor, o risco será grande de se ver um bom número de cidadãos optar, nas próximas eleições, pela abstenção cívica."

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