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Entrevista: Bonavides critica decadência da classe política no Brasil

terça-feira, 2 de setembro de 2008 às 11h22

Natal (RN), 02/09/2008 - "O funesto interregno de vinte anos esterilizou o solo político. Sacrificou toda uma geração distanciada do poder e da militância política. Não teve parte na restauração da legitimidade representativa aquela geração. De tal sorte que o Congresso, invadido de pigmeus, não viu depois nenhum gigante subir os degraus da tribuna parlamentar. É amarga, pois, a decadência da classe política no Brasil." A afirmação foi feita pelo jurista Paulo Bonavides e consta de entrevista concedida por ele ao jornal do campus da Faculdade Natalense para o Desenvolvimento do Rio Grande do Norte (Farn). A seguir, a íntegra da entrevista:

P - De todas as suas obras, uma chama atenção por estar muito atual: "Do Estado Liberal ao Estado Social", que completa 50 anos. O que se pode entender como um estado social diante de tantos escândalos e denuncias de corrupção?

R - O Estado brasileiro é um Estado injusto desde sua aparição. E o é, primeiro, porque nasceu abraçado com a escravidão, mancha social de berço que até hoje não foi possível retirar. Segundo, porque, concomitantemente à desigualdade étnica, já formalmente extinta, outra não menos aguda perdura até aos nossos dias: a grossa desigualdade material, de ordem econômica e social, que tem sido a mais difícil de combater e erradicar. Quem a perpetua senão a classe dominante com a supremacia dos privilégios? Quem a cultiva senão as elites decadentes e depravadas que, assim no Império como na República, foram as colunas da servidão, o sustentáculo da continuidade daquele modelo incompatível com a organização democrática do poder e das instituições. A partir dessa realidade e da expressão Estado Social, estampada nas primeiras linhas da Carta provisória de Bonn, afigurou-se-nos, em sede teórica, que era possível sobreviver à tempestade ideológica do século XX e salvar os náufragos do totalitarismo, os povos sem opção libertadora nas regiões da doutrina, a mocidade escarmentada e pessimista que perdera a fé nos valores da democracia, as vítimas das ditaduras, os órfãos da liberdade. Debaixo desse sentimento e dessa inspiração de resistência, escrevemos, há cinqüenta anos, a nossa tese de cátedra, "Do Estado Liberal ao Estado Social", que tem para o Brasil contemporâneo a mesma atualidade que teve há meio século. Isso decorre do fato de que a onda de escândalos e corrupção, a que você se refere em sua pergunta, não poderá deter a marcha para o Estado social; ao contrário, pode até acelerá-la, quer pela via reformista, quer pela via revolucionária. Mas a lei natural da fraternidade manda, de preferência, eleger o caminho da paz para chegar ao Estado social, porque a paz, sobre ser concórdia e harmonia, é direito dos povos; antes de ser direito fundamental do indivíduo é premissa do Estado social.

P - O senhor recebe uma homenagem do Rio Grande do Norte, especialmente da FARN com um congresso. O que isso representa para o senhor?

R - A homenagem da FARN eu a inscrevo no rol dos felizes eventos de minha vida. Figura entre aqueles que mais me tocaram ao espírito, à sensibilidade, à gratidão. Vem coroar uma trajetória de 70 anos devotados ao labor intelectual, ao estudo, às letras e, de último, às lutas constitucionais por uma democracia de participação. Ao recebê-la não posso todavia deixar de referir que para mim a importância desse galardão cresce em razão de provir da iniciativa de duas insignes expressões do magistério potiguar: o Reitor Daladier Cunha Lima e a educadora Noilde Ramalho. O Rio Grande do Norte sabe muito bem a dimensão dessas duas personalidades de escol.

P - A constituição é um dos principais instrumentos da democracia. Como o senhor analisa a nossa constituição após vinte anos de sua promulgação?

R - Não é difícil assinalar o significado desses vinte anos de vigência e valência da mais bem sucedida Constituição republicana de nossa história. Critiquei-lhe duramente as nascentes ambíguas de sua convocação e duvidei do bom êxito da tarefa constituinte exercitada por um colégio de legisladores que emergia em grande parte dos quadros da ditadura e que não recebia da doutrina constitucional suficientes foros de legitimidade. Mas a fé do povo brasileiro na democracia, a par do ódio ao regime que buscava perpetuar-se, era tamanha que logo sanou com seu forte apoio os graves vícios que contaminavam o órgão da soberania. O discurso de Ulisses Guimarães no encerramento dos trabalhos da Constituinte é peça histórica e a profusão dos dados estatísticos levantados bem demonstra quanto foi significativa e robusta a presença auxiliar do povo na feitura da Carta Constitucional de 1988. Se o povo não houvesse colaborado nos círculos de opinião ao pé da constituinte a legitimação decerto não teria ocorrido. Os vinte anos já transcorridos, sem golpes de Estado, sem decretação de estado de sítio, corroboram essa legitimação. Com efeito, a Constituinte até agora, como nunca dantes no constitucionalismo republicano, tem sobrevivido a seu envolvimento com o presidencialismo; calamitosa forma de governo que, flagelando a nação, já arruinou neste país três repúblicas constitucionais.

P - Critica-se o excesso de artigos e a quantidade de leis existentes em nossa constituição. O senhor acredita ser possível conceber um documento legislador efetivo sem essa minúcia?

R - A prolixidade casuística do texto da Constituição tem sido com certeza o alvo que concentra, de preferência, os ataques mais cáusticos dos seus opositores e inimigos. No entanto, vale a pena de lembrar que a Constituição de Cádiz, matriz por excelência das monarquias constitucionais da Europa, promulgada há cerca de duzentos anos, arrolava em seu texto mais de 400 artigos, número bem superior ao da nossa; e se destinava ela a uma sociedade do começo do século XIX, infinitamente menos complexa que as sociedades contemporâneas. Portanto, se bem ponderarmos, os argüentes da falha casuística perdem de todo a razão, visto que as virtudes da nossa Carta excedem os defeitos e vícios que lhe foram apontados. Tais virtudes entendem com os princípios constitucionais da Lei Maior de 1988; pela vez primeira na história das nossas Constituições, auferem eles um grau de normatividade tão alto, que coloca a Constituição acima de quantas a antecederam e são, pela solidez demonstrada, a garantia suprema de sua continuidade, estabilidade e - porquê não dizer - de sua perenidade, talvez. Em rigor, a flexibilidade hermenêutica dos princípios, em ocorrendo sua correta aplicação, é o mais poderoso extintor de crises constitucionais. Resta, todavia, observar que isso só será possível se magistrados, legisladores e autoridades executivas, titulares dos Três Poderes da soberania, levarem a sério, como obrigação constitucional indeclinável, a força normativa dos princípios.

P - Comparando com a Constituição dos Estados Unidos, qual o diferencial da brasileira na sua avaliação?

R - A Constituição da União Americana foi obra de uma revolução. A fama, a duração, a grandeza, a solidez histórica desse monumento se explicam por fatores que se prendem a convicções profundas, acerca da superioridade da democracia; convicções já arraigadas na consciência do cidadão por obra da cultura política, da educação, do exercício consensual do poder, esteando o pensamento constitucional e, sobretudo, fazendo exeqüível a tarefa de governos que não se arredavam de seu compromisso com a liberdade e o Estado de Direito. Eu conjuguei aqui o verbo arredar no passado porque o governo de Bush, depois do Iraque e de Guantánamo, já não faz da democracia americana uma flor que se cheire. Quanto à Constituição brasileira, objeto do confronto comparativo, nossas origens e nossa formação constitucional foram sempre atropeladas por golpes de Estado e compõem um quadro escuro em que avulta, invariavelmente, a instabilidade das instituições constitucionais, contaminadas desde a dissolução da Constituinte de 1823 por D. Pedro I. A Constituição brasileira, para mágoa nossa, descende também de um constitucionalismo cuja fraqueza deriva da transação, da infidelidade, do egoísmo, dos recuos e das traições da classe dominante, bem como da caudilhagem política e social das elites. Em razão disso, nunca o povo entre nós esteve de fato na posse plena da soberania constituinte.

P- Afirma-se que a do Brasil é uma das mais completas do mundo. Esse tipo de pensamento procede mesmo? O que falta para ela ser a mais prática?

R - Eu diria que é até agora a mais bem sucedida de quantas Constituições a República já promulgou no Brasil, precisamente pelas razões dantes aduzidas com respeito à introdução normativa da base lógica, que lhe trouxe mais eficácia, obediência e legitimidade. Os princípios no que toca à resolução de problemas institucionais tem uma larga abertura, porquanto fazem a Carta flexível às soluções requeridas. Constituem elemento de estabilidade das instituições. A Constituição deu ao povo com a normatividade dos princípios, com a inserção de mecanismos da democracia participativa (referendum, plebiscito e iniciativa popular), com os direitos fundamentais das dimensões já consagradas, alicerces para construir em nosso País um Estado social que é a versão emancipatória do novo Estado de Direito dos povos da periferia.

P - nos últimos anos, viu-se o tecnicismo pouco a pouco ser substituído pela valorização dos princípios constitucionais e de justiça. O senhor vê com bons olhos essa tendência do Direito ao neoconstitucionalismo?

R - A Constituição de 1988 nos libertou da cultura tecnicista, apregoada como brasão da ditadura de 64, e simbolizada na retórica do Brasil - potência. A obsessão tecnocrática era a imagem da autocracia, o espelho da sua política, o materialismo de seus valores, que despolitizaram a sociedade brasileira com a democracia sufocada, e o silêncio das duas casas do Congresso onde o poder representativo da nação se tornara nulo. Isso fechou durante vinte anos a escola da liberdade, a tribuna dos oradores políticos que nos debates do parlamento educavam a nação e despertavam as vocações, forjando com os combates da palavra as grandes lideranças do passado. O funesto interregno de vinte anos esterilizou o solo político. Sacrificou toda uma geração distanciada do poder e da militância política. Não teve parte na restauração da legitimidade representativa aquela geração. De tal sorte que o Congresso, invadido de pigmeus, não viu depois nenhum gigante subir os degraus da tribuna parlamentar. É amarga, pois, a decadência da classe política no Brasil.

P - Há distinções entre a nossa realidade, no que se refere ao Estado de Direito, e o Estado absolutista, uma vez que o próprio poder publico em algumas situações fere direitos constitucionais?

R - Do ponto de vista formal somos um Estado de Direito; mas apenas na Constituição e na doutrina. Com a normatividade dos princípios e com os direitos fundamentais que já não se circunscrevem aos da primeira geração, demos largo passo rumo ao futuro que há de ser melhor, tanto que na região da teoria o nosso constitucionalismo figura entre os mais avançados do mundo. Contudo, quando nos transportamos para a realidade toda essa impressão se desfaz à míngua de concretização. O quadro visível é decepcionante por acentuar contrastes que deprimem e põem o país mais perto do Estado autoritário e policial que do Estado democrático e constitucional, de natureza republicana. Por essa superfície política desfilam logo distorções, anomalias e desequilíbrios produzidos por um Executivo jamais de todo fiel à Constituição ou leal à cidadania; Executivo nutrido na soberba de sua vocação absolutista, fomentada por um presidencialismo que tem sido a herança maldita das republicas malogradas no Brasil desde a queda do Império.

P - Muita gente ainda vê o Direito como algo restrito aos juristas, legisladores e advogados. O que é preciso fazer para que as pessoas passem a enxergar a Constituição como um instrumento de cidadania e não pertence apenas a determinadas categorias profissionais? Falta uma conscientização popular maior acerca de nossas leis?

R - Falta sim, falta ao cidadão brasileiro consciência de cidadania, certeza de que o governo é órgão do interesse público, e deve servir ao bem comum do povo e da nação. A autonomia moral do homem-cidadão, capacitado de seus direitos e de seus deveres unicamente se alcança quando ele se matricula na escola do civismo, rende culto à Constituição, manifesta respeito à lei e trata o Direito, a justiça e a liberdade, com devoção, reverenciando os valores cardiais e imperativos da organização democrática do Estado.

P - O senhor afirma que Dom João VI criou o embrião de um projeto constitucional para o Brasil. Algo mudou ao longo desses anos? Será um nova assembléia constituinte a curto prazo para nossa pais ou a Constituição brasileira permanece atual?

R - O Brasil constitucional teve um começo fracassado, em 1817, na Revolução Pernambucana, com as Bases de um projeto de Constituição da lavra de Antonio Carlos; depois em 1821 com o Decreto de D.João VI que criava uma espécie de constituinte embrionária para o Reino Unido do Brasil; finalmente, com a dissolução da Constituinte dos Andradas pelo golpe de Estado do Imperador D. Pedro I. Esse País constitucional há vivido assim em permanente crise ao percurso de quase dois séculos. Crise que recrudesceu sobretudo na República, alimentada de ditaduras, estados de sítio e intervenções do Poder Central na autonomia dos Estados membros da Federação.Por derradeiro, porém, com a Carta de 1988, houve considerável avanço, como em nenhuma outra época constitucional na direção de um poder livre, democrático e participativo. Um poder para conduzir às esferas da realização, da positividade, da concretude as magnas aspirações políticas e sociais da nação brasileira. Nesse rumo devemos todos nós caminhar numa comunhão de diligências e numa solidariedade de propósitos e fins. A Constituição de 1988 confere estabilidade e amortece crises. É carta de alforria e certidão de maioridade; alforria do cidadão e maioridade das instituições. O mal que seus desafetos lhe irrogam não é dela mas das elites que a atraiçoaram; da classe política; do corpo representativo; dos legisladores que não souberam emendá-la nem complementá-la em situações de adequação e de expectativas nem sempre correspondidas; do estamento dominante; da falta de vigilância cívica da cidadania; da inépcia administrativa na máquina do poder; da incompetência dos governos fracos, transgressores da Carta Magna, que não tiveram capacidade nem determinação de arrostar as crises do sistema. Não há portanto como admitir a convocação doutra assembléia constituinte, que viria tão somente aprofundar as raízes da crise. Não seria solução, mas desastre institucional. A constituinte de 1988 é ainda aquela que, promulgada a Constituição, tem unicamente sobrevivência jurídica ao exercitar poderes de segundo grau - o poder de emenda - nos limites intransponíveis do art.60 da Carta Constitucional. Só esse poder constituinte secundário - primário ele o fora até ao ato da promulgação - reúne e detém competência e legitimidade para aprovar, nos termos da Carta, as mudanças constitucionais que se fizerem mister.Ovilão não é, por conseguinte, o Estatuto Supremo, senão os ocupantes de cadeiras no Congresso Nacional que já emendaram 56 vezes a Constituição, sem todavia atenderem às mais sentidas exigências de reformas pelas quais, aliás, a nação clama e suspira. E que são perfeitamente possíveis nos quadros da legalidade constitucional. Excluída a convocação de uma constituinte, desfeito o risco extremo de uma constituição que anulasse as grandes conquistas compendiadas no Estado Social e no Estado de Direito dos Artigos 6º e 5º da Lei Maior, só resta ao presidencialismo brasileiro assumir a responsabilidade e o dever de cumprir a Constituição. Se o fizer, ele será menos funesto no futuro.

P - O mundo precisa de uma constituição comum a todos os paises, como se pensa numa constituição para a Europa? Que benefícios esse tipo de movimento proporcionaria?

R - Acho que um dia o direito constitucional, na senda da sua concretização sobre bases de universalidade, fará progressos substanciais, análogos aos do direito internacional. Neste o individuo, e não apenas o Estado, já figura, em certa maneira, por sujeito de direito, ou seja, já forma o embrião da futura cidadania planetária. Esta virá com o tempo, na esteira da concretude dos direitos fundamentais, mormente aqueles relativos ao desenvolvimento, à democracia e à paz. Por enquanto, tudo parece utopia. Mas a lição da historia nos mostra que amanhã poderá ser diferente. Muito daquilo que ontem fora utopia, hoje é realidade. O porvir se coloca assim aberto a uma surpreendente marcha na vida dos povos até alcançar o homem o coroamento político de sua evolução. E há de alcançá-lo mediante o estabelecimento da pátria global, sob a égide de um constitucionalismo universal: constitucionalismo de liberdade, igualdade e fraternidade.

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