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Convocar uma Constituinte seria golpe, afirma Paulo Bonavides

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008 às 16h07

João Pessoa (PB), 11/02/2008 - Para o jurista Paulo Bonavides, a Constituição atual já tem todos os recursos necessários para a realização de reformas e qualquer ensaio no sentido de se convocar uma constituinte, onde o quórum qualificado deixaria de existir, seria um golpe. "Não precisamos tocar na Constituição. Não podemos introduzir nem parlamentarismo nem mini, nem macroconstituinte", enfatiza. Envolvido no projeto de conscientizar as assembléias a apresentarem a primeira emenda à Constituição, por iniciativa dos legislativos estaduais, propondo o estabelecimento de emenda por iniciativa popular, Bonavides conversou com o diretor de Jornalismo dos Associados, Luiz Carlos de Sousa, em João Pessoa, na casa do advogado Paulo Maia. Considerado um dos maiores constitucionalistas do País, ele acredita que, uma vez aprovada essa emenda, o povo poderá dar legitimidade a qualquer discussão e poria um fim à fase de "manifesta decadência" que o Congresso Nacional vive. A emenda por iniciativa popular oxigenará o Congresso, restaurando-lhe a representatividade. "A presença do povo vai agitar as grandes questões no debate nacional".

A seguir, reprodução da íntegra da entrevista do Medalha Ruy Barbosa do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, jurista Paulo Bonavides, concedida ao jornal O Norte:

P - O que viabilizará a proposta de emenda à Constituição de iniciativa popular?
R - Essa proposta vai ser concretizada graças a um movimento, uma campanha que parte de uma sugestão que fiz à Assembléia Legislativa do Estado do Ceará, quando, no ano passado, o Legislativo cearense resolveu empreender a revisão do texto constitucional para expurgar algumas inconstitucionalidades.

P - Como seria essa revisão?
R - Aperfeiçoando o texto no sentido de introduzir uma abertura mais democrática. A Assembléia constituiu uma comissão de revisão do texto constitucional e colocou à frente Valmir Pontes Filho, que é presidente da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB, e me colocou como presidente de honra, uma distinção. Aceitei, mas quis dar também meu contributo a fim de que não ficasse em branco a minha passagem por esse momento de renovação.

P - Em que consiste essa contribuição?
R - Ocorreu-me tomar a iniciativa de uma proposta no sentido de congregar todas as assembléias do País com vistas a que essas assembléias, pela vez primeira, desde que se promulgou a Constituição de 1988, apresentassem a primeira emenda de sua iniciativa. E que essa primeira emenda fosse no sentido de criarmos a participação popular no exercício do poder constituinte de segundo grau.

P - Essa participação seria feita de qual maneira?
R - Seria exatamente por uma emenda à Constituição que elaborasse ou que tornasse possível a iniciativa popular em matéria de constituinte.

P - Simples assim?
R - Emenda à Constituição por obra das assembléias legislativas criando a iniciativa popular em matéria constituinte. Iniciativa do povo, do eleitorado, da cidadania propondo emenda à Constituição.

P - E o passo a passo do processo?
R - Seria a partir de um número mínimo de eleitores, que formulariam a proposta de emenda. Por exemplo, a iniciativa popular já existe pelo texto constitucional de 88 para matérias legislativas ordinárias, mas não existe para matéria constituída por quê? Porque, de acordo com o texto constitucional, essa iniciativa é privilégio de uma das casas do Congresso Nacional ou do presidente da República, ou metade mais uma das assembléias.

P - Então, seria a criação de mais um ente capacitado a ter a iniciativa de propor mudanças à Constituição?
R - Exatamente. Criaríamos o quarto ente capacitado a propor emenda à Constituição por sua própria iniciativa. E esse ente seria a cidadania, o povo determinado. Não nos termos que existe hoje, que é um tanto quanto pesado, com um quórum mínimo que é difícil, tão difícil que terminou sua aceitação pelo Centrão, na época em que se fez a Constituição.

P - Explique melhor o porquê da dificuldade desse quórum mínimo.
R - Porque é inoperante, é inviável. A iniciativa que existe para lei ordinária faz com que seja uma iniciativa morta. Ele não funciona porque é muito difícil para uma matéria, que não tem a relevância da matéria constitucional, a lei ordinária, agregar o cidadão e atender a exigência constitucional de um quórum dificílimo de ser alcançado. A nossa proposta é para que essa emenda seja exeqüível.

P - Essa proposta também tem o objetivo de trazer ao Poder Legislativo a importância que ele já teve e que hoje é relegada a um segundo plano?
R - Exatamente. Quando me ocorreu essa idéia, eu tinha presente a crise enorme, de certa maneira insolúvel, que atravessa o sistema representativo no País. Vive uma fase de manifesta decadência. Alarga-se um divórcio entre o povo, a cidadania e seus representantes e nós vimos o espetáculo trágico e funesto que foi o "mensalão", fase decadente não só do Legislativo, mas do Executivo . A decadência da representatividade, da legitimidade, da sua autenticidade. Tudo isso mostra que precisamos oxigenar o Congresso. Precisamos abrir um caminho que conduza a restauração da representatividade. E essa restauração terá que ser feita associada à participação popular. A presença do povo agitará as grandes questões no debate nacional pelos cidadãos e no debate no Congresso.

P - Quais as grandes questões?
R - Tudo que se refere aos direitos fundamentais das segunda, terceira, quarta e quinta gerações. Entendo que temos hoje cinco gerações de direitos fundamentais.

P - Como se dá essa classificação?
R - A primeira, clássica, o Estado liberal dos direitos políticos, que foram a espinha dorsal da primeira geração ou da primeira dimensão. Tivemos um momento de admirável evolução quando surgiram os direitos da segunda-geração. Os chamamos direitos sociais. A Constituição do México e, a seguir, a Constituição de Weimar são as duas Constituições que, já na primeira metade do século passado, firmaram esses direitos, consolidaram-nos teoricamente e, por igual, na práxis constitucional. Tudo isso foi na fórmula brilhante da lei fundamental de Bonn, quando disse que a Alemanha era um Estado social de Direito, da democracia já fundada nos alicerces dos diretos humanos ou dos direitos fundamentais da segunda dimensão. É uma das páginas memoráveis do constitucionalismo ocidental, que dominou toda a segunda metade do século 20, designadamente como a melhor fórmula, a mais perfeita, para instaurarmos a democracia social nos estados da periferia. A meu ver, país da periferia não pode ser país do neoliberalismo, tem que ser, para alcançar o grau de sua emancipação, um Estado social da democracia participativa.

P - O que é essa periferia a que o senhor faz referência?
R - Os países do terceiro mundo, os países em desenvolvimento, os países que estão querendo alcançar o patamar de sua emancipação econômica e obviamente, social.

P - Como o senhor vê as críticas de que o Congresso e as assembléias seriam hoje desnecessários, por absoluta falta do que fazer, com o Legislativo estadual aprovando apenas a LDO e o Congresso, as Medidas Provisórias?
R - A culpa em grande parte é do próprio Congresso Nacional, embora a culpa maior seja do Poder Executivo. Nesse País já se legisla mais por via de MP do que pela via congressual, que é a normal. Por isso, queremos democratizar no mais alto grau a via do Congresso, com a implantação de mecanismos plebiscitários, que são os que têm o mais alto teor de legitimidade.

P - Por que têm esse alto teor?
R - Porque executam exatamente o que está na Constituição, que é o parágrafo único do artigo primeiro que diz: "Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido", por representantes ou pela via direta nos termos da Constituição.

P - Não estaria aí um outro obstáculo à participação popular?
R - Exatamente. É um grande obstáculo à participação democrática mais vertical, mais rigorosa, mais extensiva. É que a Constituição estabeleceu a participação popular, primeiro por uma via, a mais árida possível, que tem o grau supremo de legitimidade, que é o parágrafo único do artigo primeiro. A soberania nacional se exerce ou por representantes ou pelo próprio povo. Mas, como o constituinte de 88 estabeleceu esses termos? Primeiro, no artigo 14, que não foi completo, já que excluiu o veto, mas introduziu - um grande avanço - mecanismos como o referendo, o plebiscito, a iniciativa popular. Mas - aí vem - o exercício será nos termos da Constituição. Criou uma reserva legal e quem deu executoriedade a essa reserva legal? A lei Almino Afonso, a meu ver um parto da montanha - saiu um ratinho. É uma lei que não dá execução, não dá realidade, não dá substância democrática ao parágrafo um do artigo primeiro.

P - Que outros obstáculos o constituinte impôs?
R - O constituinte estabeleceu que é da competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar referendo e convocar plebiscito. Ora, com isso, ele fechou muito a participação popular e, obviamente, paralisou a disciplina ou a regulamentação do artigo 14 da Constituição. É um grande obstáculo.

P - O que será possível se alcançar concretamente com esse movimento que o senhor está propondo?
R - Com essa iniciativa que estamos levando a cabo, a emenda à Constituição por iniciativa popular, a primeira proposta de emenda da iniciativa do povo deveria ser uma que pusesse abaixo aquela competência que é exclusiva do Congresso Nacional, que é convocar plebiscito. Claro, se as assembléias apresentam a proposta de emenda à Constituição por iniciativa popular e o Congresso, caso venha aprová-la, nós teremos dado um passo gigantesco para fazer cair a exclusividade de competência do Congresso.

P - A partir daí, que quadro político nós teríamos?
R - Uma ênfase democrática completa ao nosso sistema representativo. Sistema representativo bem entendido, associado à democracia direta exercida por via desses mecanismos.

P - Como o senhor vê o debate sobre uma nova Constituinte?
R - Nós não precisamos tocar na Constituição. Não podemos introduzir nem Parlamentarismo, nem miniconstituinte nem macroconstituinte. Nada disso é possível dentro do sistema Constitucional em vigor no País. Todo ensaio para isso é um ensaio golpista.

P - Explique didaticamente para o leitor.
R - Porque isso importaria em alterar o quórum constitucional das emendas. Se nós alterarmos esse quórum, a Constituição será ferida em seu coração. E, a partir desse momento, o Congresso faria com a Constituição o que o Executivo faz com as Medidas Provisórias. A cada dificuldade que se desse dentro da Constituição, vamos mudá-la, vamos alterar. Então, o quórum é sagrado, não podemos tocar nele. E dentro da Constituição nem podemos implantar o Parlamentarismo nem fazer uma revisão com o alcance daquela que foi prevista e que já se fez.

P - Perdemos o momento ideal?
R - Perdemos a ocasião histórica de chegar ao Parlamentarismo - e eu sou parlamentarista - mas hoje sou contrário, porque entendo que a introdução do Parlamentarismo se configuraria em um golpe de Estado.

P - Mas fala-se em Constituinte por causa de um novo pacto federativo, de uma reforma tributária, de uma reforma política...
R - Concordo com toda a crítica que se fizer às falhas de nosso sistema. O que eu não concordo é com o caminho para se chegar a isto. Esse sistema representativo, como o que existe, tem a resposta. É que a classe representativa, parlamentar, não tem consciência das suas responsabilidades, do seu dever constitucional, do seu dever político, do seu dever de servir à coisa pública, ao interesse nacional. Busca fórmulas fugitivas que, ao invés de fortalecer a democracia ou o sistema democrático, viriam exatamente, feri-lo de morte, feri-lo na essência. O caminho é de todo errado. A Constituição, tal qual ela existe, como ela funciona, tem tudo. O que há é uma traição representativa da parte dos membros do Congresso Nacional.

P - Será que esse excessivo envio de Medidas Provisórias não está tirando do Congresso a liberdade de Legislar? Como reverter esse processo?
R - Mas o próprio Congresso com seu poder de emendar a Constituição tem como debelar essa distorção enorme e acabar com essa hipertrofia legislativa do Poder Executivo, que realmente é uma concentração de poderes, uma desfiguração do próprio sistema de harmonia, de separação e de igualdade soberana de competências.

P - E quanto ao fato de o Congresso demorar demais a legislar, quando o Executivo precisa de urgência?
R - Mais uma vez a culpa é conjunta, associada do Legislativo e do Executivo. Vamos ser realistas e ver que a culpa não está na cidadania, não está na Constituição. A Constituição tem tudo. O poder de emenda é intangível, permanece intacto. Que o Congresso faça por via de emendas à Constituição reformas que retirem do Poder Executivo essa capacidade, essa faculdade de fazer Medidas Provisórias da maneira como faz.

P - Será possível se obter unidade política para uma reforma dessa proporção?
R - O caminho para nós formarmos a consciência da democracia participativa, da soberania constitucional, da soberania da cidadania, não pode ser outra senão esta que está enquadrada dentro da Constituição: emenda à Constituição por iniciativa popular. Amanhã, por iniciativa popular até a política de governo poderia ser plebiscitada, legitimada por ação da iniciativa popular de referendar toda essa política. As grandes medidas de interesse nacional profundo teriam que transitar pela instância popular suprema de legitimidade, que seria a manifestação da vontade do povo.

P - Afora a necessidade dessa emenda, como o senhor vê nossa Constituição?
R - É uma grande Constituição. É a mais formosa. Todos os elementos reacionários deste país a combatem. Combatem-na porque ela tem as chaves de solução para problemas que eles não querem que sejam resolvidos. Que o povo os resolva. Mas, nós, com essa campanha, buscamos criar a iniciativa popular na autenticidade da sua fonte, portanto, a mais democrática possível, a fonte de último grau de democracia.

P - Como grandes temas como os genéticos, os que dizem respeito à internet e os transgênicos seriam tratados nessa proposta do senhor?
R- A fórmula seria que, amanhã, todas as propostas que viessem, inclusive até decisões da Corte Suprema - nós não temos uma Corte Constitucional propriamente dita, nós temos um Poder Judiciário em que o órgão supremo tem uma bicefalia, porque ele é o ponto mais alto do Judiciário e é, ao mesmo tempo, o guarda da Constituição. Eu queria um Supremo unicamente devotado à guarda da Constituição. E precisamos de uma Corte Constitucional para resolver problemas que são críticos e que ela também tivesse uma legitimação democrática. Aí teríamos o Executivo, o Congresso e a Corte referidas à manifestação soberana, definitiva e suprema, impregnada de legitimidade incontrastável, que seria a manifestação popular. Todos os problemas se tornariam como que tributários da reforma maior, que seria a reforma da consciência democrática dos representantes e ao mesmo passo da cidadania. Isso nos ajudaria a atenuar, do ponto de vista moral e ético, sobretudo, esse descrédito, esse declínio, essa perda de confiança que tem o povo em relação aos seus representantes.

P - Como a Ordem dos Advogados do Brasil está avaliando essa iniciativa proposta pelo senhor?
R - O Conselho Federal da OAB, pelo seu presidente Cezar Britto, já criou uma comissão de apoio à emenda Constitucional por iniciativa popular. Fui distinguido com a presidência, o jurista paraibano Paulo Lobo Saraiva é o vice-presidente e o secretário é o autor de um livro clássico, que é o jurista Ruy Samuel Spinola. Também integram a Comissão a Dra. Maria Piovesan, da Unicamp, e o Dr. David Araújo. Essa comissão vai manter os contatos com as assembléias estaduais.

P - Como um tema como a liberdade de expressão seria tratado dentro dessa proposta do senhor?
R - Eu acho que todos esses temas que foram apresentados, inclusive outros como os relativos a Diretos Humanos, Meio Ambiente, tudo isso entra no conjunto que anima o espírito dessa mudança que nós queremos. Agora, não devemos criar barreiras à manifestação do pensamento, não podemos retrogradar a formas dissimuladas de censura à imprensa, à radiodifusão, à mídia em geral. É claro, nós não podemos nos arredar dos caminhos da responsabilidade, mas esses caminhos são traçados pelos próprios órgãos que servem à coletividade. Isso tem que ser dentro de um debate de âmbito nacional para estabelecermos esses caminhos. Nunca para cortarmos, para restringirmos caminhos, para levantarmos obstáculos à manifestação do pensamento. A democracia vive do debate, da liberdade de expressão. A democracia não existe sem a concretização desses meios - não bastam que eles existam, é fundamental que eles se concretizem. E a concretização do pensamento tem que ser sempre respeitada e resguardada. Os desvios serão combatidos, evitados, mas não por via do cerceamento preventivo. Isso não é possível. Isso cria uma lesão à ordem constitucional.

P - Anda-se discutindo muito um terceiro mandato para o presidente Lula. Como o senhor viu o instituto da reeleição no Brasil para os cargos do Executivo?
R - Eu acho que o instituto da reeleição é de índole, de natureza anti-republicana. Um dos axiomas da República verdadeira é a temporariedade do mandato eletivo. Se essa temporariedade não existe, o sistema deixa de ser republicano e passa a ser viciado, a padecer de um mal que o conduzirá à sua decomposição.

P - Então, terceiro mandato para o presidente Lula...
R - Nem pensar. É inconstitucional. É anti-republicano. Fere a principiologia republicana e democrática: o dirigente não deve se perpetuar no poder.

P - Diante de tantos problemas enfrentados pelo Brasil hoje, que esperanças o senhor tem para o futuro?
R - Eu acredito no Brasil. Acredito porque o povo brasileiro é jovem, é um povo que tem, realmente, nem diria a consciência democrática, mas instinto democrático. A nossa democracia é nova, é defeituosa, mas está na índole do povo, que tem um teor de humanismo. Democracia é o alicerce da dignidade da pessoa humana e o povo brasileiro tem a consciência dessa dignidade e tem o futuro no seu horizonte. E nós temos que lhe dar concretude pelos bons caminhos. Evitar que a má política, a degenerescência representativa e executiva, sobretudo o Executivo, porque o Executivo tem sido nesse país matriz de males que vêm desde o Poder Imperial no primeiro e no segundo reinados, até as distintas repúblicas que nós atravessamos. Mas, quando nós chegamos a uma Constituição como a de 1988, que é a primeira Constituição principiológica de toda a nossa história Constitucional, esse povo já deu um avanço, já subiu um degrau no patamar da democracia e do constitucionalismo, o patamar de uma Constituição de princípios. Princípios com normatividade, com juridicidade, que podem ser, portanto, concretizados.

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